"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/06/2018

Jurisprudência 2018 (42)

 
Embargos de terceiro;
indeferimento liminar; caducidade


1. O sumário de RL 8/2/2018 (2768/15.0T8CSC-A.L1-6) é o seguinte:

1 – Deduzindo o embargante os embargos de terceiro decorridos que estejam 30 dias após a realização da diligência que ofende a sua posse ou qualquer direito de que se arrogue titular, e para obviar ao respectivo e imediato indeferimento liminar com fundamento na respectiva extemporaneidade, apenas se lhe exige que alegue na petição inicial que teve conhecimento da ofensa quando se mostravam já decorridos os referidos 30 dias.

2 – Não dispondo o tribunal, na altura do despacho liminar , de elementos que apontem com segurança para a inexactidão da alegação do embargante no tocante ao conhecimento do acto ofensivo da sua posse, vedado está o julgador de proferir de imediato despacho de indeferimento liminar dos embargos com fundamento na respectiva extemporaneidade;

3 – De resto, o despacho liminar a que se refere a 1ª parte do artº 345º do CPC deve no essencial ser proferido em face da simples inspecção da petição inicial.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"A questão que [...] importa apreciar é a de saber se o Exmº Juiz a quo podia e devia, desde logo em sede de despacho liminar, proferir decisão de indeferimento, considerando /concluindo para tanto que, “Tendo os presentes embargos dado entrada em juízo em 08-06-2016, fácil é de constatar que os mesmos se mostram intempestivos. [...] 
 
Alegam, contudo, os embargantes que apenas tomaram conhecimento da diligência em 20-05-2016, através de uma das Sociedades notificadas do arrolamento. [...]"

Quid Juris?

Ora bem.

Nos termos do n.º 1 do artigo 342º do Código de Processo Civil, “Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

Por sua vez, dispõe o artigo 344º do Cód. de Processo Civil, nos respectivos nºs 1 e 2, que “1- Os embargos são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo do direito do embargante”, e que “2- O embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas “.

Já o dispositivo seguinte, o 345º, e com a epígrafe de “Fase introdutória dos embargos“, reza que “Sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante”.

Por último, e com interesse também para o thema decidendum, reza o artigo 343, n.º 2, do Código Civil, que “Nas acções que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o autor teve conhecimento de determinado facto, cabe ao réu a prova de o prazo ter já decorrido, salvo se outra for a solução especialmente consignada na lei “.

Ora, em face do conteúdo das disposições legais acabadas de transcrever, mais exactamente do artº 344º do CPC e do artº 343º, nº 2, do CC, manifesto é que o prazo para o lesado deduzir o incidente de oposição mediante embargos de terceiro é um prazo de caducidade, qual excepção peremptória cujos factos subjacentes devem pelo embargado ser alegados e provados. ([
Vide Ac do STJ, de 30-11-2006, Proc. nº 06B4244, sendo Relator SALVADOR DA COSTA [...]])

Porém, quando ainda no âmbito da fase introdutória dos embargos [a que antecede o despacho de recebimento dos embargos, e o qual determina a notificação das partes primitivas para contestar - artºs 345º a 348º, nº 1, do CPC], admite-se que possa/deva o juiz conhecer, oficiosamente [com base na alegação do embargante e nos elementos já constantes do processo ao qual são os embargos apensados - cfr. nº 1 do artº 344º, do CPC] da tempestividade da apresentação dos embargos.

É que, rezando o artº 345º do CPC, e como vimos supra, que “Sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos", manifesto é que pode/deve o juiz sindicar a tempestividade dos embargos, sendo a manifesta extemporaneidade dos mesmos motivo para a imediata prolação de decisão de indeferimento liminar da petição, não se justificando consequentemente a realização de qualquer diligência probatória.

Dir-se-á que o disposto no artº 345º, primeira parte, do CPC consubstancia/consagra como que uma das soluções especiais a que alude a parte final do nº 2 do artº 343º do Código Civil, podendo e devendo o tribunal conhecer ex officio da excepção atinente à propositura de acção após o decurso do prazo de 30 dias do conhecimento da ofensa pelo embargante.

