"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/06/2018

Jurisprudência 2018 (34)


Arrolamento;
conta bancária; depositário


I. O sumário de RC 27/2/2018 (131/11.1TBVLF-B.C1) é o seguinte:

1. - O arresto pressupõe uma relação bilateral entre credor e devedor, estando em causa o receio daquele de perda da garantia patrimonial do seu crédito, caso em que pode requerer o arresto de bens (apreensão judicial) do seu devedor, com função de garantia e com o efeito de os atos de disposição dos bens arrestados serem ineficazes em relação ao requerente/credor.

2. - Já o procedimento cautelar de arrolamento depende de um justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, podendo ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens, não se exigindo, assim, que se trate de “credor” contra “devedor”.

3. - É adequado a prevenir o risco de dissipação ou ocultação de bens – no caso, depósitos em conta bancária – e acautelar o efeito útil do processo de inventário para partilha o arrolamento e não o arresto.

4. - Nesse caso, havendo receio de que os interessados titulares da conta bancária ocasionem o extravio/dissipação desses depósitos bancários, assim impedindo a sua entrega a quem couberem em partilha, não devem tais interessados ser nomeados depositários, por ocorrer manifesto inconveniente nos termos do art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv., antes se justificando a nomeação da respetiva entidade bancária como depositária, a dever impedir a movimentação da conta a débito, sem o que o procedimento não cumpriria a sua essencial função conservatória.
 


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
 
"Pugna a Recorrente por ser o intentado arresto – e não o procedimento cautelar de arrolamento – a providência adequada à situação dos autos, alegando que o arrolamento não colheria a eficácia pretendida, tratando-se de saldo de conta bancária, pois que uma conta bancária que seja arrolada não fica bloqueada/apreendida à ordem do Tribunal, caso em que não se evitaria/impediria o desaparecimento (por levantamento ou transferência bancária) dos fundos da conta, justamente a tutela que a Requerente pede que lhe seja dispensada.

Na decisão em crise considerou-se, diversamente, que:

«De harmonia com o disposto nos artigos 619º do Código Civil e 391º do Código de Processo Civil (…) o direito de requerer arresto em bens do devedor é conferido ao credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito (…)

Da factualidade alegada (…) não resultam desde logo quaisquer factos referentes à existência de um crédito de que a requerente seja titular ou possa ser titular relativamente aos requeridos, nem mesmo um crédito relativamente à herança (…).

Sempre se dizendo que, coisa distinta de deter um crédito sobre a herança é o direito ao quinhão hereditário de herança na qual se tenha a qualidade de herdeiro, sendo que a finalidade da providência cautelar de arresto se circunscreve precisamente aos casos em que credor tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito, caso em que será lícito requerer o aresto dos bens do devedor (cfr. artigo 391º).

Donde se concluirá que, inexistindo factos alegados que indiquem a probabilidade de existência de um crédito da requerente sobre os requeridos, falha desde logo o primeiro dos pressupostos essencial ao decretamento da providência cautelar requerida.

Com efeito, só em relação a direitos de crédito é possível deduzir esta providência, já que ela visa precisamente a garantia do seu cumprimento, não sendo adequada ao perigo de insatisfação de direitos de diversa natureza.

Sendo que, in casu, tendo em conta o fim que a requerente visa obter – justo receio de extravio ou dissipação de bens – o procedimento adequado será o arrolamento, por forma a obter a sua descrição, avaliação e depósito, podendo ser intentado por aquele que tenha, ou fundadamente espere vir a ter, direito a que lhe venha a ser entregue um certo número bens.».

Questão que, desde logo, se coloca é, então, a de saber se o procedimento de arrolamento, uma vez decretado e realizado, implica – como o arresto – a apreensão dos bens dele objeto (designadamente, depósitos em conta bancária) ou, ao invés, permite a sua disposição (extravio/dissipação) pelos possuidores/detentores.

Ora, é sabido que o arresto consiste numa apreensão judicial de bens, constituindo um dos meios de conservação da garantia patrimonial dos credores.

O art. 619.º do Código Civil (doravante CCiv.) estabelece os requisitos do arresto, ao referir, no respetivo n.º 1, que: «O credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito, pode requerer o arresto em bens do devedor, nos termos da lei de processo».

Conjugando esta disposição legal com o disposto nos art.ºs 391.º, n.º 1 ([...]) e 368.º, n.º 1, aplicável ex vi art. 376.º, todos do NCPCiv. ([...]), conclui-se que para que a providência seja decretada será necessária a verificação cumulativa de dois requisitos:

- a probabilidade da existência do crédito;

- o receio de perda da garantia patrimonial desse mesmo crédito.

O requerente deve, pois, expor/alegar e provar/demonstrar (ainda que em termos de simples probabilidade) que tem um direito de crédito sobre o requerido e, por outro lado, que ocorrem determinados factos dos quais resulta, com um grau de probabilidade sério, o justo receio de perda da garantia patrimonial idónea à satisfação do seu crédito.

