Contrato promessa; eficácia real;
oponibilidade; penhora
O promitente-comprador em contrato promessa de compra e venda dotado de eficácia real, que viu registada penhora depois do registo daquele contrato promessa, não está impedido de outorgar o contrato definitivo com o promitente-vendedor referente à compra e venda prometida, depois de realizada a penhora do bem, mas antes da sua venda no processo executivo, não tendo necessariamente e sempre que exercer o seu direito no âmbito da execução promovida pelo credor do promitente vendedor.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"7. [...] Podemos antecipar já que nos parece ter sido correcta a decisão tomada pelo Tribunal da Relação, o que justificaremos de seguida.
Vem questionado no recurso se seria admissível efectuar a alienação do imóvel penhorado fora do processo executivo e do âmbito do art.º 901.º CPC (art.º 831.º actual).
A resposta é positiva. Nada obsta a que o verdadeiro proprietário de um imóvel disponha do seu bem, porque não existe uma norma legal que determine a sua intransmissibilidade ou qualquer limitação à mesma: assim, o bem podia ser alienado por acto de vontade do seu titular.
Mas pode este acto de alienação prejudicar uma acção executiva pendente em que o bem havia sido penhorado? Pode a alienação do bem obstar à sua execução? A lei permite a saída deste bem do património do devedor sem que ocorra a sua substituição por outro (valor), tudo em prejuízo do credor?
Em regra a resposta a estas questões é negativa. Admitir tais soluções seria comprometer a garantia patrimonial com que os credores contam ao conceder crédito. Essa garantia é formada pelo património do devedor – todo o património, se se tratar de dívida não especialmente garantida, ou certos bens, se se tratar de uma garantia especial de tipo real. No património do devedor incluem-se assim bens em relação aos quais o devedor se comprometeu já - através de contrato-promessa – a alienar, mas cuja alienação ainda não foi concretizada na data em que o credor executa o património.
Parece ser esta a situação dos autos: o promitente vendedor figurava no registo predial como proprietário do imóvel sobre o qual vem a incidir uma penhora.
De acordo com o disposto no art.º 755.º, n.º 1 do CPC, a penhora de imóveis realiza-se por comunicação electrónica do agente de execução ao serviço de registo competente, a qual vale como pedido de registo, ou com a apresentação naquele serviço de declaração por ele subscrita, seguindo-se a inscrição da penhora, com a subsequente elaboração do auto de penhora (n.º 3). Com a apresentação do pedido de registo fixa-se a data da inscrição registal.
No caso dos autos, conforme vem provado, pode confirmar-se que a penhora precedeu o registo da transmissão da titularidade do imóvel efectuada por via da celebração do contrato de alienação do imóvel entre embargante e executado [...].
Porém, a situação dos autos oferece uma particularidade, face à situação jurídica até aqui descrita, por estarmos perante uma promessa de alienação dotada de eficácia real, eficácia que decorre do registo (ainda que pressuponha outros requisitos).
O registo da eficácia real da promessa de alienação sobre o imóvel penhorado, que data de 2007, foi realizado para conferir à obrigação de contratar a eficácia própria dos direitos reais, dita oponibilidade erga omnes, ou, se se preferir, a criar um direito real de aquisição em benefício do promitente comprador (consoante a posição a que se adira, no sentido de aqui ver um direito obrigacional reforçado ou um direito real).
Trata-se assim de um registo que conferindo publicidade à promessa realizada dá a conhecer a eventuais interessados a posição jurídica reforçada do promitente adquirente, em termos de lhe estar assegurada uma forte tutela da aquisição do direito de propriedade sobre o bem.
Ao ser colocada a questão levantada neste recurso (já indicada) está a perguntar-se se tal tutela pode ser levada ao extremo de a considerar equivalente à inscrição de facto aquisitivo do direito de propriedade, embora reportada à data do registo da eficácia real da promessa (e não já à data da aquisição da propriedade).
