"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/11/2018

Jurisprudência 2018 (110)


Litisconsórcio subsidiário;
admissibilidade


1. O sumário de RE 7/6/2018 (2279/15.4T8EVR-A.E1) é o seguinte:

A legislação processual vigente permite deduzir um mesmo pedido por autor ou contra réu diverso do que aquele que demanda ou é demandado a título principal, nos casos em que exista dúvida fundada sobre os sujeitos que são titulares da relação material controvertida, ao abrigo da disciplina prevista no artigo 39º do Código de Processo Civil.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na situação concreta, a sociedade Autora invoca que, no dia 12 de Dezembro de 2012, na “Zona de
Caça Turística da Quinta dos (…)”, no exercício da actividade venatória, quando estava integrado num grupo de 6 (seis) caçadores, a vítima (…) foi atingido por um tiro proveniente da arma de (…). No entanto, caso se entenda que assim não foi, a responsabilidade deve ser imputada a qualquer um dos outros caçadores que exerciam naquele momento a actividade venatória, por ser possível que qualquer um deles tivesse atingido o lesado. 

Em abono desta tese, a parte activa transporta para a petição inicial elementos que permitem ao decisor optar sucessivamente pela existência de um quadro susceptível de ser integrado na responsabilidade por facto ilícito precipitada no artigo 483º do Código Civil, na responsabilidade presumida presente no artigo 493º do mesmo diploma e, por último, no instituto da responsabilidade pelo risco regulada no artigo 499º do Código Civil.

Se o autor pede em juízo a condenação do agente invocando a culpa deste, ele quer presuntivamente que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. E assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o Tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu [...].

Esquematicamente e por ordem sucessiva, a pretensão da parte activa pode ser reconstituída nos seguintes termos:

1) A responsabilidade pelo acidente e a ocorrência dos danos descritos pertence a (…), por ter sido o autor do tiro que atingiu a vítima (e, por força, do contrato de seguro à “… – Companhia de Seguros, SA”), a título de culpa, ainda que a mesma possa ser presumida por se tratar de uma actividade considerada perigosa. 

2) Caso não exista este quadro de culpa, se se demonstrar que o autor do disparo é o (…), a reparação do dano deve ser conseguida à custa do património deste e da respectiva seguradora, a título de risco.

3) Caso não se demonstre que o (…) foi o autor do disparo, a responsabilidade pelo acidente ocorrido deve ser atribuída a qualquer um dos outros caçadores ali presentes, caso se demonstre que algum deles proferiu o disparo causador dos danos (e às seguradoras para quem foi transferida a responsabilidade civil dos caçadores por força do seguro de responsabilidade civil celebrado entre os outorgantes), sucessivamente a título de culpa ou de risco, nos termos já avançados em 1) e 2).

4) Paralelamente, com base noutra fonte de responsabilização, a Autora pretende a responsabilização civil do organizador da caçada, no caso a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…).

Com base nisto, o Juízo Central do Tribunal da Comarca de Évora entendeu que existia uma situação de ininteligibilidade e de contradição da causa de pedir com o pedido formulado pela Autora. Todavia, como já vimos, a causa de pedir em causa admite que a pretensão seja deferida com base em institutos de responsabilidade civil alternativos (culpa, culpa presumida ou risco).

Em adição, na decisão recorrida é dito que «relativamente ao Réu demandado a título principal, a Autora não descreveu os factos constitutivos do direito de que se arroga, na certeza de que uma coisa são as percepções da direcção do disparo ou até a assunção da sua autoria num primeiro momento e a sua posterior negação, outra, bem distinta, são os factos objectivos imputados ao agente dos quais se possam inferir todos os pressupostos em que assenta a responsabilidade que se lhe imputa, os quais, neste caso, não foram alegados»

Porém, mesmo que não fosse de forma expressa, é absolutamente claro e transparente que a parte activa imputa a este primeiro Réu a deflagração do tiro. E o mesmo se pode dizer da responsabilidade subsidiária dos restantes Réus [...], porquanto, a ideia base da petição inicial é que, caso não se demonstre que o réu principal foi o autor do disparo, o evento terá de se repercutir na esfera de imputação dos outros intervenientes que se dedicavam ao exercício da actividade venatória.