Desde logo, no que concerne à existência do crédito, o legislador prescindiu da prova da sua certeza, bastando-se com a mera verificação da probabilidade da existência do mesmo – art. 392.º, n.º 1, do NCPCiv. ([...]).

No que respeita ao requisito do justo receio da perda da garantia patrimonial, defende Abrantes Geraldes (em Temas da Reforma do Processo Civil, IV, p. 186) que ele “pressupõe a alegação e prova, ainda eu perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito”.

Uma vez que a lei não forneceu um critério rígido para o preenchimento do conceito de “justo receio”, importa integrá-lo de acordo com critérios, tanto quanto possível, objetivos.

Ainda segundo o referido Autor (ob. cit., pág. 188) há situações-tipo que, sem prejuízo da necessária apreciação das especificidades do caso concreto, são, em princípio, de considerar como integradoras do “justo receio” e que, por isso, justificam o arresto.

Estão entre estas as situações em que se mostra indiciariamente provado que a satisfação do crédito se afigura consideravelmente difícil, as situações em que o devedor se mostra em risco de ficar em situação de insolvência, designadamente por dissipação ou extravio dos bens ou por abandono da empresa ou do estabelecimento, e, ainda, as situações em que existe uma descapitalização do devedor.

Cabe ainda referir, para melhor integrar o referido conceito, que “justo receio” existirá quando qualquer pessoa de são critério, colocada no lugar do credor, em face do modo de agir do devedor, também temeria vir a perder o seu crédito ([...]).

Dúvidas não restam, pois, de que, consistindo o arresto numa apreensão judicial de bens, capaz de antecipar os efeitos derivados da sentença de condenação a proferir – meio de conservação da garantia patrimonial do credor –, impende sobre a parte requerente o ónus, desde logo, de alegar os fundamentos do arresto ([...]), deduzindo os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado (cfr. os art.ºs 391.º, n.º 1, e 392.º, n.º 1, ambos do NCPCiv.), por forma a poder depois fazer a prova de tais factos, que integram a causa de pedir ([...]) de tal procedimento cautelar.

Assim, o ónus de alegação, referenciado à causa de pedir, reporta-se à situação da parte que se vê, com vista à procedência da sua pretensão ou oposição, na necessidade de alegar, em sede de articulados da causa, carreando-a para os autos, toda a matéria fáctica necessária ao sucesso de tal sua pretensão ou oposição (cfr., quanto ao que aqui importa, o aludido art.º 392.º, n.º 1, do NCPCiv.), pois que o tribunal só pode, por regra, servir-se dos factos essenciais alegados/articulados pelas partes ([...]).

Pode, pois, concluir-se que o arresto é um procedimento cautelar tipicamente recortado para uma relação bilateral entre credor e devedor, estando em causa o receio daquele de perda da garantia patrimonial do seu crédito, caso em que pode requerer o arresto de bens (apreensão judicial dos bens) do seu devedor, com função, pois, de garantia ([...]) e com o efeito de os atos de disposição dos bens arrestados serem ineficazes em relação ao requerente do arresto, aplicando-se, mutatis mutandis, as regras e os efeitos da penhora (art.º 622.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv.).

Já o procedimento cautelar de arrolamento, por seu lado, pretende, no seu recorte legal, responder a situações de perigo de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis.

Assim, como resulta da lei adjetiva, havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, pode requerer-se o arrolamento deles (art.º 403.º, n.º 1, do NCPCiv., tal como, anteriormente, o art.º 421.º, n.º 1, do CPCiv. revogado), sendo o arrolamento dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (n.º 2 de qualquer daqueles dispositivos legais).

Quanto à “legitimidade”, certo é que o arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens (art.º 404.º, n.º 1, do mesmo Cód. e art.º 422.º, n.º 1, do CPCiv. revogado), já não se exigindo, pois, que seja “credor” (da contraparte devedora).

Para tanto, cabe ao requerente fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação(art.º 405.º, n.º 1, do novo Cód. e art.º 423.º, n.º 1, do CPCiv. revogado) ([...]). Já não, pois, o “receio de perda da garantia patrimonial do crédito” ([...]) pelo credor, mas o “receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens” determinados (concretos bens móveis ou imóveis).

Assim, produzidas as provas, o juiz ordena as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério (n.º 2 do mesmo art.º), procedendo-se logo, nesse caso, à nomeação de depositário e avaliador (n.º 3), posto que o arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens (art.º 406.º, n.º 1, do NCPCiv., e art.º 424.º, n.º 1, do Cód. revogado), para o que é lavrado auto em que se descrevem os bens, em verbas numeradas, como em inventário, se declara o valor fixado pelo louvado e se certifica a entrega ao depositário ou o diverso destino que tiveram (n.º 2), sendo que tal depositário não tem de ser o “possuidor ou detentor dos bens”, como no caso de haver “manifesto inconveniente em que lhe sejam entregues” (art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Nos termos do disposto no n.º 5 do mesmo art.º 406.º da lei adjetiva atual (anterior art.º 424.º, n.º 5), são aplicáveis ao arrolamento as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrarie o estabelecido nesta secção ou a diversa natureza das providências.