Qualificando-se a promessa com eficácia real como um direito real de aquisição, sabendo que a mesma está inscrita no registo – e consequentemente publicitada – não poderá deixar de se retirar destes dois elementos a necessária consequência: este direito, que é oponível erga omnes, tem de ter um conteúdo útil, o que terá motivado o legislador a conferir lhe tão grande protecção. Esse conteúdo consiste em o seu titular poder “perseguir” o bem a que se reporta a promessa – em linha com a característica da inerência e sequela própria dos direitos reais –, mesmo que ele já não se encontre na esfera jurídica do “devedor da promessa”, perseguição essa em que a prevalência do direito do promissário o é em termos de um direito pleno sobre o referido bem (uma vez que se acordou a transmissão da propriedade do bem livre de ónus ou encargos, que tal acordo se encontra registado através da promessa de alienação com eficácia real, os actos do promitente alienante que pudesse pôr em causa a concretização da referida promessa não podem colocar em causa o direito do promissário). Esse conteúdo consiste em o seu titular poder “perseguir” o bem onde quer que ele esteja, mesmo que a sua titularidade tenha, entretanto, sido transmitida para terceiro ou objecto de oneração, voluntária ou forçada. Por maioria de razão, esse conteúdo há-de consistir em o seu titular poder “perseguir” o bem invocando o direito de o adquirir livre de ónus ou encargos contra um credor do proprietário/promitente vendedor que reclama direitos de crédito e goza de alguma garantia sobre o bem, desde que este direito tenha sido constituído em data posterior à data da promessa com eficácia real registada.
Na verdade, na hipótese de uma oneração em virtude de acto de terceiro, como sucede com a penhora posterior à promessa, não se pode verdadeiramente considerar que o credor fica prejudicado por ter um direito real de garantia que cede perante um direito real de aquisição. Porque o direito real de aquisição se encontra registado, ele está publicitado de forma a que um credor diligente não pudesse conceder crédito esperando que na falta do seu cumprimento pontual tal bem pudesse ser chamado a responder pela dívida.
Com o registo da eficácia real, apesar de não ter havido transmissão do direito, a situação é tratada como praticamente equivalente à da transmissão do bem. [...]
Assim, o promissário goza de um direito real de aquisição e o exequente tem um direito real de garantia – senão pela sua natureza, pelo menos por força do seu regime, uma vez que a lei atribui ao beneficiário da penhora o direito de se fazer pagar pelo valor do bem penhorado com preferência em relação aos credores comuns.
Ambos os direitos estão registados. O primeiro foi registado em 2007, provisoriamente, e depois foi convertido em definitivo. O segundo tem o seu registo em data posterior - 2011/02/21.
Com este quadro-base a solução terá de advir das regras do registo e da natureza dos direitos envolvidos.
Em termos de regime registal, parece-nos importante chamar aqui a atenção para a regra da prioridade do registo que se encontra definida no art.º 6.º do CRP, com o seguinte teor:
“1 - O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes.
2 - [Revogado].
3 - O registo convertido em definitivo conserva a prioridade que tinha como provisório.
4 - Em caso de recusa, o registo feito na sequência de recurso julgado procedente conserva a prioridade correspondente à apresentação do ato recusado.”
Do artigo citado resulta claramente uma ideia de definição de prioridades de registo, em função das datas dos factos levados a registo e em face dos direitos que resultarem desses factos.
O registo de uma promessa de aquisição com eficácia real confere prioridade sobre uma penhora do bem porque se reporta ao mesmo objecto em termos de incompatibilidade estando protegido pela prioridade registal. No confronto dos dois direitos, o direito real de garantia vai ceder perante o direito real de aquisição – assim o determina o regime de prioridade do registo, uma vez que os dois direitos, no caso concreto, são incompatíveis (a plena propriedade e a penhora não podem coexistir na plenitude dos seus efeitos, já que a penhora pressupõe o direito a ver-se pago através do produto da venda/ alienação do bem sobre o qual incide, e o direito de propriedade pleno não pode ser exercido se o bem estiver sujeito a tal “vinculação”).
8. A situação indicada pode oferecer algumas dúvidas em termos de saber se é esta a melhor solução jurídica, do ponto de vista do direito constituído e do direito constituendo.
Expliquemos o ponto.
