"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/11/2018

Jurisprudência 2018 (106)


Prova; dever de colaboração;
ónus da prova; inversão


1. O sumário de STJ 22/3/2018 (67525/14.6YIPRT.L1.S1) é o seguinte:

I - Em matéria de cumprimento do ónus da prova num contrato de arrendamento, a regra é no sentido de que o credor tem de provar a celebração do contrato e, consequentemente, as obrigações dele decorrentes, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC.

II - Por sua vez, o cumprimento da respectiva obrigação, designadamente o pagamento da renda convencionada, como facto extintivo do direito de crédito invocado, incumbe ao devedor, nos termos do art. 342.º, n.º 2, do CC, tanto mais que, em direito, o pagamento não se presume a não ser em casos expressamente previstos na lei (cfr. art. 786.º do CC).

III - Há, porém, regras especiais de distribuição do ónus da prova para dirimir o non liquet probatório, por via da inversão desse ónus, como preceitua o art. 344.º do CC; um desses casos ocorre quando a parte contrária impossibilitou culposamente a prova de determinado facto ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais (cfr. art. 344.º, n.º 2, do CC, e art. 417.º, n.º 2, do CPC).

IV - A circunstância da autora senhoria não ter apresentado os respetivos elementos de contabilidade, no âmbito da perícia determinada nos autos com vista a apurar se, através da contabilidade das sociedades envolvidas na acção, se recolhiam elementos que esclarecessem a questão do pagamento das rendas, não é, só por si, susceptível de inverter o ónus da prova nos termos referidos em III quando não decorre dos autos que tal omissão tenha sido deliberada, ou sequer culposa, ou que o recorrente estivesse impossibilitado de fazer essa prova, já que lhe seria lícito utilizar qualquer outro meio de prova legalmente admitido.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No caso que apreciamos, não obstante a terminologia utilizada pelos contratantes, é de considerar que a autora e a ré celebraram entre si um contrato de arrendamento para fim não habitacional, tendo como objeto a loja sita no ….º B do prédio da …, n.º …, …-A e …-B, em Lisboa, mediante o pagamento mensal de EUR 1.250,00, qualificação jurídica atribuída pelas instâncias e que não é sequer contestada na revista.

Por sua vez, nos termos clausulados no contrato, o réu, ora recorrente, obrigou-se como fiador, declarando:

- “Assumir solidariamente com o inquilino a obrigação de cumprimento de todas as cláusulas do acordo, seus aditamentos legais e suas renovações até à efetiva restituição do espaço cedido”; e que

- “A fiança subsistiria ainda que houvesse alteração de renda e renunciando em caso de execução ao benefício da excussão prévia do património do inquilino, nos termos do art.º 640.º do C.C.”.

No arrendamento, a primeira e mais elementar obrigação do locatário consiste em pagar a renda convencionada (cf. arts. 1022º e 1038º, do CC), sob pena de o locador poder, com tal fundamento, resolver o contrato (cf. arts 1047º, 1048º, 1083º e 1084º, do CC).

In casu, está apenas em discussão saber se a ré incumpriu a obrigação de pagar a renda, nos termos contratualizados, cumprimento que o réu, enquanto fiador, se obrigou a garantir.

Na 1ª instância, ao abrigo do disposto no art. 344º, nº2, do CC, entendeu-se que recaía sobre a autora o ónus de provar a falta de pagamento de rendas e, por não ter logrado fazer essa prova, a ação foi julgada improcedente.

A Relação, por seu turno, entendeu que o ónus de prova do pagamento das rendas incumbia aos réus, e, como o não cumpriram quanto a uma parte do pedido, julgou-se a ação (parcialmente) procedente.

Pois bem.

Nesta matéria, a regra é no sentido de que o credor tem de provar a celebração do contrato e, consequentemente, as obrigações dele decorrentes, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil.

Por sua vez, o cumprimento da respectiva obrigação, designadamente o pagamento do montante da renda convencionada, como facto extintivo do direito de crédito invocado, incumbe ao devedor (cf. art. 342º, nº 2, do CC), tanto mais que, em direito, o pagamento não se presume a não ser em casos expressamente previstos na lei (cf. art. 786º do C.C.) e que aqui se não verificam.

Há, porém, regras especiais de distribuição do ónus de prova para dirimir o non liquet probatório, por via da inversão desse ónus, conforme preceitua o artigo 344º do Código Civil.

Um desses casos de inversão do ónus de prova ocorre quando a parte contrária impossibilitou culposamente a prova de determinado facto ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais (cf. art. 344º, nº 2, do CCC e art. 417º, nº2, do CPC).

No caso em apreciação, foi ordenada a realização de uma perícia tendente a apurar se, através da análise da contabilidade das sociedades envolvidas nesta ação, se recolhiam elementos que esclarecessem a questão do pagamento das rendas, alegadamente em dívida.

O recorrente sustenta que a autora, ao não fornecer determinados elementos da sua contabilidade, o impediu de ter acesso a documentos que poderiam comprovar o pagamento das rendas pela sociedade ré. Esta recusa de colaboração, no entender do recorrente, é suscetível de inverter o ónus da prova (cf. art. 417º, nº2, do CPC) e, por isso, a autora devia ter sido onerada com a prova de que o(s) réu(s) não pagaram as rendas peticionadas.

Não será, contudo, assim.

Na verdade, muito embora a autora não tenha apresentado ao perito determinados elementos, a verdade é que não decorre dos autos que tal omissão tenha sido deliberada, ou sequer culposa.

Por outro lado, incumbindo ao locatário alegar e provar que o locador lhe tornou impossível a prova do pagamento (cf., neste sentido, o ac. do STJ de 8.5.2008, Jus Net 1900/2008), não decorre dos autos que o recorrente estivesse impossibilitado de fazer essa prova, já que lhe seria lícito utilizar qualquer outro meio de prova legalmente admitido (cf. arts. 341.º e 345.º do CC).

Certo é que, in casu, se desconhece a razão que levou a ré a pagar rendas sem exigir quitação, podendo fazê-lo (cf. art. 787º, do CC), bem como a autora a receber determinados quantitativos sem dar a correspondente quitação, sendo de notar, conforme se entendeu no acórdão recorrido, que “a omissão da emissão dos recibos de quitação das rendas não é suficiente para concluir que a autora se recusava a passar os recibos das rendas à sociedade arrendatária, porque para tanto era necessário alegar que a sociedade arrendatária solicitava esses recibos e que a sociedade autora se recusava a passá-los (…).”.

Afigura-se-nos, pois, que a situação descrita nos autos, não permite imputar à autora comportamento que preencha os requisitos previstos nos arts. 417º, do CPC e 344º, nº2, do CC.

Assim sendo, é indiscutível que o ónus da prova do pagamento devia recair sobre os réus, como acertadamente se decidiu no acórdão recorrido."

[MTS]