"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/06/2018

Jurisprudência 2018 (29)



Indeferimento liminar;
contraditório diferido


1. O sumário de RC 27/2/2018 (5500/17.0T8CBR.C1) é o seguinte:

No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento (despacho preliminar), além do mais porque a lei prevê o contraditório diferido, dada ampla admissibilidade legal de recurso, independentemente do valor e da sucumbência, e em situação de igualdade das partes.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dispõe o art. 3 nº 3 do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

O Tribunal Constitucional tem defendido que o princípio do contraditório se integra no direito de acesso aos tribunais, consagrado no art. 20 da CRP. Tal como se sublinhou no Acórdão nº 358/98 (Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998),“o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, nº 1, da Constituição”.

O princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de – “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras” (cf. acórdão do TC nº 177/2000, DR, II série, de 27/10/2000).

A norma do nº 3 do art. 3º do CPC, introduzida pela Reforma de 1995/96, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialéctica ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo.

A uma concepção válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehör” germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo (cf. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto”, 1996, pág. 96).

O art. 3 nº 3 do CPC consagra expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, garantindo efectivamente às partes a sua participação efectiva no desenvolvimento de todo o litigio, designando-se de “contraditório dinâmico“.

Por outro lado, tem-se entendido que a violação do contraditório gera nulidade processual, a apreciar nos termos gerais (art.195 CPC - anterior art.201), por ser susceptível de influir no exame e decisão da causa (cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol.1º, 1999, pág. 9; Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 48).

Coloca-se, porém, a questão de saber se a exigência de audição prévia também funciona (ou se funciona sempre) em relação ao despacho de indeferimento liminar.

Duas soluções têm sido apontadas:

a) Uma no sentido de que o indeferimento liminar não é excepção, logo impõe-se sempre um depacho pré-liminar de audição (cf., por ex., decisões singulares da RC de 5/12/2017 (proc. nº 6097/17) e de 29/1/2018 (proc. nº3550/17), disponíveis em www dgsi.pt).

b) Outra corrente para quem, em caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor/exequente sobre o motivo do indeferimento (cf Ac STJ de 24/2/2015, proc. nº116/14.6YLSB, Ac RP de 4/11/2008, proc. nº 0826336, Ac RL 27/9/2017, proc. nº 10847/15, Ac RL de 9/11/2017, proc. nº 1375/04, Ac TCA do Sul de 18/6/2015, proc. nº08710/15, disponíveis em wwwdgsi.pt).

Adere-se, em tese geral, a esta orientação, com base nos seguintes tópicos de argumentação:

Através da apresentação em juízo da petição ou requerimento inicial o autor exerce o direito de acção, iniciando-se a relação jurídico-processual apenas relativa ao autor, pois o “conflito de interesses que a acção pressupõe” (art.3 nº1 CPC) só se inicia com o chamamento à “lide” do réu, e por conseguinte apenas a partir daqui é que nasce o que é costume designar-se por “estrutura dialéctica do processo”.

O despacho de indeferimento liminar é uma espécie dentro do género da “rejeição liminar”, e ocorre no caso de inviabilidade “lato sensu” da pretensão (onde se insere a falta insuprível de pressupostos processuais), em que a lei elenca taxativamente as causas relevantes da rejeição.

Neste contexto, a imposição de um despacho prévio ao despacho de indeferimento liminar parece ser em si mesmo contraditório porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faz sentido a parte ser ouvida preliminarmente (cf. argumento do Ac STJ de 24/2/2015).

Em segundo lugar, não parece que se deva, em rigor, falar de “decisão surpresa “ na prolação de despacho de indeferimento liminar por falta insuprível de pressuposto processual porque é a própria lei que o prevê expressamente como causa específica de rejeição.

Com efeito, a lei postula as causas de indeferimento liminar, consubstanciando-se em situações de inviabilidade “lato sensu”, e como tal insupríveis, tornando inútil qualquer instrução e discussão posterior, patenteando-se, então, ser desnecessária a audição prévia sobre um projecto de indeferimento.

Depois, nos casos de indeferimento liminar a lei concede ao autor a possibilidade de juntar nova petição, considerando-se proposta aquando da primeira (art. 560 e 690 nº 1 CPC), precisamente porque a instância não se estabilizou.

Nas situações de indeferimento liminar, a lei difere o contraditório na medida em que se prevê sempre a admissibilidade do recurso, independentemente do valor e da sucumbência e se determina que o réu seja citado para os termos do recurso e da causa (arts.629 nº3 c) e 641 nº7 CPC). Daqui parece resultar a dispensa da audição prévia do autor, porque desnecessária, permitindo-se o contraditório diferido e em situação de igualdade.

A decisão-surpresa (art. 3 nº 3 CPC) pressupõe que a parte não possa perspectivar como sendo possível, ou seja, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse prognosticado no processo. Mas como se decidiu no Ac STJ de 17/6/2014, proc. nº 233/2000, em www dgsi.pt, “o art.3 do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado no direito alemão, mas apenas como possibilidade de, em plena igualdade as partes, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.

Constituindo a incompetência material do tribunal uma excepção dilatória insuprível (arts. 577, 578 CPC) não se pode afirmar que a recorrente não pudesse prognosticar o seu conhecimento oficioso, tanto mais que a questão tem sido objecto de elaboração jurisprudencial que, de forma consolidada e uniforme, defere a competência material aos tribunais administrativos (cf., por ex., Ac. T. Conflitos de 2/10/2008 (proc. nº 010/08), Ac. T. Conflitos de 27/4/2017 (proc. nº 037/16), disponíveis em www dgsi.pt)."

[MTS]