"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/06/2018

Jurisprudência 2018 (30)


Crédito laboral; 
privilégio creditório; âmbito


I. O sumário de RC 21/2/2018 (7899/16.7T8CBR-C.C1) é o seguinte:

1. Os créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam do privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

2. O entendimento do que se considera “local onde o trabalhador exerce a actividade", deve ser interpretado de forma lata, abrangendo todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à sua actividade empresarial, à qual os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente da localização, em concreto, do respectivo posto de trabalho, ficando, consequentemente, excluídos, os imóveis que embora pertença da entidade patronal não estivessem afectos ao escopo societário, à actividade empresarial da entidade patronal.

3. Tendo a insolvente por objecto a indústria de construção civil, urbanização, obras públicas e empreitadas gerais, não se considera afecto à respectiva actividade empresarial o imóvel em que pernoitavam os gerentes, engenheiros civis e contabilista da insolvente, quando se deslocavam em serviço ao Algarve, e onde eram guardados, na cave, materiais e ferramentas de trabalho, em pequeno número e reduzida utilização, bem como, projectos de obras já elaborados.
 
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"B. Se deve ou não ser reconhecida a existência do privilégio imobiliário especial, incidente sobre o imóvel identificado na verba n.º 162, reconhecido aos trabalhadores da insolvente e respectivas consequências sobre o crédito da ora recorrente, que se fundamenta em hipoteca.

Estamos em presença de créditos reclamados por ex-trabalhadores da insolvente, com base no disposto no artigo 333.º, n.º 1, al. a) e b), do Código do Trabalho, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, de acordo com o qual:

«Os créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

Privilégio mobiliário geral;

Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade».

«O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no art. 748° do Cód. Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à Segurança que Social» - al.ª b) do n° 2 do mesmo artigo.

Ao invés do que anteriormente sucedia, com o aludido Código do Trabalho os créditos dos trabalhadores passaram a gozar de privilégio imobiliário especial, abandonando o legislador a atribuição do simples privilégio imobiliário geral. Dessa forma, ficaram tais créditos claramente abrangidos pela letra do art. 751° do Cód. Civil, na redacção dada pelo Dec.-Lei n° 38/2003, de 8 de Março, onde se estatui que «Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores». [...]

Em confronto directo com o privilégio imobiliário especial conferido aos créditos laborais reclamados e reconhecidos está a garantia resultante do registo de hipoteca voluntária a favor da recorrente e que incide sobre o imóvel descrito na verba n.º 162 dos bens apreendidos para a massa.

Nos termos do art.º 712.º do CC, “Hipoteca voluntária é a que nasce de contrato ou de declaração unilateral.”.

E nos termos do disposto nos artigos 686.º, n.º 1 e 687.º, ambos do CC:

“A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.”.

A recorrente
sem pôr em causa a prevalência, em tese, do privilégio especial dos trabalhadores sobre a hipoteca – apenas quer questionar a possibilidade de os créditos de trabalhadores, reclamados e reconhecidos, aproveitarem do privilégio imobiliário especial do art.º 333, 1, do CT pelo facto de, segundo alega não estar apurado o requisito da prestação da actividade do credor-trabalhador nos bens imóveis do empregador por não ter sido alegado nas supra referidas acções, qual o local onde exerciam funções, bem como que o imóvel em causa, não estava integrado, não fazia parte, da actividade produtiva da insolvente e, entendendo-se que assim é, então, a norma em causa, assim interpretada, viola os princípios constitucionais da igualdade e da segurança jurídica que se reconduz à protecção da confiança.

Importa, pois, desde logo, averiguar do âmbito/alcance do mencionado artigo 333.º, ao referir que o privilégio em causa incide sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

No que a tal respeita e em primeiro lugar – salvo aqui o respeito por entendimento diverso [
Cfr. uma certa orientação jurisprudencial  e, nomeadamente, o Ac. do STJ de 29 de Abril de 2008 in CJ, STJ, Tomo II, p. 43-44] não se vê que o legislador só tenha imaginado conceder o privilégio em questão relativamente ao imóvel ou imóveis nos quais, regular ou habitualmente, o trabalhador haja executado a sua prestação para a entidade patronal.