Na defesa da posição tomada, o decisor «a quo» faz apelo à disciplina do pedido subsidiário presente no artigo 554º [...] do Código de Processo Civil. Contudo, é indiscutível que não se está perante um cenário de pedido subsidiário. A pretensão é objectivamente una, unitária e singular e apenas existe uma pluralidade subjectiva subsidiária admitida pelo artigo 39º [...] do Código de Processo Civil.

A legislação processual permite deduzir um mesmo pedido por autor ou contra réu diverso do que aquele que demanda ou é demandado a título principal, nos casos em que exista dúvida fundada sobre os sujeitos que são titulares da relação material controvertida.

Há litisconsórcio subsidiário quando o mesmo pedido é deduzido por ou contra uma parte a título principal e por ou contra outra a título subsidiário. Na opinião de Remédio Marques «trata-se de situações em que, por um lado, (1) o credor da pretensão ignora, sem culpa, a que título ou em que qualidade o devedor interveio no acto ou no facto que serve de causa de pedir; e, por outro, de eventualidades em que o (2) o credor da pretensão ignora se é titular activo dela ou se é o único titular activo» [Acção Declarativa à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 240].

Um acidente de caça em que é desconhecido o responsável pela autoria de um tiro causador da produção de danos configura um exemplo clássico e paradigmático de uma indefinição do titular passivo da relação material controvertida, por desconhecimento, sem culpa do credor, da identidade do lesante. 

A este respeito, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre afiançam que «na base do litisconsórcio subsidiário pode estar a necessidade de apurar quem disparou o tiro ou atropelou o autor (dúvida sobre factos, se o autor ou o réu principal interveio em certo contrato em nome próprio ou em nome alheio (dúvida sobre factos ou sobre a interpretação da norma aplicável) ou se a cessão de crédito do autor principal em data em que ainda não se constituíra» [Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 90].

Em remate final, é lícito concluir que a causa de pedir apresentada contém a factualidade essencial ao nível do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil (evento, ilicitude, culpa, prejuízo e nexo de causalidade). Em adição, o direito interno possibilita o recurso a fontes distintas da responsabilidade civil extracontratual relativamente aos caçadores que participaram no exercício da actividade venatória e respectivas seguradoras. E, por último, a indefinição sobre o titular activo ou passivo da relação material controvertida está salvaguardada no ordenamento jurídico nacional através do recurso ao mecanismo processual previsto no artigo 39º do Código de Processo Civil. Tudo isto, como é óbvio, sem prejuízo da efectiva imputação concreta do comportamento delitual a qualquer dos demandados, pois esta é a premissa que, para lá da descrição factual, permite julgar procedente a acção. 

Sem conceder, até porque não constitui o objecto do recurso em apreciação, aquilo que poderá existir é uma deficiente ou incompleta descrição da factualidade de suporte e não a ausência ou a contradição da causa de pedir no confronto com o pedido formulado ou outro qualquer vício do mesmo tipo." 

Todavia, neste parâmetro, é de ter em atenção a disciplina inscrita no artigo 5º [...] do Código de Processo Civil, que actualmente apenas exige que sejam alegados os factos essenciais [...] e, se assim fosse, a eventual incompletude ou imperfeição dos articulados seria susceptível de ser aperfeiçoada ao abrigo da disciplina presente na al. b) do nºs 2 e 4 do artigo 590º [...] do Código de Processo Civil. 

Deste modo, em conclusão, existe motivo para julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos para efeito de gestão inicial do processo de harmonia com as diversas modalidades admissíveis nos artigos 590º e seguintes do Código de Processo Civil."

[MTS]