"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/06/2018

Jurisprudência 2018 (48)


Litisconsórcio subsidiário;
revelia; consequências


1. O sumário de RP 5/3/2018 (1668/15.9T8PVZ.P1) é o seguinte:

I - A pluralidade subjetiva subsidiária prevista no artigo 39º do Código de Processo Civil, na sua vertente de litisconsórcio subsidiário, origina no processo uma dupla subsidiariedade - objetiva e subjetiva -, porquanto comporta a dedução de um pedido subsidiário não apenas no confronto das partes singulares da ação, mas de uma parte que apenas é demandada para ver a sua situação jurídica apreciada no caso de não proceder o pedido deduzido a título principal.
 
II - Malgrado a letra da al. a) do artigo 568º do Código de Processo Civil aponte no sentido de que a exceção aí contemplada funciona em qualquer situação de pluralidade de réus, ressalvando as situações de litisconsórcio necessário passivo, ter-se-á de entender que a eficácia da exceção se encontra limitada aos factos de interesse comum para o réu contestante e para o réu revel. 
 
III - Por isso, no litisconsórcio subsidiário, não é relevante a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel, o réu contestante não tem interesse em contradizer. 
 
IV - O contrato de associação em participação, enquanto contrato associativo ou organizativo, tem como elementos essenciais que o caraterizam: i) a atividade económica de uma pessoa; ii) a participação de outra nos lucros ou perdas dessa atividade; iii) uma estrutura associativa.
 
V - Ao contrário do contrato de sociedade, a associação em participação não dá origem a uma nova entidade ou organização autónoma, a atividade económica não é exercida conjuntamente pelos contraentes (mas individualmente pelo associante), e não existe formação de qualquer património autónomo ou sequer comum (já que as contribuições do associado ingressam no património individual ou empresarial do associante). 
 
VI - Dada a natureza duradoura do contrato de associação em participação é o mesmo suscetível de resolução por justa causa, como tal se entendendo qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa-fé, não seja exigível a uma das partes a continuação dessa vinculação, podendo, assim, a mesma concretizar-se mercê de factos objetivos, que tenham a ver com a pura realidade do negócio, ou subjetivos, ligados à atuação da parte inadimplente.
 
VII - Resolvido o contrato de associação em participação, o associado tem direito à restituição da quantia que entregou a título de contribuição patrimonial sem qualquer atualização, por se tratar de uma obrigação pecuniária pura, acrescida de juros de mora desde a data da receção pela contraparte da respetiva declaração resolutória.
 

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I- RELATÓRIO

B... intentou a presente ação declarativa com processo comum contra C... e D..., Ldª alegando, para tanto, ter celebrado com o réu, ou com ambos os réus, um contrato de associação em participação, que por incumprimento das obrigações dos réus, e subsidiariamente, pelo decurso de 10 anos sobre a celebração do contrato, se extinguiu com justa causa.

Conclui pedindo a condenação do 1º réu, ou subsidiariamente, da 2ª ré, a pagar-lhe, por incumprimento do contrato de associação em participação celebrado, a quantia de € 240.348,13, sendo € 162.109,31 de capital e €78.238,82 de juros vencidos, sem prejuízo dos juros de mora vincendos a partir da citação.

Ou, quando assim se não entenda, ser declarada a nulidade do contrato celebrado entre o autor e o 1º réu ou a 2ª ré, por falta de forma, e condenar-se o 1º réu, ou, subsidiariamente, a 2ª ré, a restituir ao autor a quantia de € 240.348,13, sendo € 162.109,31 de capital e € 78.238,82 de juros vencidos, sem prejuízo dos juros de mora vincendos a partir da citação. [...]

II- DO MÉRITO DO RECURSO [...]

2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto

2.3.1. Da relevância processual da falta de apresentação de contestação por parte do réu C...

Como emerge dos autos, o réu C... não apresentou articulado de defesa.

Questão que se mostra colocada no presente recurso prende-se em saber se essa revelia é ou não operante, sendo que o ora apelante sufraga o entendimento de que relativamente ao réu não contestante não aproveita a contestação apresentada pela ré “D..., Ldª”, devendo consequentemente considerarem-se provadas (por confissão ficta) as afirmações de facto vertidas nos artigos 9º, 10º, 16º, 17º, 18º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 47º, 48º, 49º, 54º e 61º da petição inicial.

