Competência internacional;
insolvência; Reg. 1346/2000
1. O sumário de RL 25/1/2018 (10939/16.6T8SNT-A.L2-6) é o seguinte:
A residência habitual da requerida no Reino Unido não afasta a competência dos tribunais portugueses para abrirem um processo territorial de insolvência, conforme disciplina o n.º 2 do artigo 3º do Regulamento (CE) nº 1346/2000, visto ser a única titular de uma sociedade comercial com sede em Portugal, com actividade em Portugal e em que é a única Administradora.
2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"O NB, SA, com sede na Avenida L..., n.º ..., 1...-1... Lisboa, [...] intentou a presente acção declarativa com processo especial, requerendo a declaração de insolvência de IM, divorciada, [...], com última residência conhecida em Portugal na Avenida R e, presentemente, no Reino Unido, Londres.
Alega para tanto que é credor da requerida na quantia total de €10.919.892,90 (dez milhões, novecentos e dezanove mil, oitocentos e noventa e dois euros e noventa cêntimos) emergente de um Contrato de Financiamento n.º ROC.05936/13 até ao montante máximo global de € 10.000.000,00 (dez milhões de euros), ao qual acrescem juros.
O incumprimento ocorreu em Março de 2015. Não é conhecida fonte de rendimentos da requerida, nem bens suficientes para fazer face ao montante da dívida. [...]
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Questões a decidir: [...]
Importa [...] apreciar as seguintes questões suscitadas pela apelante:
a). [...]
b).– Se a decisão recorrida, ao considerar competente o tribunal português para abrir um processo territorial de insolvência contra a recorrente, nos termos do artigo 3º nº 2 do Regulamento (CE) nº 1346/2000, incorreu em erro de julgamento? [...]
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[...] Na perspectiva da apelante, uma vez que reside em Londres pelo menos desde Março de 2014 e não exerce qualquer actividade profissional, não poderiam existir quaisquer dúvidas que era aos órgãos jurisdicionais do Reino Unido que caberia abrir um processo principal ou universal, pelo que bem andou o Tribunal a quo quando se considerou incompetente para abrir um processo principal ou universal contra a ora Recorrente. A única possibilidade que restava era, pois, a da abertura de um processo territorial contra a ora Recorrente.
De acordo com o artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento: “No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território”.
Esta disposição é complementada pelo número 4 desse mesmo artigo, na qual se estabelece o seguinte: “Nenhum processo territorial de insolvência referido no n.º 2 pode ser aberto antes da abertura de um processo principal de insolvência ao abrigo do n.º 1, salvo se:
a) – Não for possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do n.º 1 em virtude das condições estabelecidas pela legislação do Estado-Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do devedor;
b) – A abertura do processo territorial de insolvência for requerida por um credor que tenha residência habitual, domicílio, ou sede no Estado-Membro em cujo território se situa o estabelecimento, ou cujo crédito tenha origem na exploração desse estabelecimento.”
A apelante insurge-se, no essencial, contra o entendimento perfilhado pelo tribunal recorrido de que tem um estabelecimento em Portugal.
É que o conceito de estabelecimento utilizado nos números 2 e 4 deste artigo 3.º encontra-se definido no artigo 2.º, alínea g), do mesmo Regulamento (o Regulamento nº 1346/2000 foi substituído pelo Regulamento nº 2015/848 de 20 de maio de 2015, que só é aplicável aos processos de insolvência abertos a partir de 26.06.2017, por força do artigo 84º), sendo a seguinte a sua definição: “o local de operações em que o devedor exerça de maneira estável uma actividade económica com recurso a meios humanos e a bens materiais”. Ou seja, para que se possa considerar que um determinado devedor tem um estabelecimento num determinado Estado-Membro este (i) tem que exercer uma actividade económica, (ii) de forma estável, recorrendo para tanto (iii) a meios humanos e (iv) a bens materiais.
Entende a apelante que da análise dos factos dados como provados não resulta que tem um estabelecimento em Portugal, e nem sequer se indicia a verificação dos requisitos de que depende o reconhecimento da existência de um estabelecimento em Portugal. Bem pelo contrário, as referências relativas à situação da ora Recorrente apontam para a não prossecução de qualquer actividade económica e para a ausência de rendimentos ou bens materiais (cfr. pontos 6 e 7 dos factos provados). Não seria, aliás, expectável que alguém com 73 anos de idade e que e só formalmente exerceu no passado alguma actividade profissional exercesse agora uma actividade económica, de forma estável, num país em que nem sequer reside. E se esta actividade económica não resulta provada ou sequer indiciada, o recurso a meios humanos e materiais na sua prossecução não foi sequer alegado pela ora Recorrida. Na verdade, em momento algum foi indicado um único trabalhador ou um único bem material que pudesse estar ao serviço de uma tal actividade económica e, ainda que o tivesse sido, só o facto de não constar dos factos dados como provados deveria levar à sua desconsideração para este efeito.