Desde logo é possível configurar um vastíssimo leque de empresas, nomeadamente tendo por objecto a realização de empreitadas de construção civil (como é o caso), com dezenas ou centenas de operários que desempenham as suas tarefas nas diversas obras para onde são chamados, localizadas em terrenos dos terceiro (donos da obra), no país ou no estrangeiro, que nunca podem prestar a sua actividade nos imóveis da entidade empregadora, quando esta, porventura, só é proprietária do valioso prédio onde está instalada a respectiva sede.

Depois há inúmeras situações de trabalhadores que, pela natureza das suas funções, têm de exercer a sua actividade necessariamente fora do imóvel ou imóveis em que se concentram o processo produtivo ou administrativo da empresa: veja-se o caso dos motoristas, dos trabalhadores de veículos de transporte, dos vendedores itinerantes, dos pescadores, dos trabalhadores agrícolas, dos funcionários de empresas de segurança, dos próprios vigilantes de entrada de pessoas nos edifícios da empresa, etc., todos eles naturalmente contratados para desempenharem tarefas no exterior dos imóveis em que eventualmente se posicionem as instalações da entidade empregadora.

Acresce que há trabalhadores que não têm um local – que pode ser ou não um imóvel – certo e pré-definido para exercerem as suas tarefas, porque são periodicamente deslocados pela entidade empregadora consoante as conveniências da produção.

Por fim, uma empresa de serviços pode funcionar com um escasso número de trabalhadores administrativos no único imóvel que lhe pertence e, ao mesmo tempo, trazer todo o restante pessoal – a esmagadora maioria do seu quadro - a trabalhar exteriormente.

A pergunta que intuitivamente se coloca respeita a saber se o legislador pretendeu excluir do privilégio imobiliário especial em questão todos os trabalhadores que desenvolvem as suas tarefas em locais que não pertencem à entidade empregadora, do mesmo passo que o quis conceder àqueles que, pelo mero acaso da natureza das respectivas funções, se encontravam a desempenhá-las em imóvel (ou imóveis) propriedade dessa mesma entidade, estabelecendo uma discriminação de todo incompreensível. Ou se porventura quis conceder privilégios de diferente valor, conforme o valor de cada imóvel em que o trabalhador se encontrava a prestar serviço no momento da cessação de funcionamento da falida.

Objecta-se que, a não ser feita a imputação do privilégio segundo o imóvel a que respeita o exercício laboral do credor-trabalhador, a exigência do art.º 333, nº 1 do CT é inútil, uma vez que haveria privilégio em relação a todosos imóveis da falida.

Ao que propendemos, o problema é tão só de interpretação do pensamento legislativo.

Nos termos do art.º 9, nº 3 do C.Civil "Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".

Importa, pois, ir em busca da solução mais acertada.

Ao eliminar o privilégio imobiliário geral e criar o de tipo especial, o legislador significou que a organização produtiva da entidade empregadora deveria responder em primeira linha, quanto ao património imobiliário nela integrado, pelos créditos daqueles que prestaram a sua actividade laboral confiando em que esse património produtivo salvaguardaria o pagamento desses mesmos créditos (e não mais que isso). Daí que os imóveis laterais à dinâmica produtiva da entidade empregadora globalmente considerada, porque não objecto dessa regra de confiança, sejam os únicos que podem ser distraídos da previsão do privilégio legal. Assim sendo, hipóteses haverá – e não serão poucas – em que os imóveis da entidade empregadora, por estarem de fora do seu processo produtivo, não poderão ser objecto da preferência legal.

A que há que acrescentar, por força do AUJ, de 23/02/16, Processo n.º 1444/08.TBAMT, a exclusão dos imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização.

Em segundo lugar – discordando também da recorrente – não se adivinha como sendo a mais razoável a tese de que incumbe ao credor-trabalhador o ónus de alegar e, se necessário, provar quais os imóveis que eventualmente estiveram conexionados com a prestação da respectiva actividade.

Deverá, antes, partir-se do princípio oposto, isto é, de que se tem de presumir que os imóveis propriedade da falida integravam o processo da respectiva produção, a menos que o credor interessado em que o privilégio imobiliário não possa favorecer o credor-trabalhador demonstre que assim não é, ou que o tribunal tenha elementos para disso se convencer.

Na verdade, exigir a cada um dos trabalhadores reclamantes a oportuna alegação e prova de que prestou serviço neste ou aquele imóvel já nos pareceria excessivo, se mais não fosse pelas apontadas dificuldades que uma tal especificação pode acarretar; mas ainda se afigura violento que se requeira que cada um desses reclamantes discrimine qual ou quais dos imóveis da falida estiveram inseridos na respectiva actividade produtiva, sendo que os restantes credores ou o tribunal estarão melhor posicionados para fazer um tal escrutínio (nomeadamente, através do mecanismo excludente da descrição daqueles concretos imóveis que nada tiveram que ver com a organização produtiva da falida).