Quid juris?

Em conformidade com o disposto nos arts. 566º e 567º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC), se o réu, investido pela citação, no ónus de contestar, não deduzir qualquer defesa dentro do prazo legal, incorrerá em situação de revelia a qual, por via de regra, produz efeito probatório “considera[ndo]-se confessados os factos articulados pelo autor”, gerando, na expressão de MANUEL DE ANDRADE [
In Noções Elementares de Processo Civil, 1993, pág. 151], «uma presunção irrefutável de confissão».

Este comportamento omissivo do réu provoca, pois, a denominada confissão tácita, ficta ou presumida, a qual fica adquirida definitivamente no processo (com eficácia juris et de jure), não podendo este vir posteriormente negar os factos relativamente aos quais se manteve em total silêncio ou inércia.

E para despoletar essa consequência ou efeito probatório a lei adjetiva basta-se com a realização regular do ato de citação do réu e com a ausência de contestação.

No entanto, nem sempre o aludido efeito resultante da revelia se produz, já que o art. 568º do CPC prevê, com cariz excecional, algumas limitações à enunciada regra, relevando, no que ao caso interessa, a situação prevista na sua alínea a), na qual se dispõe que “[N]ão se aplica o disposto no artigo anterior quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar”.

Isto posto, considerando que o réu C... foi regularmente citado [...], resta, por conseguinte, dilucidar se opera (ou não) a exceção contemplada no transcrito inciso normativo.

Na resolução da enunciada questão cumpre, desde logo, determinar qual a relação que, em termos processuais, se regista entre os réus na presente demanda.

Tendo em conta a forma como o autor configura a concreta pretensão de tutela jurisdicional que aduziu nestes autos, verifica-se que o (mesmo) pedido é direcionado, a título principal, contra o réu C... e subsidiariamente contra a ré “D..., Ldª”.

Portanto, estamos assim perante uma situação de pluralidade de partes que a lei adjetiva designa de pluralidade subjetiva subsidiária e que se mostra consagrada no art. 39º do CPC.

Tal figura origina no processo uma dupla subsidiariedade: objetiva e subjetiva. Na verdade, ela vai comportar a dedução de um pedido subsidiário não apenas no confronto das partes singulares da ação, mas de uma parte que apenas é demandada para ver a sua situação jurídica apreciada no caso de não proceder o pedido deduzido a título principal.

Como a este propósito tem sido sublinhado pela doutrina [...], a razão de ser da consagração desta figura consistiu na necessidade de tutelar, em termos bastantes, o interesse do demandante, nos casos de dúvida fundada e razoável sobre a titularidade da relação material controvertida, nomeadamente nas hipóteses em que o próprio credor ignora, sem culpa da sua parte, a que título ou em que qualidade terá o devedor intervindo no ato que serve de causa de pedir à ação.

Entendeu-se, deste modo, que deveria ser dada prevalência ao interesse do demandante em ver apreciada unitariamente – e no mesmo processo – a responsabilidade dos possíveis devedores “alternativos” sobre o natural interesse do demandado em não estar no processo apenas a título subsidiário, para ver a sua responsabilidade apreciada apenas quando naufragasse a pretensão deduzida a título principal.

No caso vertente, o demandante fazendo uso dessa prerrogativa legal demandou o réu C... a título principal e – alegando dúvida fundada sobre quem é o verdadeiro sujeito passivo da relação material controvertida (cfr. arts. 79º a 84º da petição inicial) – deduziu ainda pretensão subsidiária contra a ré “D..., Ldª”, como possível devedora “alternativa” no seu confronto.

Tal situação configura o que se vem denominado por litisconsórcio eventual ou subsidiário passivo, o qual, por sua natureza, se situa para além das situações de contitularidade da mera relação jurídica material.

Ora, malgrado a letra da citada al. a) do art. 568º do CPC aponte no sentido de que a exceção aí contemplada funciona em qualquer situação de pluralidade de réus, ter-se-á de entender que, ressalvando as situações de litisconsórcio necessário passivo [Em que, por mor do disposto no art. 33º do CPC, há que alcançar uma decisão uniforme perante os vários réus; daí que o exercício, por um só dos réus, do direito de defesa aproveita sempre aos restantes, na parte em que o seu interesse seja comum], a eficácia da exceção se encontra limitada aos factos de interesse comum para o réu contestante e para o réu revel. 

