Prova; apreciação;
presunções judiciais
I. O sumário de RL 8/2/2018 (50696/16.4YIPRT.L1-6) é o seguinte:
1.– Em sede de julgamento da factualidade controvertida, vedado não está o recurso pelo julgador a presunções judiciais, nos termos dos artºs 349º a 351º do CC, impondo-se designadamente ao Juiz o recurso às regras da experiência, sendo que, o uso destas últimas consubstancia também critério de julgamento, aplicável na resolução de questões de facto.
2.– Outrossim em sede de formação da sua convicção, há-de o convencimento do órgão jurisdicional operar-se à luz de critérios de racionalidade, utilizando-se as máximas da experiência, sendo de exigir que o juiz atente ao que acontece na normalidade dos casos, como parâmetro para concluir pela validade ou não de uma determinada pretensão, e não olvidando que tal convencimento do juiz não é asséptico, pois que, o juiz, ao formar seu convencimento sobre o facto, não age como ser inerte e neutro, desprovido de qualquer “pré-conceito”, preconceitos ou vontade anterior.
3.– Por último, também nesta sede importa atentar que, sendo certo que a prova tem por função a demonstração da realidade dos factos (cfr. artº 341º do CC), tal demonstração não exige de todo uma convicção assente num juízo de certeza lógica, absoluta, sob pena de o direito falhar clamorosamente na sua função essencial de instrumento de paz social e de realização da justiça entre os homens.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
Ainda em sede de julgamento de facto, mister é que o julgador aprecie a prova segundo a sua experiência, prudência e bom senso, e isto porque, não raro, determinados alibis/versões, ainda que prima facie amparados em alguns testemunhos produzidos, não devem de todo merecer qualquer acolhimento da sua parte, desde logo porque à partida desprovidos de qualquer valor cognoscitivo e fundamento racional, ou de todo desajustado das máximas da experiência e da normalidade da vida, sendo que, como bem nota Luís Filipe de Sousa ([In Prova por Presunção no Direito Civil, 2012, Almedina, págs. 77 e segs.]), no âmbito da livre apreciação da prova, o juiz tem o dever de raciocinar correctamente e de utilizar oficiosamente as máximas da experiência e das quais não deve em principio estar arredado, sob pena de proferir decisões não sensatas porque desfasadas da realidade da vida.
É que, precisamente em sede de função probatória, hão-de as máximas da experiência servir de filtro à adesão do julgador a determinadas alegações fácticas, actuando então como elementos auxiliares do juiz em sede de valoração das provas, e isto porque, não se deve olvidar, é também o juiz um ser humano como qualquer outro, estando portanto sujeito a valorações subjectivas da realidade que o cerca, razão porque em principio se lhe exige e dele se espera que a valoração que faça das provas carreadas para os autos não deve em principio afastar-se muito da opinião comum/média que em relação às mesmas faria o bonus pater famílias - o modelo da pessoa capaz e responsável.
Ou seja, como bem notou CALAMANDREI ([In Verità e verosimiglianza nel processo civile, Rivista di diritto processuale, Padova, CEDAM, 1955]), há-de o convencimento do órgão jurisdicional operar-se à luz de critérios de racionalidade, utilizando-se as máximas da experiência, sendo de exigir que o juiz atente ao que acontece na normalidade dos casos, como parâmetro para concluir pela validade ou não de uma determinada pretensão, e não olvidando que tal convencimento do juiz não é asséptico, pois que, o juiz, ao formar seu convencimento sobre o facto, não age como ser inerte e neutro, desprovido de qualquer “pré-conceito”, preconceitos ou vontade anterior.
Em suma, e dito de uma outra forma, não sendo é certo as regras da experiência meios de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além da hipótese a que respeitem“, a verdade é que, “permitem eles muitas vezes atingir continuidades, imediatamente, apreensivas nas correlações internas entre factos, conformes à lógica, sem incongruências para o homem médio e que, por isso, legitimam a afirmação de que dado facto é a natural consequência de outro, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça. ([Cfr. ainda Ac. do STJ acima indicado e de 6/7/2011]).
Ora tudo o acabado de aduzir, coadjuvado pelos depoimentos das testemunhas acima indicadas, justifica e permite que o julgador considere como provada a factualidade inserta no item 2.14. da motivação de facto, no sentido de que “ ficou acordado entre Autora e Ré que a parte que cabia à Autora apenas seria paga após a Ré receber da C", não se traduzindo tal julgamento em manifesta utilização imprudente e insensata - porque ancorada em excessivo voluntarismo - de uma presunção judicial.
Desde logo, porque é claro que é sobre a vendedora/"C " que em última instância incide a responsabilidade única pelo pagamento da comissão “mãe”, posteriormente a dividir pelos diversos interessados/comissionistas intervenientes no negócio.
Depois porque, convenhamos, e em caso de dúvida, é para nós inequívoco que o facto controvertido, provado, é sem dúvida aquele que melhor casa e conduz a um maior equilíbrio dos interesses de todos os interessados/comissionistas intervenientes no negócio.