Nos termos do art.º 2º, nº1, al. f) do CRP é facto sujeito a registo a promessa de alienação ou oneração se lhe tiver sido atribuída eficácia real – o que confirma que a promessa de alienação descrita nos pontos da matéria de facto 1 a 3 estava dentro do conjunto dos factos registáveis. Na inscrição da promessa de alienação deve ser indicado o prazo da validade da sua eficácia, segundo a regra do art.º 95.º do Código do Registo Predial (alínea d) “Na de promessa de alienação ou de oneração de bens, o prazo da promessa, se estiver fixado”). A importância da indicação deste prazo prende-se com o prazo de validade do facto registrado: a lei parece ter compreendido que o direito real de aquisição não deve ser um direito com oponibilidade eterna. Dentro desta lógica, decorrido este prazo o registo caducaria – art.º 11º, n.º 1, devendo essa caducidade ser anotada ao registo, logo que verificada (n.º 4). Caducando o direito real de aquisição, cessariam os seus efeitos em termos de prevalência sobre outros direitos incompatíveis.
Este seria o sistema ideal, tal como resulta das regras de interpretação do texto legal (art.º 9.º CC).
Porém a lei parece não ter conseguido regulamentar a solução na sua plenitude, deixando-a incompleta, por duas razões:
i) Ao indicar como elemento a inscrever no registo o “prazo da promessa, se estiver fixado” deixa margem para que a promessa possa ser realizada sem prazo, caso em que o registo manteria a sua eficácia em conformidade.
ii) Por outro lado, quando o legislador indica que se deve inscrever no registo o “prazo da promessa” também esta referência tem de ser interpretada. A que prazo se reporta o legislador? O prazo para o cumprimento voluntário do contrato-promessa? O prazo para exigir o cumprimento forçado, através da execução específica?
Esta questão foi colocada nos presentes autos: tendo sido invocada a caducidade do registo, o tribunal veio a decidir que o mesmo não havia caducado. Sinteticamente: o tribunal (1ª instancia) analisou a questão e considerou que não havia caducidade porque essa teria de se reportar ao contrato-promessa…e no contrato dos autos só se diz que a promessa seria cumprida no prazo de 3 anos…logo daqui não se inferiria que o contrato fosse um contrato com prazo…até porque a execução específica seria um instrumento a usar apenas depois desse prazo. Em apoio da sua posição invocou jurisprudência deste Supremo Tribunal.
Como esta decisão não vem impugnada no recurso, este tribunal não pode agora sobre ela pronunciar-se em termos de modificar o decidido sem violar o “caso julgado” formado por essa decisão. Por esse motivo, não pode agora contestar-se a validade do registo da promessa com eficácia real, nem o prazo da sua vigência.
Se o registo é válido e eficaz tem de produzir os efeitos para os quais a lei o pensou e regulou: o de ser um registo que goza de oponibilidade, quer contra os actos do promitente vendedor que o violem, quer contra os “ataques” que possam advir de credores. O que significa dizer que o direito em causa prevalece sobre a penhora.
9. Em termos doutrinais a solução acima referida não merece grandes dúvidas nem a Miguel Teixeira de Sousa, in Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, pp. 389 e 373, nem a Rui Pinto in A acção executiva depois da reforma, JVS, Lisboa, 2004, conforme citações detalhadas constantes dos autos.
Esta é também a posição que colheu apoio em Antunes Varela e Jorge de Sousa, ao considerarem que o registo da eficácia real confere uma protecção equivalente a uma aquisição em que tudo se passa como se a alienação prometida houvesse sido realizado na data em que a promessa foi registada”.
No mesmo sentido Mónica Jardim ao afirmar: “Após o registo definitivo do contrato promessa (dotado de eficácia real) o direito de crédito do promitente adquirente prevalece em face dos actos dispositivos conflituantes que não beneficiem de prioridade registal, quer assentem ou não num acto de vontade do titular registal (ou de um seu subadquirente) e, ainda, quer tenham ocorrido antes ou depois do registo definitivo do contrato promessa dotado de eficácia real”.
10. Dizem, no entanto, os recorridos que a doutrina portuguesa (alguma da citada) não trata do problema dos autos. Vejamos.
Começando por Miguel Teixeira de Sousa, in Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, pp. 389 e 373, basta consultar a obra para verificar que o autor nem sequer aborda a questão da possibilidade ou não do promitente-comprador, em contrato promessa de compra e venda dotado de eficácia real, que viu registada penhora depois do registo daquele contrato promessa, outorgar escritura pública com o promitente vendedor referente à compra e venda prometida e deduzir embargos de terceiro; o mesmo vale para Rui Pinto, in A acção executiva depois da reforma, JVS, Lisboa, 2004, quando este Autor se refere a que a expressão «quem queira exercer o direito de execução específica» utilizada no art.º 903º deve ser entendida também como «quem possa exercer o direito de execução específica», concluindo que «assim não pode ser feita a venda direta a quem tenha renunciado expressamente a esse direito, nem se houver convenção em contrário».