Mas, escapando os embargos ao despacho de indeferimento liminar da petição, e sendo consequentemente proferido despacho liminar de prosseguimento do processo, pode ainda assim seguir-se, após a realização das diligências probatórias necessárias [daí a necessidade , no entender de Lebre de Freitas ([In  A Acção Executiva, Depois da reforma da reforma, 5ª Edição, Coimbra Editora, pág. 292]), de o embargante, na petição inicial, oferecer prova sumária dos factos que funda a sua pretensão, bem como da data em que teve conhecimento da penhora, se sobre ela já tiverem decorrido 30 dias] a prolação de decisão de rejeição dos embargos, por extemporâneos, se analisada a prova sumária [com base em juízo de simples probabilidade] produzida (a que alude o artº 345º, do CPC), se convencer o Juiz de que foram os embargos deduzidos mais de 30 dias após o conhecimento, pelo embargante, do acto que o mesmo considera ofensivo do seu direito. ([Cfr. José Lebre de Freitas, in CPC Anotado, vol. 1º, pág. 622 , Lopes de Rego, in Comentários ao CPC, vol. I, 2º ed., pág. 328 e  Salvador da Costa, in Os Incidentes da Instância, pág. 195]).

É que, como é consabido, desdobra-se o incidente dos embargos de terceiro em duas fases, sendo uma de feição introdutória (a que vai desde a sua dedução até ao despacho de recebimento ou de rejeição dos embargos), e, uma outra, de estrutura predominantemente contraditória [a qual segue-se à prolação do despacho de recebimento, e assume a natureza de uma verdadeira acção declarativa, a tramitar segundo os termos do processo comum, cfr. artºs 347º/348º, ambos do CPC], sendo que, no âmbito da primeira tem lugar tão só uma avaliação de probabilidade [a efectuar em função dos termos da petição inicial, e cabendo ao embargante o ónus de alegar matéria de facto favorável à sua legitimidade, à viabilidade e à tempestividade da acção], utilizando em rigor o legislador no artº 345º, in fine, do CPC, a mesma fórmula que utiliza outrossim em sede de procedência das providências cautelares ( artº 368º, nº1,do CPC ) .

Ou seja, distinguindo-se é certo o despacho liminar [o da 1ª parte do artº 345º do CPC ] do despacho de recebimento e/ou rejeição [o da 2ª parte do artº 345º, do CPC ], certo é que um e outro são despachos colocados no início do processo; têm a mesma função geral: obstar ao andamento de processos que não oferecem condições de viabilidade. Mas a função específica é diferente” [cfr. ensinamentos de José Alberto dos Reis ([In  Processos Especiais, Vol. I, Coimbra Editora, 1982, pág.440]), em sede de anotação ao artº 1037º do CPC à data em vigor, mas que, no nosso entender, continuam ainda hoje a manter a sua actualidade, fazendo todo o sentido - desde que aplicados com as necessárias adaptações - em face do disposto no artº 345º do actual CPC].

Por outra banda, e ainda segundo José Alberto dos Reis, embora ambos proferidos no inicio do processo [ou melhor, na sua fase INTRODUTÓRIA], certo é que o da 2ª parte do artº 345º do CPC está já num momento posterior àquele em que se situa o despacho liminar [rectius o da 1ª parte do artº 345º, do CPC], razão porque, sendo este último proferido em face da simples inspecção da petição inicial, já o segundo [o da 2ª parte do artº 345º, do CPC] é emitido depois de inquiridas testemunhas e examinadas as outras provas oferecidas [ou seja, depois de realizadas as diligências probatórias necessárias, nos termos do actual artº 345º, as quais têm por desiderato essencial aferir da verificação, ou não, de uma séria probabilidade da existência do direito invocado pelo embargante].

