Agente de execução;
actos; força probatória
1. O sumário de RG 1/3/2018 (1103/10.9TBGMR.G1) é o seguinte:
I - Os actos processuais de notificação efectuados pelo Agente de Execução, em sede de acção executiva, constituem documentos autênticos com a força probatória plena inerente a essa sua natureza.
II - Assim, só se o Recorrente tivesse arguido a falsidade da prova documental (dos actos processuais de notificação documentados no processo), pelo incidente processual próprio (art. 451º do CPC), é que a força probatória do documento podia ser posta em causa, e só nesse caso é que a sua eficácia como meio de prova passaria então a depender da livre apreciação do julgador.
III - Nessa medida, só nessa situação – em que a aludida força probatória plena tivesse sido validamente posta em causa – é que o Tribunal Recorrido teria que se confrontar com os demais elementos probatórios que fossem indicados pelo executado para pôr em causa a fidedignidade dos referidos actos processuais (por ex. a prova pericial requerida).
IV - Além disso, importa atender que, em regra, na decisão das reclamações de actos ou impugnações de decisões do Agente de Execução, bem como de outras questões suscitadas nos termos da al. d) do nº 1 do art. 723º do CPC, não existe produção de prova, decidindo o juiz com base nos mesmos índices probatórios que foram usados pelo Agente de Execução e que se encontram disponíveis do processo.
V - Com efeito, tal produção de prova só deverá ocorrer, a título excepcional, quando o Tribunal duvide da credibilidade de alguma informação ou declaração prestada no processo ou da fidedignidade de algum documento junto ou ainda do sentido de uns e outros.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"[...] mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto provada, ficam prejudicadas todas as questões que decorriam das alegações efectuadas pelo Recorrente, e que contendiam com a alegada omissão da sua notificação (quanto aos actos processuais nela mencionados).
Nessa medida, ficam prejudicadas todas as questões que o Recorrente levantava que contendiam com as alegadas nulidades, nomeadamente, as que diziam respeito à alegada omissão da efectivação das notificações. [...]
No entanto, importa atender que, além destas considerações, a pretensão do Recorrente também nunca poderia obter acolhimento, mesmo que tivesse impugnado, de uma forma processualmente válida, a matéria de facto.
Na verdade, sempre se teria que dizer que o Recorrente, mesmo em sede de Impugnação dos actos processuais (judiciais) praticados ([...]), não teve em consideração que as notificações efectuadas constituem Documentos Autênticos com a força probatória plena inerente a essa sua natureza.
Com efeito, julga-se que é incontroverso que os actos processuais de notificação em causa (os documentos em que tais actos estão plasmados) devem ser considerados documentos autênticos (arts. 362º, 363º e 369º e ss. do CC).
Ora, no respeitante à força probatória dos documentos autênticos, dispõe o artigo 371º, nº 1, do CC, que "os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo ([...], assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora …”.
Acrescenta, no entanto, o art. 372º do CPC que “[…] a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (nº 1) ”.
Ora, no caso concreto, o Recorrente não chega a impugnar cada concreto acto processual (notificação), limitando-se a arguir genericamente que não foi notificado.
Não deduziu sequer, quanto a qualquer um dos actos processuais efectuados, o correspondente incidente de falsidade especialmente previsto no art. 451º do CPC (falsidade de acto judicial).
Tal conduta processual do Recorrente não coloca, pois, em causa a aludida força probatória plena dos actos processuais de notificação praticados pelo Sr. Agente de execução ([...]) e que se mostram comprovados pelos termos do próprio processo (“histórico do processo”, como refere o Tribunal Recorrido, quando justifica a sua convicção).
Na verdade, só se o Recorrente tivesse arguido a falsidade da prova documental (dos actos processuais de notificação documentados no processo), pelo incidente processual próprio, é que a força probatória do documento podia ser posta em causa, e só nesse caso é que a sua eficácia como meio de prova passaria então a depender da livre apreciação do julgador.
