"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/11/2018

Jurisprudência 2018 (125)


Garantia autónoma;
providência cautelar; medida da prova 

I. O sumário de RL 12/7/2018 (761/18.0T8LSB.L1-2) é o seguinte: 

1. A garantia autónoma é, no essencial, um contrato outorgado entre o mandante da garantia e o garante, a favor de um terceiro, o beneficiário, só podendo o garante opor a este as excepções que constem do próprio texto da garantia, mas já não as derivadas da relação contratual que está na base daquela. 
 
2. A garantia autónoma é uma figura triangular, supondo três ordens de relações jurídicas: (i) relação entre o garantido (dador da ordem) e o beneficiário (credor principal); (ii) relação entre o garantido (dador da ordem) e o garante (banco); (iii) relação entre o garante (banco) e o beneficiário (credor principal).
 
3. Entre as situações de garantia autónoma, figura a garantia
on first demand, que se pode traduzir por uma promessa de pagamento à primeira interpelação ou primeira solicitação, não podendo ser discutido o cumprimento ou incumprimento do contrato, bastando a interpelação do beneficiário da garantia.
 
4. A automaticidade da garantia
on first demand não é, porém, absoluta, não podendo ter-se como ilimitada a possibilidade da sua exigência pelo beneficiário, já que se tem de estabelecer alguns limites à exigência da garantia, sempre que o imponham as regras da boa fé (artigo762º, nº 2, do Código Civil) ou o procedimento abusivo do beneficiário (artigo 334º do mesmo diploma legal).
 
5. É admissível o recurso a medidas cautelares destinadas a impedir o beneficiário de receber a quantia objecto da garantia, impendendo sobre o respectivo requerente o ónus de alegar e provar, não só o risco de prejuízos graves que sofrerá na ausência de tal medida cautelar, mas também apresentar prova pronta (pré-constituída, i.e, documental, sem recurso a produção de prova suplementar) e líquida, ou seja, prova inequívoca, permitindo a percepção imediata e segura da invocada fraude ou aproveitamento abusivo por parte do beneficiário.
 
6. A não apresentação com a petição inicial de tal prova, pronta e líquida, implica o indeferimento liminar do pretendido procedimento cautelar, o que se não traduz numa restrição desproporcionada ou irrazoável dos instrumentos de prova, nem comporta uma significativa afectação do direito à tutela jurisdicional efectiva.


II. Na fundamentação escreveu-se o seguinte:

"Tem sido unanimemente aceite, quer pela doutrina, que pela jurisprudência que o devedor, mandante da garantia bancária autónoma, recorra a uma medida cautelar para impedir o beneficiário de receber a quantia objecto da garantia, obstando a um aproveitamento abusivo e fraudulento da posição desse beneficiário, desde que estejam verificados os requisitos gerais do procedimento cautelar em causa, como também o requisito adicional: ser efectuada prova pronta e líquida da fraude ou do evidente abuso – v. a título meramente exemplificativo, MÓNICA JARDIM, [A Garantia Autónoma], 327-337, JORGE DUARTE PINHEIRO, Garantia Bancária Autónoma, ROA, ano 52º, Vol. II (Jul1992), 459 e ss, Ac. TRP de 28-04-2011 (Pº 171/11.0TVPRT.P1) e Ac. TRL de 16.06.2011 (Pº 2304/10.5TVLSB-A.L1-2), relatado pela ora relatora.

Todavia, se é certo que, quer a doutrina, quer a jurisprudência admitem, como exigência indispensável, que o requerente do procedimento cautelar efectue prova pronta e líquida da fraude ou abuso evidente do beneficiário da garantia, não é, contudo, unívoca a questão de saber o que se pode entender por “meios de prova líquidos”.

Alguns defendem ser admissível qualquer meio legal de prova, mormente a prova pericial, prova testemunhal e da possibilidade de valoração dos depoimentos das partes.

Outros, entendem que líquida é exclusivamente a prova documental, de segura e imediata interpretação, i.e., provas pré–constituídas – cfr. sobre os diversos entendimentos acerca do sentido a atribuir à expressão prova ponta e líquida, MÓNICA JARDIM, ob. cit, 292-294.