Em suma, e tal como ensina José Alberto dos Reis, sendo ambos os despachos compatíveis [o despacho liminar e o despacho de recebimento e/ou rejeição], temos assim que os embargos de terceiro, na fase INTRODUTÓRIA, tem de vencer dois obstáculos preliminares, “se esbarra no primeiro, já não chega ao segundo; se vence o primeiro, pode encalhar no segundo”.

No nosso entendimento, a percepção que José Alberto dos Reis fazia dos processamento dos embargos de terceiro, é também aquela que mais recentemente é advogada por Salvador da Costa, para tanto explanando na sua obra “Os Incidentes da Instância” ([In  Os Incidentes da Instância, 5ª Edição, Actualizada e Ampliada, Almedina, págs. 225/226]), que:

“No regime actual, por força do disposto no artigo 354º [o qual corresponde ao artº 345º do CPC, aprovado o pela Lei nº 41/2013, de 26/6], a petição de embargos de terceiro deve ser liminarmente indeferida se não for apresentada em tempo, pelo que a excepção da caducidade do direito de acção é de conhecimento oficioso, se os factos respectivos resultarem da petição inicial, configurando-se, assim, neste procedimento, mais uma excepção à regra constante do nº 2 do artº 333º do Código Civil.

Tendo em conta o disposto no artº 333º, nº 2, trata-se de uma solução que não se conforma como disposto no artigo 496º, segundo o qual, o tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torna dependente da vontade do interessado.

Tendo em conta o disposto no artº 342º, nº 2, do Código Civil, é ao embargado que incumbe ónus de alegação e de prova da extemporaneidade dos embargos, e, não se provando a data do conhecimento do facto lesivo, devem considerar-se tempestivamente instaurados.

Assim, se apenas se verificar a extemporaneidade dos embargos de terceiro face à data do acto de penhora, ainda que o embargante não tenha alegado a data em que dela teve conhecimento, não pode o juiz rejeitá-los liminarmente, isto é, não pode conhecer oficiosamente da excepção peremptória em causa antes de sobre isso ter exercido o contraditório, porque o ónus de demonstrar a efectiva extemporaneidade recai sobre o embargado.

Em consequência, só após a contestação dos embargos de terceiro é oportuna a decisão sobre a extemporaneidade ou não dos embargos com base nos articulados por ambas as partes, na fase da condensação se já houver factos assentes relevantes para o efeito”.

Aqui chegados, e munidos dos ensinamentos de autores conceituados, é nossa convicção que a explanação de Salvador da Costa é aquela que melhor salvaguarda todos os interesses em jogo no âmbito dos embargos de terceiro, e aquela que melhor compatibiliza/harmoniza o cumprimento dos normativos substantivos do Código Civil - os seus artºs 343º, nº1 e 333º - com a observância também das disposições adjectivas do CPC - dos seus artºs 345º e 348º -, ou seja, e tal como recentemente também sufragado pelo Tribunal da Relação de Guimarães (Cfr. Ac. de 16-02-2017, proferido no Proc. nº 1464/16.6T8BCL-E.G1 [...]), “O tribunal perante o qual sejam deduzidos deve pronunciar-se oficiosamente sobre a caducidade do exercício do direito de embargar, desde que da petição inicial constem os factos que demonstrem de forma inequívoca em que data o embargante teve conhecimento da diligência ofensiva da sua posse ou do seu direito, e sobre a essa data já tenham decorridos 30 dias (reportados àquele em que a acção entrou em juízo)”.

Em termos conclusivos, dir-se-á que, deduzindo o embargante os embargos de terceiro decorridos que estejam 30 dias após a realização da diligência que ofende a sua posse ou qualquer direito de que se arrogue titular, e para obviar ao respectivo e imediato indeferimento liminar com fundamento na respectiva extemporaneidade, apenas se lhe exige que alegue na petição inicial que teve conhecimento da ofensa quando se mostravam já decorridos os referidos 30 dias.