Tem razão o recorrido.
A única hipótese considerada pelo 1.º autor é a do promitente-comprador, em contrato promessa de compra e venda dotado de eficácia real que viu registada penhora depois do registo daquele contrato promessa, não tendo sido outorgado ainda, à data da venda executiva, a escritura pública com o promitente vendedor referente à compra e venda prometida, nem tendo sido deduzidos embargos de terceiro. O Autor refere que, nesta hipótese, o promissário tem a faculdade de adquirir o imóvel através da venda direta. Não diz que está vedado aos intervenientes no contrato promessa cumprir o contrato antes de na execução se chegar à fase da venda!
Ou seja, os autores não chegam a pronunciar-se sobre a questão suscitada pelo recorrente: a de saber se o promitente comprador pode celebrar o contrato definitivo com o promitente vendedor depois de realizada a penhora do bem, mas antes da sua venda no processo executivo.
Quando a doutrina analisa a promessa com eficácia real no âmbito da acção executiva fá-lo quase exclusivamente na perspectiva de conferir protecção ao promitente comprador, no âmbito do regime constante do art.º 903.º CPC, norma que nos indica quem pode participar na venda directa. A norma está pensada para abranger a perspetiva da legitimidade para solicitar a venda, por não ter ocorrido renúncia ou convenção contrária.
Outros autores tratam ainda de problema diferente do suscitado nos autos: o de saber em que casos é possível usar embargos de terceiro contra a execução – assim Marco Gonçalves, in Embargos de terceiro na ação executiva, Universidade do Minho, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 204 e ss.
Na mais das vezes os autores e a jurisprudência apenas tratam da questão de saber se o promitente comprador pode exigir a concretização do negócio prometido, mesmo contra a vontade do promitente-vendedor, para responderem afirmativamente, na hipótese de o contrato ter eficácia real e estar registado. Tal cumprimento forçado sobrepor-se-ia mesmo a actos de disposição do direito ou onerações posteriores ao registo feitas pelo seu titular, como por exemplo uma venda ou a constituição de hipoteca.
Em síntese, não se conseguiu identificar nenhum autor que expressamente aborde a questão suscitada pelos recorrentes. Fica a dúvida de saber porquê? Será porque os autores nunca pensaram sobre a questão? Ou, ao invés, tendo pensado consideraram que a mesma não tinha sentido dentro do espírito e princípios do sistema jurídico? Não se sabe.
De qualquer forma pensamos que deve ser dada aqui indicação das coordenadas gerais do sistema jurídico contratual, que certamente são importantes no esclarecimento da dúvida em análise. [...]
12. De qualquer forma, não se pode ficar indiferente à argumentação do recorrente sobre a possibilidade de o entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação do Porto abrir as portas a um regime de intangibilidade dos bens do promitente vendedor, permitindo a este, em conluio com um alegado promitente-comprador, dispor de um meio eficaz de subtrair os seus bens à execução, pois sabemos que o legislador não aceitaria tal resultado em circunstância alguma.
Se a penhora incide sobre um bem imóvel, está registada, mas sobre esse mesmo bem existe um direito real de aquisição, também registado, e porque na generalidade dos casos a promessa é onerosa, o legislador procurou um equilíbrio entre os dois direitos em causa. Fê-lo, nomeadamente, através da regulação do processo executivo ao tratar da venda – 901.º CPC (actual 831.º). O que resulta desta norma é precisamente a justa ponderação dos interesses indicados: o do credor exequente em ver satisfeita uma dívida com um valor monetário; o do beneficiário da promessa, com o direito de pedir ao tribunal que se substitua na emissão da declaração de venda pelo promitente alienante. A intervenção do tribunal assegurará o correcto exercício do direito de cada um dos referidos sujeitos, controlando os termos em que cada um pode vir a beneficiar pelo aproveitamento do bem concreto envolvido na execução e na promessa. O tribunal assegurará que, se o preço da aquisição não se encontrar já pago, o seu pagamento seja feito à ordem do tribunal, “substituindo” esse valor monetário o bem concreto que deixará de estar afecto à execução. A regularidade desta “substituição” patrimonial assegurará que o credor beneficiário da penhora sobre o bem “vendido” passará a ter o seu direito assegurado pela contrapartida da saída patrimonial agora sob controlo do tribunal. Naturalmente que se o promitente alienante, que havia celebrado contrato com eficácia real em favor do promitente comprador, estando já instaurada a execução e tendo sido nomeado o mesmo bem à penhora, o vem a alienar ao promitente comprador por acto voluntário, não há forma de controlar a “substituição patrimonial” que normalmente está associada à contratação. Mas também não se pode afirmar que a concretização do negócio definitivo foi efectuada com intuito de defraudar o exequente-credor. Há uma causa legítima para a celebração do contrato-definitivo e ela reside no compromisso assumido no contrato-promessa que cria a obrigação de celebrar o contrato prometido.