Por isso, conforme se vem entendendo [...], não é relevante, fora duma relação formal de representação, a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel, o réu contestante não tem interesse em
contradizer, o que se torna patente nas situações de pluralidade subjetiva subsidiária como a presente, dada a autonomia e independência que se regista entre a posição da parte demandada a título principal e a parte apenas subsidiariamente demandada.

Como assim, dado que as proposições factuais constantes dos artigos 9º, 10º, 16º, 17º, 18º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 47º, 48º, 49º, 54º e 61º da petição inicial apenas interessariam diretamente ao réu C..., a sua revelia será, pois, concretamente operante.

Daí que estando-se em presença de factos tidos como assentes (por ficta confessio), em consonância com o que se dispõe no nº 1 do art. 662º do CPC, impõe-se a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto considerando-se provado que:

. “A entrega, em 2003, da quantia de 329.627,31 €, através dos cheques de 162.109,31 € e 167.518,00 €, destinava-se satisfazer o preço do prédio denominado E..., que a 2ª R. havia adquirido no mês de Maio, e a contribuir para a atividade a desenvolver sobre o prédio”;

. “No qual o 1º R. tencionava levar a cabo operação de loteamento, através de 2ª R., com os inerentes trabalhos de urbanização, para ulteriormente, vender os lotes”;

. “O 1º R. associou o A. a esse negócio imobiliário que projetou realizar através da 2ª R.”;

. “Como contrapartida da entrega da quantia de 162.109,31 € o 1º R. obrigou-se a pagar ao A. metade do lucro da operação imobiliária sobre o referido prédio, isto é, metade das receitas da venda dos lotes resultantes do prédio deduzidas de metade das despesas havidas com a compra, o loteamento e as obras necessárias”;

. “O 1º R. recebeu em 04.11.2003, a importância de 162.109,31 € para a entregar à 2ª R. e lhe permitir pagar o preço da E..., ficando o autor desapossado desse montante”;

“Desde, pelo menos, 2009 a 2015 o 1º R. não promoveu o loteamento e a venda do prédio, não tendo sido alcançada uma coisa ou outra”;

. “O 1º R. passou a sustentar que o A. seria comproprietário da E...”;

. “Entretanto, decorreram mais de dez anos sobre a celebração do contrato, que não fixou a sua duração, nem determinou as operações em que consistiria”;

. “O A. deixou de dispor, ao longo de todo o tempo decorrido, do capital de 162.109,31 € e da rentabilidade que este lhe proporcionaria”.


3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, a RP não decidiu bem o problema relativo às consequências da revelia do réu principal.

No litisconsórcio subsidiário passivo, é formulado um mesmo pedido contra uma parte principal e contra uma parte subsidiária (cf. art. 39.º CPC). É fácil concluir que, além naturalmente de haver uma oposição entre o  autor e cada um dos réus demandados, nesse litisconsórcio há também uma oposição entre cada um destes réus. Como é evidente, cada uma destas partes tem interesse em que, a haver alguma condenação proferida pelo tribunal, seja a outra parte a condenada no pedido formulado pelo autor. Esse litisconsórcio origina, exactamente por causa da oposição entre o autor e os réus e entre estes mesmos réus, um relação multipolar.

A revelia operante produz efeitos desfavoráveis para o réu revel e favoráveis para o autor. No caso de haver uma pluralidade de réus, está excluído que a revelia operante de um desses réus produza efeitos desfavoráveis para um outro réu igualmente demandado. Os efeitos desfavoráveis da revelia operante ficam necessariamente limitados ao réu revel: esses efeitos desfavorecem o réu revel perante o autor, mas não podem desfavorecer o outro réu perante o autor.

Nesta perspectiva, há que concluir que as consequências da revelia do réu principal não podem ser opostas ao réu subsidiário. Este réu não pode ser atingido pela ficta confessio que decorre da revelia do réu principal. Tem-se por indiscutível que o réu que tem um interesse incompatível com um outro réu não pode ser prejudicado pela conduta deste último réu. Por exemplo: as consequências da revelia operante de um dos réus demandados numa acção de divisão de coisa comum não podem ser ser opostas ao outro réu igualmente demandado.

b) Obtida esta conclusão, suscita-se a questão de saber se o réu subsidiário pode impugnar, de modo a excluir a sua condenação no pedido formulado pelo autor, factos que o réu revel não impugnou. Resulta do acima dito que tem de se admitir esta possibilidade. Se a revelia do réu principal não é oponível ao réu subsidiário e se a ficta confessio não pode prejudicar este réu, então os factos que, como consequência dessa revelia, se consideram confessados, não podem ser opostos ao réu subsidiário.