De resto, do teor da própria escritura de compra e venda [...], resulta/decorre a colocação da Autora e Ré em plano de igualdade no âmbito da intervenção no negócio, ao da mesma constar que “no presente negócio, houve intervenção das empresas de mediação imobiliária B, com a licença 7001-AMI e A, com a licença 7020-AMI…”
Acresce ainda que , e para além de , como vimos supra, não se mover de todo o exercício de poderes jurisdicionais por princípios de certeza absoluta ou inabalável, certo é que não é também aceitável que o julgador lance mão de imediato (à mínima dúvida, e quase que por mera comodidade/facilidade) ao princípio a que alude o artº 414º, do CPC, antes o deve fazer tão só quando a conjugação de toda a prova produzida conduz a uma dúvida bastante consistente e de todo inultrapassável [quando v. g. qualquer das versões fácticas em confronto se revelam altamente razoáveis, verosímeis e bem fundamentadas].
Na verdade, quando confrontado com meios de prova diversificados, cabe em princípio ao tribunal, no exercício da sua função, tomar posição, quer optando pela prova mais credível e mais imparcial, quer pela versão mais consentânea com as regras da experiência, da normalidade da vida e do senso comum.
Por último, importa não olvidar que, também da própria factualidade provada fixada pela primeira instância [...] decorre/resulta que a comissão [e de resto a maior] devida ao intermediário do mercado internacional apenas seria a este último paga depois de recebida pela Autora.
3.3.– Em conclusão, porque:
- Escalpelizada toda a prova produzida, testemunhal e documental, permite a mesma enveredar por convicção diversa da formada pelo tribunal a quo;
- A inclinação pela formação de convicção diversa da sufragada pelo tribunal a quo não pressupõe necessariamente uma utilização imprudente - e impregnada de um excessivo voluntarismo - de meras presunções ou de máximas da experiência, bem pelo contrário;
- É jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, que a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2.ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção ([Cfr. Ac. do STJ de 07-09-2017, Proc. nº 959/09.2TVLSB.L1.S1 [...]]);
- A conjugação de toda a prova produzida e acima escalpelizada, justifica e conduz, à luz do poder efectivo deste tribunal em sede de relativo à sua livre apreciação, a uma convicção totalmente oposta à do julgador de primeira instância, obrigando a mesma a diferente julgamento direccionado para concreto ponto de facto controvertido e impugnado;
Determina este tribunal, nos termos do artº 662º, nº 1, do CPC, e no seguimento da procedência da impugnação da decisão de facto deduzida pela recorrente, a modificação da decisão do tribunal a quoe relativa à matéria de facto nos seguintes termos:
Item 2.14 - Provado que “ acordado foi entre Autora e Ré que a parte da comissão que à primeira cabia seria paga após a Ré receber da vendedora C"”."
III. [Comentário] Aproveita-se este acórdão da RL para duas observações:
(i) O referido texto de Calamandrei (RDP 10 (1955-I), 164 ss.=Opere giuridiche V (1972), 615 ss.), ao traduzir Wahrscheinlichkeit por verosimiglianza (quando deveria ter traduzido por probabilità) acabou por criar nas doutrinas latinas alguma confusão entre a probabilidade e a verosimilhança. A probabilidade e a verosimilhança são, no entanto, conceitos totalmente diferentes, como, aliás, é comummente aceite:
-- A probabilidade é, numa das definições mais comuns, a frequência da verificação de um facto em função de um outro facto (pode determinar-se, por exemplo, a probabilidade de chover quando o céu está carregado ou a probabilidade da morte por asfixia em função das lesões que o cadáver mostra);
-- A verosimilhança é, tal como o seu étimo demonstra, uma aparência de verdade (e, em termos estritos, aquilo que é semelhante à verdade).
A diferença entre a probabilidade e a verosimilhança permite concluir nomeadamente que a verosimilhança de um facto nada tem a ver com a probabilidade desse facto. Por exemplo: alguém vê um vulto numa noite escura e forma a convicção de que se trata de um conhecido (ou de um desconhecido); trata-se de uma aparência de verdade que é imposta pelas circunstâncias em que foi feita a observação e que é obtida independentemente de qualquer probabilidade.
(ii) Têm surgido na doutrina portuguesa algumas opiniões que defendem que o standard da prova é a preponderância da probabilidade do facto. Trata-se de um legal transplant (neste caso, importado dos regimes de common law) que não é compatível com o regime português sobre a prova.
Há vários argumentos que sustentam esta posição, mas o mais convincente deles é a incompatibilidade desse standard de prova com a contraprova, que, como decorre do estabelecido no art. 346.º CC, consiste em tornar duvidoso um facto provado pela outra parte. Ora, começando a preponderância da probabilidade em 0.51 (ou em 51%), é fácil concluir que:
a) Uma preponderância da probabilidade de 0.51 permite uma dúvida de 0.49; é, em concreto, uma prova que contém uma certeza de 0.51 e uma dúvida de 0.49, ou seja, é uma prova que contém, nela mesma, uma contraprova; isto leva a concluir que a contraprova pode coexistir com a prova, o que é incompatível com a contraprova como meio de impugnação desta prova;
b) Uma preponderância da probabilidade deixa a contraprova sem âmbito de aplicação possível porque:
-- Se a contraprova baixar a probabilidade da prova até 0.51 (por exemplo, de 0.70 para 0.51), isso não é suficiente para impugnar a prova do facto, dado que continua a verificar-se a probabilidade prevalecente da sua prova;
-- Se a contraprova baixar a probabilidade da prova para 0.50 ou ainda para menos, isso não é tornar o facto duvidoso, mas antes tornar o facto não provado.
MTS