A primeira das identificadas correntes foi seguida, nomeadamente, pelos Ac. TRP de 12.12.2000 (Pº 9920386), Ac. TRL de 13.10.2009 (Pº 3508/08.6TVLSB.L1-7) e Ac. TRP de 23.02.2012 (Pº 598/11.8TVPRT.P1).

Consignou-se neste último Ac. TRP de 23.02.2012 que, prova líquida, pronta e inequívoca pode extrair-se de qualquer meio de prova permitido em direito e não apenas da prova documental, sendo por isso possível o recurso a prova testemunhal, em sede de procedimento cautelar, com o objectivo de demonstrar a falta de fundamento material da solicitação de pagamento, feita pelo beneficiário, da garantia autónoma à 1ª solicitação.

Mais se refere no aludido aresto, citando MIGUEL BRITO DE BASTOS, Recusa licita da prestação pelo garante na garantia autónoma “on first demand”, Estudos em homenagem ao Prof Doutor Sérvulo Correia, Vol. III, p.547 e 557, que: “Como opõem Koziol e Bydlinski, a restrição dos meios de prova disponíveis ao garante àqueles que sejam “líquidos”, excluiria a possibilidade de invocação do abuso de direito exactamente naquelas situações em que esse abuso é mais gritante, o que aponta no sentido oposto ao da restrição praeter legem: “quanto mais premeditado e refinado o comportamento fraudulento do beneficiário fosse, tanto menos possível provar de um modo líquido esse abuso. A posição inversa pode levar a resultados facilmente consideráveis como absurdos, nomeadamente, à condenação do garante em indemnização por incumprimento da obrigação decorrente de cláusula de pagamento à primeira solicitação quando, sendo a falta de fundamento material da solicitação do garante evidente para qualquer pessoa com um conhecimento superficial da execução da operação de base, o garante não esteja, por não dispor de “provas liquidas”, em condições de provar essa falta de cabimento material no momento em que recusa a prestação, mas o consiga demonstrar posteriormente, quando se discute o incumprimento definitivo das suas obrigações”. Afirmando ainda que: “a cláusula de pagamento automático não restringe os meios de prova disponíveis ao garante nem altera a medida exigida para a prova da falta de fundamento material da solicitação feita pelo beneficiário”.

Para a segunda das apontadas correntes, crê-se que maioritariamente defendida na doutrinária e na jurisprudência, a fraude manifesta e o abuso evidente só podem ser invocados quando o carácter abusivo ou fraudulento da solicitação seja inequívoco, o que exige, prova pronta e líquida, não havendo abuso ou fraude manifestos se houver necessidade, para estabelecer a má fé do beneficiário, de proceder a medidas de instrução.

Daí se entender insuficiente a consideração do simples fumus boni iuris, típico das providências cautelares, sob pena de violação da essência da garantia autónoma à primeira solicitação, pois tal significaria atribuir ao garantido/devedor a possibilidade de obter, por via cautelar, aquilo que o garante não pode obter por via da contestação ao pedido efectuado pelo beneficiário, atenta a especial natureza (autónoma) desta garantia - v. neste sentido, a nível jurisprudencial, nomeadamente, Acs. do TRL de 19.01.2010 (Pº 2720/09.5TVLSB.L1-7), de 21.02.2013 (Pº 863/12.7TVLSB-A.L1-2), de 08.09.2015 (Pº 74/14.7T8LSB.L1-7), de, e de 10.11.2015 (Pº 9515/14.2T8VLSB.L1-7), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Ao nível doutrinário, refere, designadamente, MÓNICA JARDIM, ob. cit., 336 e 337: “no âmbito da garantia autónoma, sempre que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a um aproveitamento abusivo da posição do beneficiário, deve ser exigida prova pronta e líquida. Pois, defender o contrário, seria negar a especificidade que a prática, a doutrina e a jurisprudência têm tentado identificar na garantia autónoma. Consideramos que a prova pronta e líquida da fraude ou abuso evidente do beneficiário deve ser tida como indispensável, uma vez que está em causa o cumprimento de um contrato de garantia cuja característica dominante é a autonomia”.