Aliás, não se percebe como é que, sendo o pedido formulado contra o réu subsidiário igual ao pedido formulado contra o réu principal e, portanto, tendo esse pedido uma única e mesma causa de pedir, o réu subsidiário pode ficar impedido de impugnar qualquer facto que integra essa causa de pedir (ou, se se quiser ser mais incisivo, qualquer facto que pertence à causa de pedir que lhe é oposta pelo autor). Quando muito, poder-se-ia vir a discutir, em relação a determinados factos integrantes da causa de pedir, a relevância da sua impugnação pelo réu subsidiário e da sua eventual não prova pelo autor para a apreciação do pedido formulado contra esse réu. Mas isto é coisa completamente diferente de se vincular esse réu a aceitar como confessados factos não impugnados pelo réu principal.

Pelo exposto, é-se levado a ter de concluir que a RP, ao decidir como decidiu, violou o direito ao contraditório do réu subsidiário, na modalidade de direito desta parte a pronunciar-se sobre as alegações da parte contrária. Repita-se o que acima se referiu: uma coisa é verificar se os factos impugnados pelo réu subsidiário são relevantes para uma eventual absolvição desta parte; outra completamente diferente é coarctar a essa parte o contraditório sobre esses factos e vinculá-la aos factos confessados, através da revelia, pelo réu principal.

Não é possível fazer nenhum juízo sobre as consequências para o réu subsidiário da sua vinculação aos factos confessados pelo réu principal, dado que isso implicaria conhecer muito mais do que é referido no acórdão. Mas basta considerar que alguns destes factos referem expressamente o réu subsidiário para, desde logo, se não poder dizer, como o acórdão faz, que esse réu não tem "interesse em contradizer" esses factos e para se poder concluir que a prova ou a não prova desses mesmos factos pode não ser nada irrelevante para a decisão a tomar pelo tribunal quanto ao pedido formulado pelo autor contra esse réu.

c) Também não parece que o disposto no art. 568.º, al. a), CPC tenha algo a ver com a situação em análise no acórdão. Este preceito estende a contestação efectuada por um dos réus ao réu revel; no caso sub iudice, o que estava em causa era a possibilidade de o réu subsidiário impugnar, a seu favor, factos não impugnados pelo réu revel. Não se trata de estender ao réu principal revel a contestação do réu subsidiário, mas antes de permitir que este réu possa impugnar factos não impugnados por aquele réu revel. Dito de outra forma: enquanto o art. 568.º, al. a), CPC regula o aproveitamento pelo réu revel da contestação do outro réu, o caso em análise refere-se às consequências da revelia do réu principal para o réu subsidiário.

Num caso de litisconsórcio subsidiário, a aplicação do disposto no art. 568.º, al. a), CPC só seria pensável no caso em que o réu contestante pretendesse demonstrar que nem ele, nem o réu revel podem ser condenados no pedido formulado pelo autor. Neste contexto, faz sentido discutir se os factos impugnados pelo réu subsidiário aproveitam ao réu principal revel. Todavia, não era esta a situação em análise no acórdão da RP, dado que em parte alguma do acórdão se discute a possibilidade de o réu principal revel se aproveitar da contestação do réu subsidiário. O que se discute no acórdão é o contrário: é a vinculação do réu subsidiário contestante aos efeitos da revelia do réu principal.

d) Uma observação final. O sumariado no n.º I (que corresponde ao que é afirmado no acórdão) não é totalmente correcto. Quando há (apenas) um litisconsórcio subsidiário, não há nenhuma subsidiariedade objectiva, dado que é formulado um único pedido contra o réu principal e contra o réu subsidiário.

Uma subsidiariedade objectiva (além da subjectiva) só existe na coligação subsidiária. Por exemplo: A formula o pedido x contra o réu B e, subsidiariamente (nas condições do art. 39.º CPC), o pedido y contra o réu C.

MTS