Quanto ao depositário na penhora de imóveis dispõem os art.ºs 756.º e segs. do NCPCiv., estabelecendo que, por regra, o depositário deve tomar posse efetiva dos imóveis penhorados (n.º 1 do art.º 757.º), cabendo-lhe administrar os bens (art.º 760.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Tratando-se, porém, da penhora de depósito bancário, aquela é feita por comunicação eletrónica à entidade bancária, ficando o saldo bloqueado desde a data do envio da comunicação, impedindo, por isso, que as quantias bloqueadas sejam movimentadas, para o que a instituição é responsável pelos saldos bancários nela existentes ao tempo daquela comunicação (art.º 780.º, n.ºs 1, 2, 4 e 11, do NCPCiv., aplicável ex vi art.º 406.º, n.º 5, do mesmo Cód.).

Bem se compreende, então, que, no “arrolamento de conta bancária o depositário natural é precisamente a entidade bancária onde ela se encontra. O arrolamento faz-se identificando a conta e descrevendo o saldo e a data respectiva” – assim, o Ac. STJ de 27/01/1998, Proc. 97A997 (Cons. Lopes Pinto), com sumário disponível em www.dgsi.pt, com itálico aditado ([Veja-se também o Ac. TRL, de 03/04/2014, Proc. 6234/10.2TBALM-D.L1-6 (Rel. António Martins) [...]]).

E ainda que “a finalidade do arrolamento é garantir a existência e preservação de certos bens para que, obtido vencimento na acção, lhes possa ser dado o destino legal, em harmonia com o interesse do vencedor (dando-se a coincidência entre este e o requerente do arrolamento).

E, segundo o regime legal, esse desiderato é alcançado através da descrição, avaliação e depósito dos bens em causa (artº 406º/1 CPC)” – cfr. Ac. TRL, de 28/03/2017, Proc. 11256/16.7T8LSB.L1-7 (Rel. Maria Amélia Ribeiro), em www.dgsi.pt ([ No mesmo sentido o Ac. TRL, de 16/03/2017, Proc. 185/15.1T8FNC-A.L1-2 (Rel. Maria José Mouro) [...]]).

Assim sendo, o objetivo do arrolamento – designadamente, de depósitos bancários – “é o de manutenção dos bens controvertidos e deverá ser decretado em função da probabilidade da titularidade do requerente sobre esse bem e da prova sumária de situação de perigo que incida sobre ele, perigo que o legislador tipifica como de «extravio, ocultação ou dissipação»” ([Vide Ac. TRL, de 02/07/2015, Proc. 4899/14.5T2SNT.L2-2 (Rel. Teresa Albuquerque) [...]]).

Não se estranha, pois, que a jurisprudência – que tem admitido largamente o arrolamento de depósitos bancários – venha entendendo que a providência cautelar de arrolamento “visa conferir tutela urgente e acauteladora a direitos a brandir ulteriormente em situações de «receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos», pelo que logra proteger os direitos de ex-cônjuge que vise obviar à dissipação de depósitos bancários e dinheiro alegadamente pertencentes a ambos os elementos do casal não se justificando, pois, em tal caso, o recurso a procedimento cautelar não especificado” ([Cfr. Ac. TRL, de 23/04/2015, Proc. 3376/14.9T8FNC-A.L1-6 (Rel. Carlos Marinho)[...]]).

Poderia dizer-se, em contrário, que, devendo o depositário ser “o próprio possuidor ou detentor dos bens”, no caso seria depositário quem tem a titularidade da conta bancária em questão, que poderia, nesse âmbito, proceder ao levantamento ou transferência do depositado na conta e, assim, impedir o aludido objetivo conservatório do procedimento.

Porém, o art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv., ressalva, quanto a tais possuidor ou detentor, situações de “manifesto inconveniente em que lhes sejam entregues” os bens.

Ora, o caso dos autos, tal como relatado pela Requerente – e a fazer-se a prova necessária –, atento o receio alegado, sempre se imporia, para evitar o risco de extravio/dissipação, que não fossem os titulares da conta nomeados depositários, antes devendo tal cargo ser atribuído à própria entidade bancária onde a conta foi aberta.

Em suma, e como entendido já nesta Relação ([Cfr. Ac. TRC, de 17/09/2013, Proc. 839/07.6TBPBL-C.C1 (Rel. Emídio Santos) [...]]), a providência adequada para prevenir o risco de dissipação ou ocultação de bens e acautelar o efeito útil do processo de inventário para partilha – efeito útil que consiste não só na partilha dos bens, mas também na entrega aos interessados dos bens que lhe couberem em partilha – é o arrolamento e não o arresto ([...])."


[MTS]