Nessa medida, só nessa situação - em que a aludida força probatória plena tivesse sido validamente posta em causa - é que, naturalmente, o Tribunal Recorrido teria que se confrontar com os demais elementos probatórios que fossem indicados (por ex., a prova pericial requerida pelo Recorrente).
Nesta conformidade, também, por esta via a pretensão do Recorrente soçobraria com este fundamento.
E se assim é, também fica evidente que o meio de prova apresentado (prova pericial), nas circunstâncias em que foi requerido, era absolutamente impertinente para pôr em causa a força probatória plena dos actos de notificação efectuados pelo Sr. Agente de execução. [...]
Aqui chegados, importa referir que o Tribunal indeferiu a prova pericial com fundamento na sua impertinência para a discussão da causa (e por se tratar de uma diligência “dilatória”).
Ora, julga-se que o Tribunal, conforme decorre das considerações anteriores, decidiu bem.
Na verdade, tendo em conta os factos em discussão, surge, como uma evidência, que o objecto da prova pericial indicado pelo Recorrente não podia ter pertinência para a discussão daquela matéria de facto.
Com efeito, entende-se que uma diligência de prova deve ser considerada impertinente se não for idónea para provar o facto que com ele se pretende provar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outro meio de prova ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa ([...]).
Ora, o Requerimento do Executado/Recorrente, no que concerne à prova pericial, encaixa justamente nestas situações.
Na verdade, na ausência da impugnação, processualmente adequada, da força probatória plena dos actos processuais praticados (Documentos autênticos), a realização de prova pericial é absolutamente impertinente para a factualidade que aqui se mostrava em discussão.
Com efeito, é patente que o meio de prova indicado no requerimento apresentado, não é idóneo para provar o facto que com ele se pretendia provar, já que tem por objecto factos que se encontravam plenamente provados. Nessa medida, carece, também, de qualquer relevância para a decisão da presente causa.
Finalmente, importa atender aqui a um aspecto específico do âmbito de intervenção do Juiz na decisão que tem de proferir sobre as reclamações ou impugnações que as partes deduzam contra qualquer acto processual praticado pelo Agente de Execução.
Na verdade, nestas situações “o Juiz controla a posteriori a actividade do agente de execução… (pelo que…) “ em regra, na decisão das reclamações de actos ou impugnações de decisões do agente de execução, bem como de outras questões suscitadas nos termos da al. d) do nº1 do art. 723º do nCPC, não existe produção de prova, decidindo o juiz com base nos mesmos índices probatórios que foram usados pelo agente de execução e que se encontram disponíveis do processo. E não há renovação ou produção de nova prova, dado que de acordo com a regra do reexame, a produção da prova, via de regra, se torna desnecessária. A razão é a de que o juiz reaprecia os actos e decisões do agente de execução com base na prova já existente no processo…”. Só assim não será “quando duvide da credibilidade de alguma informação ou declaração prestada no processo ou da fidedignidade de algum documento junto ou ainda do sentido de uns e outros” ([J. H. Delgado de Carvalho, in “Jurisdição e caso estabilizado”, pág. 182 e 183]).
Nesta medida, também por esta via se pode constatar que, na ausência de qualquer dúvida (que não foi colocada de uma forma processualmente válida pelo Recorrente/executado), o Tribunal Recorrido, tendo considerado que os elementos probatórios constantes do processo (a prova documental junta aos autos demonstrativa das notificações efectuadas), merecia integral credibilidade (como resulta da prática judiciária e das regras da experiência), concluiu bem que não só tal prova era fidedigna, como, além disso, não carecia de qualquer meio de prova complementar (nomeadamente, a prova pericial requerida)".
3. [Comentário] a) Já houve a oportunidade neste Blog de colocar em dúvida a qualificação dos documentos oficiais como documentos autênticos (cf. Jurisprudência (819)). O que na altura foi dito aplica-se totalmente às notificações realizadas por um agente de execução.