Assim sendo, no alinhamento acima proposto, há que tomar como bom o dado de que todos os imóveis apreendidos estavam inseridos na actividade produtiva da falida, independentemente de ser a sede e locais onde se desenvolvia a actividade da insolvente.

De resto, ainda que não directamente alegado o local exacto em que o trabalhador presta funções, sempre será de presumir que o faz em imóvel inserido no processo produtivo da empresa, designadamente quando se trata de um local fixo de trabalho, presunção que a este Tribunal é lícito extrair dos elementos constantes dos autos – cf. artigo 349.º CC.

Trata-se, pois, de averiguar se o imóvel em causa, integra ou não a organização empresarial da insolvente, se o mesmo era relevante para a prossecução do escopo societário da insolvente.

Como se refere na sentença recorrida, o entendimento do que se deve entender por “local onde o trabalhador exerce a actividade”, tem vindo a ser entendido de forma lata, abrangendo todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à sua actividade empresarial, à qual os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente da localização, em concreto, do respectivo posto de trabalho, ficando, consequentemente, excluídos, os imóveis que embora pertença da entidade patronal não estivessem afectos ao escopo societário, à actividade empresarial da entidade patronal.

Ao invés, os seguidores do entendimento restritivo de tal noção, defendem que só gozam do privilégio ora em causa, os trabalhadores que fisicamente estivessem ligados a algum dos imóveis pertença da entidade patronal em que se desenvolvesse a sua actividade económica e aí os reclamantes exercessem a sua actividade.

Pelos motivos já acima expostos, somos de opinião que deve atender-se ao critério lato acima referido, por se mostrar o mais ajustado com a realidade das coisas, para além de que é o que, maioritariamente, se segue no STJ.

Neste sentido, por último o seu Acórdão de 30 de Maio de 2017, Processo n.º 4118/15.7T8CBR-B.C1.S1 e no qual se faz uma resenha jurisprudencial da questão ora em apreço.

Em face do ora exposto e por cotejo com a factualidade provada (ainda que sem a alteração aqui introduzida), salvo o devido respeito pelo entendido na decisão recorrida, somos de opinião que o imóvel em causa não se pode considerar como integrando, como estando afecto, à actividade empresarial da insolvente.

Esta, como resulta do item 1.º dos factos provados, tinha por objecto a indústria de construção civil, urbanização, obras públicas e empreitadas gerais.

Ora, o facto de, quando em serviço, os gerentes, engenheiros civis e contabilista da insolvente, ali pernoitarem quando se deslocavam ao Algarve e de na cave do imóvel em causa se encontrarem guardados os materiais e ferramentas mencionados no item 8.º, em pequeno número e reduzida utilização, bem como projectos de obras já elaborados, em nada contribui para a realização/execução das obras que a insolvente tinha a cargo.

Salvo o devido respeito, esta utilização em pouco ou nada releva para execução das obras a realizar.

Não é pelo facto de os engenheiros e demais pessoas referidas, pontualmente, ali pernoitarem que as obras foram levadas a cabo, bem como não o foram por ali se encontrarem as referidas ferramentas e bens.

Atendendo ao escopo da insolvente, não é pelo facto de numa cave de tal prédio se encontrarem algumas ferramentas e materiais, como referido no item 8.º, que se pode concluir que todo o imóvel estivesse afecto à respectiva actividade empresarial da insolvente.

A pernoita das pessoas acima referidas apenas se pode compreender como “rentabilização” da casa e inerente poupança de custos, mas sem que se possa concluir que estamos perante um imóvel afecto à actividade empresarial da insolvente.

Quanto aos materiais e ferramentas, por certo não se pode olvidar que o seu reduzido número acarreta a sua irrelevância para a realização das obras. A insolvente detinha um estaleiro, como acima referido e, naturalmente, era aqui que estavam os materiais e ferramentas utilizados na prossecução de tal fim.

Em resumo, entendemos, face ao exposto, que o imóvel descrito na verba n.º 162, não estava afecto à actividade empresarial da insolvente e, por consequência, não pode incidir sobre o mesmo o privilégio concedido aos créditos laborais em apreço."
 
[MTS]