A decisão recorrida, na parte em que apreciou a exceção da incompetência internacional, é do seguinte teor:
«Invocando a sua residência habitual no reino Unido, a requerida sustenta a incompetência dos tribunais portugueses para conhecer do pedido de declaração da sua insolvência no Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência.
Enquadra legalmente a esta tese no disposto no art.º 3º, n.º 1 deste Regulamento que define: “os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária.
Ate aqui, parece-me que estamos todos de acordo.
Todavia, afigura-se-nos que requerida pretende complicar aquilo que é absolutamente simples. Explicamos.
Ainda que aceitemos que, presentemente, a residência habitual da requerida é no Reino Unido, tal não afasta a competência dos tribunais portugueses para abrirem um processo territorial de insolvência, conforme disciplina o n.º 2 do citado normativo que define: “No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor, incluindo os casos em que o processo for bens do devedor que se encontrem neste último território.”
É o caso.
Não há conflito de competência entre Estados-Membros, nem o presente processo visa apreensão transfronteiriça de bens.
Antes, o credor e os bens indicados como propriedade da requerida situam-se em Portugal, não lhe sendo conhecidos bens e/ou credores noutros Estados-membros.
Estamos em face de um caso, simples, de insolvência de um cidadão nacional que o Regulamente não pretende acautelar, relegando para a lei de insolvência nacional de cada Estado-membro a sua regulação e procedimento, intenção que expressamente assume no seu art.º 3º, n.º 2 do Regulamento.
Pelo exposto, e sem necessidade de outros considerandos, julgamos este tribunal competente para apreciar o pedido apresentado pelo credor requerente.»
Dispõe o n.º 1 do artigo 294.º do CIRE que se “o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os bens situados em território português”. No n.º 2 do mesmo artigo prevê-se ainda que “se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea d) do n.º 1 do artigo 65.º do Código do Processo Civil - actual artigo 62.º n.º 1 alínea c), que determina como fatores de atribuição da competência internacional a existência de um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa.
Dada a manifesta simplicidade da questão, que se prende com a noção de estabelecimento que não é puramente nacional, de forma a tornar-se transversal a todos os sistemas jurídicos envolvidos, pois conforme é realçado pela recorrida o que o Regulamento pretende é que o insolvente disponha de activos no Estado onde corre a insolvência territorial, que correspondam ao exercício, ainda que indirecto, de alguma actividade económica, ou seja, que exijam alguma administração. A lei europeia não exige que seja um estabelecimento no sentido clássico do termo: uma padaria, uma fábrica ou um restaurante.
E este conceito mais amplo e funcional compreende a hipótese em apreço, de que a requerida é a única titular de uma sociedade comercial com sede em Portugal, com actividade em Portugal e em que é a única Administradora, conforme resulta dos factos provados número 5 a 11.
Consequentemente, é inteiramente correta a decisão do tribunal recorrido de se declarar competente para apreciar o pedido de insolvência da apelante."
3. [Comentário] No âmbito do Reg. 1346/2000, a regra é a de que só deve ser instaurado um único processo de insolvência contra o devedor insolvente nos tribunais do Estado-Membro no qual esse devedor tenha o centro dos interesses principais. É o que decorre do disposto no art. 3.º, n.º 1, Reg. 1346/2000.
No entanto, em determinadas circunstâncias, além desse processo de insolvência, podem existir outros processos: são os chamados processos secundários ou territoriais (cf. art. 3.º, n. 3 e 4, Reg. 1346/2000). Nos termos do art. 3.º, n.º 2, Reg. 1346/2000, um processo de insolvência secundário ou territorial só pode ser instaurado num Estado diferente daquele em que o devedor tenha o centro dos seus interesses principais quando este devedor possua nesse mesmo Estado um estabelecimento.
Atendendo à definição de estabelecimento que consta do art. 2.º, al. h), Reg. 1346/2000 (estabelecimento é o local de operações em que o devedor exerça de maneira estável uma actividade económica com recurso a meios humanos e a bens materiais), pode efectivamente concluir-se que a devedora tem um estabelecimento em Portugal, dado que essa devedora é titular de uma sociedade portuguesa.
Sendo assim, pode concluir-se que é possível abrir em Portugal um processo territorial contra a devedora (cf. art. 3.º, n.º 2, Reg. 1346/2000). Aliás, mesmo depois da abertura de um processo principal contra a devedora no Reino Unido, seria sempre possível abrir em Portugal um processo secundário contra essa mesma devedora (cf. art. 3.º, n.º 2 e 3, e 16.º, n.º 2, Reg. 1346/2000).
MTS