"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/06/2018

Jurisprudência 2018 (36)


Decisão estrangeira; execução;
sanção pecuniária compulsória


I. O sumário de RG 1/3/2018 (6432/06.3TBGMR-F.G1) é o seguinte: 

1 - São factos notórios aqueles que juiz, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, tem conhecimento, sem necessidade de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos e que, porque são conhecidos da generalidade das pessoas, surgindo, nessa medida, aos olhos de todos, revestidos do caráter de certeza, não carecem de alegação, nem de prova.

2 - Numa execução em que se visa a cobrança coerciva de 110.631,99 euros de capital, é facto notório que a retenção do recurso da decisão que decidiu a aplicação a essa execução da sanção pecuniária compulsória legal prevista no n.º 4 do art. 829º-A do CC, que ascende à taxa de 5% ao ano, acarreta prejuízo irreparável para o executado.

3 - A sanção pecuniária compulsória legal (n.º 4 do art. 829º-A do CC), aplica-se a todas as obrigações pecuniárias de soma ou quantidade, contratuais ou extracontratuais.

4 - Contrariamente à sanção pecuniária compulsória judicial (n.º 1 do art. 829-A), a sanção pecuniária compulsória legal, decorre da lei e é de funcionamento automático, sem necessidade de ser fixada na ação declarativa.

5 - Tendo essa sanção por finalidade compelir o devedor ao cumprimento, visando reforçar a soberania dos tribunais, o respeito pelas respetivas decisões e o prestígio da Justiça, nesta vertente, a mesma prossegue o interesse público, não estando na disponibilidade do exequente pedir ou deixar de pedir aquela sanção no requerimento executivo.

6 - Consequentemente, a sanção pecuniária compulsória é devida, independentemente de ser requerida no requerimento executivo.

7 - Declarar a executoriedade de uma sentença de um Estado Membro da União Europeia é o cumprimento de uma mera formalidade para que aquela tenha força executiva noutro Estado-Membro onde se pretende executá-la.

8 - Essa execução carece de obedecer às regras do processo executivo do Estado-Membro onde a sentença estrangeira é executada.

9 - A aplicação da sanção pecuniária compulsória legal à execução que tem por título executivo a sentença estrangeira que foi declarada executória, não contende com o mérito dessa sentença, antes visa prosseguir as finalidades referidas em 5) em relações ao tribunal português, onde foi instaurada a execução.
 

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A sentença e a decisão a que foi concedida executoriedade nos autos provêm de um tribunal alemão e, consequentemente, de um órgão judicial de um Estado – a Alemanha –, que tal como Portugal, faz parte da União Europeia.

Como tal, foi concedida executoriedade àquela sentença e decisão por aplicação do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho de 22 de dezembro de 2000, facto que não merece qualquer controvérsia entre as partes.

Este ato legislativo, de aplicação imediata nos estados membros, surgiu da necessidade de eliminar certas disparidades das regras nacionais em matéria de competência judicial e de reconhecimento de decisões judiciais, que dificultavam o bom funcionamento do mercado interno, tornando indispensável disposições que permitissem unificar essas regras e simplificar as formalidades com vista ao reconhecimento e à rápida e simples execução das decisões proferidas nos Estados-Membros (vide considerando 2 do Regulamento).

Postula-se que “a confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões proferidas num Estado Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, exceto em caso de impugnação” (cfr. considerando 16 do Regulamento).

Continua-se que “ a mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do procedimento para tornar executória num Estado-Membro uma decisão proferida noutro Estado-Membro. Para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos, sem a possibilidade do tribunal invocar por sua própria iniciativa, qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada” (cfr. considerando 17 do Regulamento).

Mediante o Regulamento em causa visou-se, assim, a criação de um único instrumento legislativo aplicável na ordem jurídica interna de todos os Estados-Membros da União Europeia (UE), de reconhecimento e de concessão de executoriedade de sentenças proferidas pelos órgãos judiciais desses Estados-Membros, por força a que estas fossem reconhecidas e suscetíveis de serem executadas em todo o espaço da UE, instrumento esse que se baseou na confiança recíproca na administração da justiça dentro da UE e que se caracteriza pela sua simplificação e rapidez, com vista ao bom funcionamento do mercado interno.