Efectivamente, supõe-se que é manifesta a dificuldade de aplicar a esses documentos oficiais (como também o são um cartão do cidadão ou um passaporte) a força probatória estabelecida no art. 371.º, n.º 1, CC, para os documentos autênticos, dado que, quanto àqueles documentos, cabe perguntar quais são os factos que são atestadas como tendo sido praticados ou percepcionados pela autoridade documentadora que obtêm a força probatória de prova plena. Do mesmo modo, pode perguntar-se como é que, quanto a esses mesmo documentos oficiais, se pode provar a sua falsidade demonstrando-se, como exige o art. 372.º, n.º 2, CC, que a autoridade documentadora atestou, como tendo sido objecto da sua percepção, um facto que na realidade não se verificou ou, como tendo sido por ela praticado, um facto que realmente não praticou.
b) Se pode haver dúvidas quanto à qualificação de uma notificação realizada por um agente de execução como um documento autêntico, não há certamente dúvidas quanto à diferença entre a notificação, o envio da notificação e a atestação do envio da notificação. Esta diferença é intuitiva e, no presente contexto, essencial.
A pergunta que se impõe é, pois, a seguinte: a qual daquelas realidades se pode aplicar os critérios de falsidade estabelecidos no art. 372.º, n.º 2, CC? A resposta parece só poder ser uma: apenas à atestação do envio da notificação pode ser aplicado o disposto no art. 372.º, n.º 2, CC. Em concreto: essa atestação é falsa se ela documentar que a notificação foi realizada quando, na realidade, o não foi. De acordo com os critérios estabelecidos no art. 372.º, n.º 2, CC, nem a notificação, nem o envio da notificação podem ser falsos (em relação a este envio, nem sequer é possível falar de falsidade segundo um qualquer outro critério, dado que um envio de algo só pode ser verdadeiro ou não verdadeiro).
Ora, o que no caso sub iudice estava em causa era saber se o agente de execução enviou ao recorrente as notificações respeitantes à venda executiva do bem penhorado. Supõe-se que a RG, aplicando o disposto no art. 372.º, n.º 2, CC, considerou que o não envio das notificações só poderia ser considerado se o recorrente tivesse demonstrado a falsidade estabelecida naquele preceito. Mas, salvo o devido respeito, há aqui, como decorre do acima afirmado, um equívoco.
Lembre-se que o acto praticado pelo agente de execução e colocado em causa pelo recorrente não foi a atestação de que aquele agente enviou as notificações, mas o envio das notificações por esse mesmo agente. Não se vislumbra, por isso, como é que, quanto ao envio das notificações, pode ser provada a sua falsidade documental, desde logo porque esse envio nem sequer pode ser considerado um documento segundo qualquer critério que se utilize para definir documento (e, nomeadamente, segundo o critério estabelecido no art. 362.º CC).
O envio de uma notificação é um acto, não um documento. Enviar uma notificação é uma coisa; atestar o envio dessa notificação é outra bem distinta. Como se referiu, apenas a atestação deste envio é um documento que é susceptível de ser considerado falso segundo os critérios referidos no art. 372.º, n.º 2, CC.
c) Neste sentido, não parece que a RG tenha decidido bem ao considerar não verificada a nulidade da venda executiva invocada pelo recorrente com o argumento de que teria incumbido a esse recorrente provar a falsidade das notificações que esta parte alega não ter recebido do agente de execução.
O problema deveria antes ter sido analisado na perspectiva de uma nulidade processual (cf. art. 195.º, n.º 1, CPC), naturalmente incumbindo ao recorrente provar que não recebeu as referidas notificações. Nesta perspectiva, fazia todo o sentido a prova pericial que o recorrente requereu e que foi indeferida (indevidamente, na óptica do acima exposto) quer pela 1.ª instância, quer pela RG.
MTS