"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/11/2018

Jurisprudência 2018 (112)


Temas da prova; prova documental;
factos provados


1. O sumário de RG 24/5/2018 (121/16.8T8CBT.G1) é o seguinte:

I. Pedida a reapreciação da prova deve o Tribunal da Relação apreciar a matéria impugnada efectuando uma apreciação autónoma da prova produzida, no sentido de que o objecto precípuo de cognição não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes a apreciação e valoração da prova produzida, labor que contudo se orienta para a detecção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto; por isso, não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento.

II. A enunciação dos temas da prova deverá ser balizada somente pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas, nos exactos termos que a lide justifique.

III. No limite, pode dizer-se que haverá tantos temas da prova quantos os elementos integradores do tipo legal em causa, o que implica que o juiz e os mandatários das partes atentem nisso

IV. Se houver factos essenciais atinentes à causa de pedir ou às excepções aduzidas já plenamente provados por documentos dotados de força probatória plena ou por confissão, a correspondente matéria não pode nem deve, por inutilidade, ser objecto dos temas de prova, e, daí, embora a lei o não diga expressamente, entende-se que tais factos já considerados provados devem ser elencados no despacho saneador, por forma a evitar que as partes, por cautela e receio, na audiência final inquiram sobre eles prova testemunhal, sem qualquer resultado útil.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A Ré pôs em causa, desde o início da acção, a questão da titularidade pelo autor do direito de propriedade sobre as bicicletas pretensamente danificadas expressamente referenciado no artigo 2º da PI facto que foi impugnado no artigo 1º da contestação, e cujo apuramento – ainda que em sede de contra-prova – justificou o pedido de realização de diligências de prova (cf. alínea h) do requerimento probatório da contestação). [...]
 
Por contestado o apuramento da propriedade sobre esses bens constituía tema da prova (cf. ponto 2 dos temas da prova).

Relativamente a esta questão cumpre referir que a instrução da causa tem, nos termos do disposto no artigo 410.º do C.P.C., por objecto os “temas da prova enunciados”, sendo que, em sede de actividade probatória, é estabelecido que a testemunha depõe sobre a “matéria dos temas da prova”, exigindo-se que o faça com precisão e com a indicação da razão da ciência e de quaisquer outras circunstâncias que justifiquem o conhecimento, conforme o disposto no artigo 516º, do mesmo diploma.

Relativamente aos critérios que deverão nortear a enunciação dos temas da prova, cumpre dizer, desde já, que o método a empregar é fluído, não sendo susceptível de se submeter a “regras” tão precisas e formais quanto as relativas ao questionário e mesmo à base instrutória.

Não obstante a eliminação efectuada pela Lei 41/2013 do despacho a fixar os factos assentes e a base instrutória, a instrução continua a ter, como não podia deixar de ser, por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova, que constituam, impeçam, modifiquem ou extinguem o direito controvertido, tal como plasmados nos articulados.

A enunciação dos temas da prova deverá ser balizada somente pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas, nos exactos termos que a lide justifique - conforme defende Paulo José Reis Alves Pimenta - Os temas da prova (19/04/2013), acessível no sítio do Centro dos Estudos Judiciários, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil. 

No limite, pode dizer-se que haverá tantos temas da prova quantos os elementos integradores do tipo legal em causa, o que implica que o juiz e os mandatários das partes atentem nisso

Por isso, a “prova continuará a incidir sobre os factos concretos que constituem, impedem, modificam ou extinguem o direito controvertido, tal como plasmados nos articulados (…), bem como sobre os factos probatórios de onde se deduza, ou não, a ocorrência destes factos principais e sobre os factos acessórios que permitam ou vedem esta dedução, uns e outros denominados como factos instrumentais”. Cf. Lebre de Freitas, in Sobre o novo Código de Processo Civil – Uma visão de fora, pág. 19 [...]fazendo-se, como se deixou dito, “uma livre investigação e consideração de toda a matéria com pertinência para a decisão da causa, sem uma prévia definição do que é a matéria relevante para essa mesma decisão da causasem que, contudo, se tenha deixado de fixar, dentro dos limites definidos pela causa de pedir, devendo a decisão “incluir todos os factos relevantes para a decisão da causa, quer sejam os principais (dados como provados ou não provados), quer sejam os instrumentais, trazidos pelas partes ou pelos meios de prova produzidos, cuja verificação, ou não verificação, leva o juiz a fazer a dedução quanto à existência dos factos principais”- Cf. Lebre de Freitas, ob cit., pg. 19.