Deve essa impossibilidade reflectir-se sobre os credores do promitente-vendedor que, tendo nomeado o concreto bem à penhora, vêm a sua garantia patrimonial desaparecer?
O que seria justo era dizer que o promitente-comprador pode celebrar o contrato definitivo com o vendedor e ter assegurada a transmissão da propriedade do bem, mas a contrapartida dessa transmissão não poderia ser paga ao vendedor, porquanto esse pagamento conduziria a uma via fácil de impedir a cobrança do crédito dos credores que tiverem promovido a execução ou reclamado créditos nela. Tanto faria que o contrato fosse cumprido dentro ou fora da execução, para o credor o que relevaria seria a possibilidade de ter um “objecto” sobre o qual fazer incidir a sua penhora – fosse ele o imóvel penhorado ou o valor obtido com a sua venda extra-judicial. Não obstante se considerar que esta seria a solução mais justa, não se pode decidir com base nesse critério se não existir um apoio legal mínimo.
A nosso ver a principal norma jurídica onde a situação se pode enquadrar é o art.º 819.º do CC, ao tratar da inoponibilidade, em relação à execução, de actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados – ou seja, consagrando uma solução em que o titular do bem penhorado o pode alienar, onerar ou arrendar, mas sem que estes actos possam ser opostos à execução (e ao tribunal), tudo fazendo para salvaguardar a autonomia privada do executado, sem limitar as garantias dos credores que recorrem aos meios judiciais para cobrar os seus créditos.
Inoponibilidade - que não invalidade ou ineficácia - porquanto a penhora pode cessar a qualquer momento e o acto inoponível passará a produzir todos os seus efeitos.
Inoponibilidade porquanto apenas se pretende que um acto que possa ser prejudicial aos interesses presentes na execução fique paralisado na relação com o prejudicado.
Inoponibilidade que pode, na conjugação com o art.º 822.º, n.º 1, permitir a satisfação do interesse de vários sujeitos, com posições jurídicas que poderiam parecer incompatíveis, mas se vêm a revelar possíveis de tutela conjunta.
Naturalmente que o art.º 819.º também diz que essa inoponibilidade ocorre “sem prejuízo das regras de registo”, o que nos deve levar a indagar o que quis o legislador dizer com esta restrição.
Lido o preceito pode deduzir-se que os actos de disposição, oneração ou arrendamento que são oponíveis à penhora são os que tiverem registo anterior, pois só eles ficam ressalvados da inoponibilidade.
Conforme nos indica o artigo 819.º são actos de disposição, oneração ou arrendamento, aos quais pensamos ser correcto equiparar as promessas de actos (de disposição ou oneração) quando dotadas de eficácia real e com registo anterior, pois essas promessas podem vir a “transformar-se” em actos de disposição – seja através da celebração do contrato definitivo, seja através da execução específica do contrato promessa (mesmo contra a vontade do promitente alienante).
Daqui resulta que tais promessas são oponíveis à execução, não entrando no âmbito de aplicação do art.º 819.º CC, do que se conclui que o negócio de transmissão da propriedade do bem objecto da promessa de alienação com eficácia real é válido e oponível ao credor exequente e à execução.