Porém, ultrapassado o obstáculo do imediato indeferimento liminar [porque em face do alegado na petição inicial a sua prolação não se justificava, não existindo motivo], mas não sendo claro para o Juiz que o alegado pelo embargante relativamente ao conhecimento da ofensa corresponde à realidade, também no âmbito do despacho a que se refere a 2ª parte do artº 345º, do CPC, e caso não esteja convencido da tempestividade dos embargos [quer porque não indicou o embargante na petição inicial qualquer prova relacionada com tal questão - não observando portanto o disposto no artº 293º, nº 1, do CPC -, quer porque, ainda que a tenha indicado, uma vez produzida não foi possível ainda assim ao julgador formar uma convicção segura que apontasse para a extemporaneidade dos embargos], então não deve ser proferido despacho de rejeição dos embargos, antes se impõe prosseguir com o incidente, notificando-se as partes primitivas para contestar .

E, porque já então no âmbito da fase contraditória dos embargos, caberá ao embargado invocar a caducidade, competindo-lhe outrossim o ónus da respectiva prova - cfr. artº 343º, do Código Civil.

Postas estas breves considerações, importa de imediato atentar que in casu está em causa a dedução pelos apelantes de um incidente de embargos de terceiro com feição repressiva, razão porque o que releva sobremaneira em sede de aferição da tempestividade para a respectiva dedução é a data em que o embargante teve conhecimento efectivo [interpretação que assenta na letra da lei, e que respeita o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição, tal como o decidido pelo Tribunal Constitucional ([Vide Ac do Trib. Const.  nº 468/2001, Proc. nº 191/2001, 2ª Secção, sendo Relatora a Exmª Consª Maria Fernanda Palma e in DR I Serie nº 276 de 28/11/2001]) do acto ofensivo da sua posse.

Ora, tendo os embargantes, logo em sede de petição inicial - qual antecipação de impugnação motivada de excepção a deduzir oportunamente pelos embargados em sede de contestação - alegado que apenas em 20/5/2016 tiveram conhecimento do arrolamento - o acto ofensivo da sua posse -, das acções, manifesto é que, em face da simples inspecção da petição inicial, oportuno e apropriado não é enveredar pelo imediato indeferimento liminar da petição com fundamento na extemporaneidade dos embargos.

É que, para todos os efeitos, não dispõe o julgador, no referido momento, de quaisquer elementos que lhe permitam concluir que a alegação do embargante alusiva ao conhecimento do acto ofensivo da sua posse é inexacta, tendo ao invés o embargante tido efectivo conhecimento do acto ofensivo da sua posse ainda no decurso dos 30 dias subsequentes ao arrolamento.

Ou seja, temos assim que, em rigor, a alegação dos embargantes de que apenas tiveram conhecimento do acto ofensivo do seu direito em 20/5/2016, não merecia de imediato e logo em sede de despacho liminar considerar-se como contrariada [não bastando para o referido efeito a mera dúvida] por meio de prova [constante dos próprios embargos ou do processo principal ] demonstrativo de não ser a mesma verdadeira."
 
3. [Comentário] O decidido pela RL está totalmente correcto, embora bastasse invocar o disposto no art. 343.º, n.º 2, CC para fundamentar o decidido. Efectivamente, estabelecendo este preceito que, nas acções que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o autor teve conhecimento de determinado facto, cabe ao réu a prova de o prazo já ter decorrido, pode concluir-se deste regime o seguinte:
 
-- Dado que o ónus da prova da caducidade cabe ao embargado, nunca é exigível ao embargante que prove que requereu em tempo os embargos; assim, nunca pode verificar-se o indeferimento liminar da petição de embargos com base na falta de prova pelo embargante de que os embargos foram requeridos em tempo;

-- Dado que os embargos de terceiro não incidem sobre matéria excluída da disponibilidade das partes, a caducidade da sua propositura nunca é de conhecimento oficioso (cf. art. 333.º, n.º 1, CC); também por esta razão nunca pode haver indeferimento liminar daqueles embargos com base naquela caducidade (diferentemente, Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 9.ª ed. (2017), 176).
 
MTS