Note-se que uma coisa é o reconhecimento de uma sentença e outra a declaração da sua executoriedade.

O reconhecimento ou “confirmação” de uma sentença estrangeira é reconhecer-lhe, no Estado do foro os efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como ato jurisdicional, segundo a lei desse mesmo estado” ([
Ac. RC. de 09/05/2006, Proc. 1610/06, in base de dados da DGSI)].

Quanto ao reconhecimento, na concretização do considerando 16, o art. 33º do Regulamento estatui que “as decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo”.


Assim, quanto às decisões proferidas num Estado-Membro da UE, sendo que por “decisão compreende-se qualquer decisão proferida por um tribunal de um Estado-Membro independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação pelo secretário do tribunal do montante das custas do processo (art. 32º do Regulamento), estas são reconhecidas automaticamente na ordem jurídica dos restantes Estados-Membros, sem necessidade de se recorrer a qualquer processo de reconhecimento, operando caso julgado dentro de todos os Estados-Membros, onde são aplicáveis e reconhecidas.

No entanto, quanto àquelas que careçam de execução (não o carecerão, por exemplo, as ações de simples apreciação), esse Regulamento prevê que as mesmas, a fim de serem executados num outro Estado-Membro distinto daquele onde foram proferidas, carecerão de nele ser-lhes conferida executoriedade.

Esse processo para concessão de executoriedade é um processo rápido, em que o juiz apenas faz uma apreciação meramente formal, que passa por verificar se se encontram juntos aos autos os documentos a que alude o art. 53º do Regulamento.

Precise-se que esse controlo formal não passa pela análise do mérito da decisão estrangeira, posto que em caso algum estas podem ser objeto de revisão de mérito (art. 45º, n.º 1 do Regulamento), o que bem se compreende quando se pondera que por força do art. 33º, n.º 1 do Regulamento, estas são automaticamente reconhecidas em todos os Estados-Membros da UE e, como tal, adquirem na ordem jurídica de todos esses Estados, força de caso julgado, tal como o adquiriram na ordem interna do Estado de origem onde foram proferidas.

Sequer tem lugar a verificação da aferição dos motivos referidos nos arts. 34º e 35º do Regulamento, em que o reconhecimento da sentença pode ser recusado, entre outros casos, quando o decidido nessa sentença for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido – essa questão apenas pode ser suscitada em sede de recurso.

Em síntese, a declaração da executoriedade de uma sentença estrangeira implica uma apreciação meramente formal, no sentido de se verificar se estão juntos ao processos todos os documentos exigidos pelo Regulamento para que a declaração dessa executoriedade ocorra.

Por último, declarar a executoriedade de uma sentença estrangeira é o cumprimento de uma formalidade para que a mesma tenha força executiva no Estado-Membro onde se pretende executá-la e que é distinto daquele onde foi proferida (23), com vista a nele ser executada de acordo com as regras executivas próprias do Estado-Membro onde se promove a execução.

Assente nestas premissas, fácil é de concluir que contrariamente ao que pretende a apelante, a aplicação da sanção pecuniária compulsória a que alude o art. 829º-A, n.º 4 do CC. não envolve manifestamente qualquer violação do princípio da segurança jurídica, designadamente por violação dos arts. 36º e 49º do Regulamento.

Com efeito, a aplicação daquela sanção é uma decorrência automática da apelante não ter cumprido voluntariamente a decisão do tribunal alemão que a condenou a pagar à exequente uma prestação em moeda corrente, mais concretamente, a quantia de 110.631,99 euros, acrescida de juros moratórios, às taxas sucessivas fixadas nessa decisão, forçando a exequente a instaurar a presente execução.