13. Em abono da posição acolhida pelo tribunal recorrido, aqui em análise, vem referido o acórdão do TRL, de 22/09/2016, proferido no âmbito do Proc. 26980/15.3T8LSB.L1.-2, disponível in www.dgsi.pt, onde se lê:
«quando o promitente-comprador, pese embora a penhora registada (…) se consiga entender com o promitente vendedor para outorgarem conjuntamente em escritura de compra e venda do imóvel – como sucedeu nos autos – não restará outra alternativa que não a de levantar a penhora e ordenar o cancelamento do respetivo registo (…) sem que se possa objetar, no referente à penhora (…) com a disciplina constante do art. 819º CC, pois que a mesma, se bem que refira serem «inoponíveis em relação à execução os atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados», se inicia com a expressão «sem prejuízo das regras do registo». Ora, estas regras, na situação de prévio registo do contrato promessa com eficácia real, só podem significar que o direito do promitente comprador é oponível á penhora, tudo se passando, no que se refere à prevalência em relação a terceiros, como se a compra e venda prometida tivesse sido efetuada na data em que a promessa foi registada».
Trata-se de acórdão similar ao recorrido, em que se alude ao regime da prioridade registal e se analisam e rebatem os argumentos do recorrente, em termos quase iguais aos do acórdão recorrido (que parece ter sido por aquele bastante influenciado).
É, em consequência, um argumento adicional em favor da tese aqui defendida da prevalência do direito real de aquisição e da possibilidade de os outorgantes da promessa poderem dar-lhe cumprimento fora da execução.
14. Para melhor justificar este ponto, vejamos ainda o que dispõe o art.º 901º do CPC, (actual 831.º).
Trata-se de disposição pensada para regular o modo de “transformação” do bem penhorado em dinheiro, para com o produto dessa “transformação” pagar ao credor exequente (e eventualmente a outros reclamantes que mereçam protecção legal neste processo).
É uma norma pensada para o concreto problema de saber a quem deve ser atribuído o bem. Porque se insere na disposição sobre a venda directa, está implícita a realização de um acto oneroso, em que aquele a quem vai ser atribuído o bem tem de desembolsar um certo valor para poder ser tutelado. Compreende-se que assim seja.
O que não se compreende é que se diga que a venda só poderia ser feita através deste mecanismo na acção executiva. A lei não restringiu os poderes de disposição do alienante, como se viu, porque não lhe é aplicável sequer a restrição do art.º 819.º do CC. Se o alienante conserva a plenitude desse poder de disposição na sua relação com o promissário, deve poder cumprir o contrato fora do mecanismo judicial.
15. Mas pode este cumprimento voluntário ser uma forma de ludibriar os direitos dos credores do alienante?
Abstractamente falando, existe esse risco. Há sempre uma margem de utilização dos mecanismos legais para obtenção de efeitos não pretendidos pelo legislador. Por isso a lei contém meios de tutela contra a fraude e até contra actos de dissipação patrimonial intencionais com o intuito de lesar os credores. Esses mecanismos – abstractamente falando – podem ser convocados para as situações concretas. Mas para que o sejam os interessados têm de lançar mãos dos mecanismos jurídicos próprios colocados à sua disposição – v. g. a impugnação pauliana – não ficando excluída a possibilidade de o credor nomear à penhora a contrapartida do negócio de venda do imóvel objecto da promessa dotada de eficácia real. Incumbe ao credor encontrar, no universo do ordenamento jurídico, os mecanismos que sejam mais adequados e/ou convenientes para a tutela da sua pretensão, se entender que a situação concreta em que se viu colocado enferma de alguma ilegalidade ou fraude.
No caso dos autos, não pode este Supremo Tribunal verificar se foi adoptado algum comportamento fraudulento por parte do recorrido. O STJ é um tribunal de aplicação do direito aos factos provados e uma instância de recurso, que apenas conhece das questões jurídicas que lhe foram colocadas pelos interessados.
Não há elementos no processo que permitam conhecer de possível fraude, ou abuso de direito. Os factos demonstrados (conforme transcrição supra) não apontam também nesse sentido.
Por isso, mesmo sendo o abuso de direito um instituto de conhecimento oficioso, não cremos que possa ser aplicado ao caso dos autos.
Atentas as razões apresentadas, está justificada a decisão do Tribunal da Relação, que se considera não ter violado os art.ºs 9.º, 601.º, 817.º e 819.º do Código Civil (CC), nem os artigos 831.º e 735.º do Código de Processo Civil (CC), não merecendo censura."
[MTS]