Refere também JORGE DUARTE PINHEIRO, ob. cit, 460, a propósito do recurso a procedimentos cautelares para evitar a execução de garantias bancárias autónomas que, “o princípio da autonomia da garantia não se coaduna com o deferimento de providências senão em situações excepcionais, decalcadas dos casos de recusa legítima de pagamento” de tal modo que “o depoimento do dador e a prova testemunhal são insuficientes. A chamada «prova líquida» é indispensável” – cfr. também, MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA E ANTÓNIO PINTO MONTEIRO [...], GALVÃO TELLES [...], NUNO MARTINS BATISTA, Execução e Tutela Cautelar na Garantia Autónoma, 42-47 [disponível aqui].

Seguiu a decisão recorrida este segundo entendimento, o qual se corrobora.

Com efeito, entende-se que no âmbito de uma garantia bancária autónoma, sempre que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a uma solicitação abusiva ou fraudulenta, por parte do beneficiário, deve ser exigida, ao requerente/devedor, para além da demonstração do risco de prejuízo grave que este sofrerá na ausência de tal providência, a apresentação de elementos de prova sérios da alegada fraude ou abuso, que estejam imediatamente disponíveis, ou seja, prova pronta e líquida, sendo que prova pronta é a prova pré-constituída, i.e., documental, sem recurso a produção de provas suplementares e é líquida, sempre que é inequívoca, permitindo a percepção imediata e segura, por conseguinte, óbvia, dessa invocada fraude ou do aproveitamento abusivo, por parte do beneficiário – v. neste sentido, Ac. TRL de 19.04.2018 (Pº 26602/17.8T8LSB.L1), relatado pela ora relatora e subscrito pelo aqui também 1º adjunto.

Assim, e porquanto se entende que impende sobre o requerente cautelar, que pretenda obstar ao accionamento de garantia bancária autónoma à primeira solicitação, o ónus de alegar e provar, através de prova pronta e líquida, ou seja, através de prova documental inequívoca, que o beneficiário da garantia, ao pretender o seu accionamente, esteja a actuar de forma fraudulenta ou abusiva, o que não se vislumbra estar demonstrado nos autos, maxime, o não incumprimento contratual por banda da requerente por esta invocado, como bem se salientou na sentença recorrida: “A Requerente limita-se a invocar – sem prova evidente e inequívoca – que o montante que ainda não foi devolvido é resultado de incumprimento imputável à Requerida que deixou de fazer quaisquer pagamentos em Julho de 2016 à Requerente pelo que, desde esse período deixou de ser feita a dedução dos pagamentos que deveria ser feita com referência aos pagamentos devidos por cada fase de execução da obra, sendo que se o Certificado de Aceitação da Obra tivesse sido emitido, como o exigia o contrato, a Garantia G/303170 ter-se-ia por limitada ao montante máximo de € 617.176,40. Acresce que relativamente à performance bond, a Requerida nunca interpelou a Requerente para pagar qualquer indemnização por suposta má execução dos trabalhos”.

Sucede que da análise da documentação que a requerente juntou aos autos é possível concluir que existe um diferendo entre a requerente e a 1ª requerida acerca da execução do contrato entre elas celebrado, mas deles não resulta que o accionamento das garantias seja susceptível de consubstanciar um evidente abuso de direito, má-fé, dolo ou violação de normas ou de interesses públicos.

Ademais, das garantias consta a seguinte menção: "The amount of this guarantee shall be automatically decreased by the sum reimbursed by subcontractor to the contractor, upon presentation by the subcontractor to the financial institution of copies of the interim payment certificates approved by the contractor stating the amounts reimbursed, until complete reimbursement of the down payment”.

Ora, inexistindo nos autos, nomeadamente cópias de certificados de pagamentos intercalares aprovados pelo empreiteiro com menção dos montantes reembolsados, não é possível considerar ter a requerente/apelante apresentado elementos de prova documental que permitam a percepção óbvia, imediata e segura dessa invocada fraude ou do aproveitamento abusivo, por parte do beneficiário das garantias, como, de resto, a requerente/apelante o admite ao pretender o prosseguimento dos autos para julgamento, com produção de prova suplementar."

[MTS]