Justo impedimento
1. O sumário de RP 5/3/2018 (4021/16.3T8AVR-A.P1) é o seguinte:
I - A aferição dos pressupostos do “justo impedimento” envolve um ‘juízo de censura’ em cuja avaliação não se pode prescindir do critério enunciado no n.º 2 do artigo 487.º do CC, de acordo com o qual a culpa é o não cumprimento de um dever jurídico: o dever de diligência, de conteúdo indeterminado, mas determinável em cada situação concreta, sendo a diligência juridicamente devida a que teria um bom pai de família colocado nas circunstâncias concretas em que se encontrava o agente.
II - A denominada ‘culpa profissional’ não tem autonomia no critério legal enunciado no ponto anterior, exigindo-se ao bom pai de família profissional uma perícia, conhecimentos e qualificações que lhe são exigíveis, ainda que não sejam espectáveis num leigo.
III - Tendo sido entregue por contacto pessoal do solicitador de execução, ao sócio gerente das empresas demandadas, uma nota de citação que este recebeu e assinou, da qual constava a identificação do processo, o nome do demandante e a expressa referência ao prazo de contestação e às cominações legais, a alegada confusão (com outro processo com diverso número e diverso autor) não constitui “justo impedimento” suscetível de justificar a entrega tardia ao mandatário e a consequente apresentação da contestação vários meses após o termo do prazo.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Com os mesmos fundamentos que suportam a alegação de nulidade da citação, invocam as recorrentes o “justo impedimento”, alegando, nomeadamente:
«O. Sucede que o Sr. E… não compreendeu, nem teve consciência de que estava a ser citado relativamente a novas acções, e não a receber uma comunicação relativa ao processo pendente, convicção favorecida pelo facto de as referidas citações serem efectuadas simultaneamente, relativamente ao mesmo assunto;
P. Acresce ainda que, tratando-se de documentos relativos ao processo em curso, convenceu-se de que os mesmos não deixariam de ser enviados pelo Tribunal também aos advogados que o representam na referida acção, e que estes lhes dariam o seguimento que ao caso coubesse, pelo que a ninguém não deu conhecimento;
Q. Acresce que, ao contrário do processo n.º 1701/16.7T8AGD, na qual as RR., na pessoa do seu gerente, o Sr. E…, foram citadas através de carta regista com aviso de recepção, ou seja, através de uma carta vinda directamente do Tribunal e com o timbre deste».
Temos a maior dificuldade em compreender a insistência das recorrentes na alegada “confusão” de processos, considerando, como já se afirmou e reiterou: que os números dos processos são diferentes – este tem o n.º 4021/16.3T8AVR, bem visível na nota de citação assinada pelo sócio gerente das recorrentes, tendo o outro o n.º 1701/16.7T8AGD; que o autor não é o mesmo; e que uma citação nunca poderia ser efetuada por duas vezes no mesmo processo.
No que respeita ao facto de a anterior citação ter sido efetuada por carta regista com aviso de receção, pensamos que se trata de um forte argumento contra a pretensão das recorrentes, na medida em que a formalidade solene do contacto pessoal levaria qualquer pessoa medianamente instruída a não confundir esta citação com a anterior efetuada por via postal.
Vejamos os pressupostos da figura invocada.
Dispõe o n.º 1 do artigo 140.º do CPC: «Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato»
Nos termos do n.º 2 do citado normativo, a parte que alegar o justo impedimento oferecerá logo a respetiva prova, e o juiz, ouvida a parte contrária, admitirá o requerente a praticar o ato fora do prazo, se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.
Como se refere no relatório do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com esta nova redação introduzida pela reforma de 1995, o legislador visou flexibilizar a definição conceitual do “justo impedimento” possibilitando à jurisprudência uma “elaboração, densificação e concretização centradas essencialmente na ideia da culpa”, exigindo-se às partes que procedam com a diligência normal e não sendo de exigir que entrem em linha de conta com factos e circunstâncias excecionais.
Em comentário à norma em apreço, escreve Lopes do Rego[13], que o legislador passou a colocar no cerne da figura, a existência de um nexo de imputação subjetiva à parte ou ao seu representante, do facto que causa a ultrapassagem do prazo perentório, o que deverá ser apreciado segundo o critério definido no art.º 487º, n.º 2, do Código Civil, “sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas”.
Concretizando, a aferição dos pressupostos do “justo impedimento” envolve um ‘juízo de censura’ em cuja avaliação não podemos prescindir do critério enunciado no n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil, de acordo com o qual a culpa é o não cumprimento de um dever jurídico: o dever de diligência, de conteúdo indeterminado, mas determinável em cada situação concreta: «a diligência juridicamente devida é a que teria um bom pai de família colocado nas circunstâncias concretas em que se encontrava o agente. (…) a chamada ‘culpa profissional’ não tem, pois, de ter autonomia, quando se utiliza este critério: é evidente que se exige ao bom pai de família profissional uma perícia, conhecimentos, qualificações que não são esperáveis de um leigo» [Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Volume I, Almedina, 2017, pág. 633].
No caso sub judice, o acrescido dever de diligência que impendia sobre o sócio gerente das recorrentes decorre da sua qualificação profissional, sendo manifesta a sua negligência.
Pensamos, salvo o devido respeito, que se justifica o rigor e a exigência da jurisprudência e doutrina citadas, em nome dos princípios da auto-responsabilidade [...] e da igualdade das partes, traduzido no facto de se encontrarem ambas vinculadas ao cumprimento dos ditames legais, e da segurança jurídica que o processo garante – de contrário, o processo deixaria de desempenhar a sua primordial função de “inimigo jurado do arbítrio” [...], deixando-se de atribuir a devida importância a interesses que também relevam na realidade jurídica e judiciária, designadamente os atinentes à segurança e certeza jurídicas.
Como decidiu o Supremo tribunal de Justiça em recente acórdão [Acórdão de 15.01.2014, Proc. 1009/06.6TTLRA.C1.S1 [...]], a afirmação da existência do «justo impedimento» exige a demonstração, para além da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do ato, da inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário, na ultrapassagem do prazo perentório, a qual deverá ser valorada nos termos do disposto no art.487.º, n.º 2, do CC, e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das ações.
Em suma, revela-se claramente insuficiente para concluir pela verificação do «justo impedimento» previsto no artigo 140.º do CPC, a argumentação das recorrentes, face à entrega ao seu representante da nota de citação, com a correta identificação do processo e do autor, e com a expressa referência às cominação legais, bem como com a documentação anexa à petição.
Reiterando sempre o respeito devido pela divergência (nunca será de mais fazê-lo), entendemos que é, por demais, evidente, a incúria de um sócio gerente, que recebe pessoalmente das mãos dum profissional habilitado para o efeito, uma nota de citação para uma ação, com todas as indicações necessárias para contestar e com a indicação expressa das cominações legais decorrentes da omissão, e que deixa passar todos os prazos, sem falar com os seus mandatários, vindo depois refugiar-se numa insustentável argumentação de desresponsabilização, como se nas suas funções de gerente societário não estivesse vinculado a quaisquer deveres de zelo e de diligência.
Improcede claramente a pretensão recursória das recorrentes que, em consequência, deverá naufragar, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida, que não merece censura."
MTS