Trata-se de uma consequência prevista pela lei nacional e que nada tem a ver com o mérito da decisão proferida pelas instâncias judiciais alemãs, cuja decisão permanece intocada quanto ao respetivo mérito.

O Tribunal português, que declarou executória aquela decisão das instâncias judicias alemãs e que tem de executar essa decisão de acordo com as normas de processo civil nacionais, mediante o instituto da sanção pecuniária compulsória pretende compelir/forçar a executada a cumprir, levando-a a respeitar a Justiça em geral e, em particular, a nacional, que ao conferir força executória à decisão das instâncias judiciais alemãs, ordenou à executada para que desse cumprimento a esse título executivo.

Trata-se de pressionar a executada a pagar a dívida e a respeitar o título.

É a ordem emanada pela instância judicial nacional que a executada, com o seu incumprimento, está a desrespeitar e é o prestígio deste, a sua soberania e respeito pelas suas decisões que aquela está a ferir, não as da Justiça Alemã, cujo aparelho de justiça nem sequer está a ocupar, mas antes o nacional. Aliás, metade da sanção pecuniária compulsória devida pela executada reverterá para o Estado português e não para o Alemão.

Pretende a apelante que assim não é e invoca em defesa da sua tese o disposto no art. 49º do Regulamento, mas sem razão manifesta.

Na verdade, estabelece aquele normativo que “as decisões estrangeiras que condene, em sanções pecuniárias compulsórias só são executórias no Estado-membro requerido se o respetivo montante tiver sido definitivamente fixado pelos tribunais do Estado-Membro de origem”.

Este normativo tem em vista a diversidade da legislação interna dos vários Estados-Membros e visa acautelar aquelas situações em que esses Estados tenham instituídas sanções pecuniárias compulsórias judiciais, como é o caso nacional em relação ao n.º 1 do art. 829º-A do CC.

Porque o Estado-Membro a quem é pedida a declaração da executoriedade da sentença estrangeira não pode entrar no mérito dessa decisão (art. 45º, n.º 2 do Regulamento), prevê-se que a decisão estrangeira, quando nela sejam fixadas sanções pecuniárias compulsórias judiciais, fixem o montante líquido dessa sanção.

Esta exigência decorre da circunstância de, caso assim não fosse, após a declaração da executoriedade da sentença estrangeira, esta não poder ser executada quanto à dita sanção, dada a sua iliquidez – é isto e só isto que resulta desta norma.

Esta norma nada tem a ver com o assunto aqui em análise, que se reporta, única e exclusivamente, à aplicação da sanção pecuniária compulsória de natureza legal, prevista na ordem jurídica nacional no n.º 4 daquele art. 829º-A do CC, e que considera, ex lege, automaticamente aplicáveis a todas as execuções para pagamento de quantia certa que sejam instauradas em Portugal com vista a compelir o executado a cumprir.

Trata-se de consequência legal que, como dito, nada tem a ver com a ação declarativa que reconheceu a existência da dívida, onde não tem (sequer deve) ser peticionada, sequer o devedor condenado a cumpri-la, mas que decorre de uma lei nacional que a executada como pessoa coletiva de direito nacional não pode, sequer deve, desconhecer, porque a ela estão sujeitos todos aqueles que sejam executados na ordem jurídica nacional com vista à cobrança de obrigações em dinheiro corrente."

III. [Comentário] A RG decidiu bem, considerada a equiparação entre decisões nacionais e decisões estrangeiras como título executivo, agora consagrada expressamente no art. 41.º, n.º 1 2.ª parte, Reg. 121572012 (cf. Rauscher, EuZPR-EuIPR (2016)/Mankowski, Art. 55 Brüssel Ia-VO 12).

A aplicação da sanção pecuniária compulsória do Estado da execução pode originar algumas dificuldades quando o agora executado já tenha sido condenado a uma idêntica sanção no Estado de origem. Cabe ao tribunal da execução verificar se a cumulação das duas sanções compulsórias constitui uma cumulação insuportável para o executado (cf. Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht (2011), Art. 49 EuGVO 3).

MTS