Por outro lado, se houver factos essenciais atinentes à causa de pedir ou às excepções aduzidas já plenamente provados por documentos dotados de força probatória plena ou por confissão, a correspondente matéria não pode nem deve, por inutilidade ser objecto dos temas de prova, e , daí, embora a lei o não diga expressamente, entende-se que tais factos já considerados provados devem ser elencados no despacho saneador, por forma a evitar que as partes, por cautela e receio, na audiência final inquiram sobre eles prova testemunhal, sem qualquer resultado útil.

É dentro deste entendimento dos temas da prova como um suporte de trabalho para o julgamento, estabelecendo as linhas mestras da discussão, que consideramos que a questão da propriedade das bicicletas se encontra enunciada como no ponto 2 dos temas de prova.

E que assim é bem sabe o recorrente, pois esta questão foi objecto de prova aquando da audiência de julgamento. 

Ouvimos o autor responder a questões colocadas pela Sra. Juiz sobre este tema.

Também esta questão foi colocada à testemunha Carlos que há (sic) pergunta se lhe foram fornecidas as facturas das bicicletas? respondeu que: não, apesar de ter sido tal pedido formulado mais do que uma vez, quer por esta testemunhas quer pelo seu supervisor- a testemunha E. M..

Também a testemunha E. M. referiu que foram pedidas as faturas de aquisição e o senhor João não foi capaz de fornecer em tempo útil, nunca forneceu pelo menos eu não tenho conhecimento que tenha fornecido, faturas. Depois emendou a mão durante a conversa e disse que seriam bicicletas de demonstração - que não seriam propriamente dela, da CB, seriam emprestadas. Eu achei estranho, quer dizer...se eu tenho bicicletas minhas tenho que ter uma fatura da compra, se tenho bicicletas à consignação tenho que ter uma fatura, uma nora de consignação e o senhor João nunca foi capaz de provar sequer que as bicicletas eram dele. Eu não sei de quem são as bicicletas. Há 3 bicicletas, elas não estão sujeitas a matricula e até à data e das diligencias que eu fiz e o senhor Carlos acabou também por complementar, penso que nunca chegou à X, atualmente seguradoras U., nenhum documento que prove que as bicicletas são do titular.

Nesta altura não sei de quem são pertença as bicicletas.

Aponta ainda o recorrente como fundamento do seu pedido determinados documentos que estão juntos ao processo alegando que o seu conteúdo foi menosprezado pelo Tribunal - as faturas de fls 117, 118 e 118v e a acta de avaliação de prejuízos elaboradas a título condicional.

Trata-se, efectivamente, de documentos de prova livre, não formal ou vinculada (como acontece com a prova plena), pelo que não aceite a factualidade a que os mesmos se reportam a sua simples análise, desacompanhada de outra prova, não impõe de modo irrefutável a demonstração de factos diversos dos que foram dados como provados ou a modificação da matéria tida como não provada.

 
Analisadas as ditas facturas juntas pelo autor em sede de instrução da causa concorda-se com o afirmado pela recorrida nas suas contra-alegações.

Também se constata que nos documentos em questão não constam referências que permitam, sequer, correlacionar as bicicletas aí mencionados com as que o A disse terem ficado danificadas.

 
Deles não consta os números de série das bicicletas aí mencionadas, algumas das referências são genéricas (como “quadro Cipollinni”) e os próprios valores constantes dessas facturas não têm correspondência com os alegados pelo A.

 
O A tão pouco demonstra ter pago as quantias mencionadas nesses documentos, sendo importante notar que numa dessas facturas refere-se que se tratam (sic) de “bicicletas de amostra apenas para exposição – protótipos não possíveis para venda” - Factura FA FA14/7372 junta a fls. 117v dos autos.

 
Nesses documentos não consta a menção às componentes que o A diz ter montado nas bicicletas, nem juntou qualquer outro meio de prova que ateste a aquisição daqueles e sua montagem nestas.

Por sua vez os documentos 9, 10 e 11 juntos com a contestação não correspondem a meio idóneo de demonstração da propriedade sobre as bicicletas tendo sido elaborados nessa parte apenas no pressuposto meramente declarado pelo autor tendo em vista apenas uma avaliação dos danos, sendo que o perito indicado pela ré que subscreveu esses documentos foi mandatado apenas para avaliar os danos [...] como confirmou no seu depoimento a testemunha António (só faço avaliação dos danos), e não para reconhecer direitos como o de propriedade.

Pelo que o conjunto dos referidos documentos em si mesmo, sem a sua conexão ou reforço por outras provas, revela-se insuficiente para formar a convicção do tribunal no sentido de que correspondem à prova da propriedade das bicicletas. É certo que a compra e venda de bens móveis não está sujeita a forma, e nem sequer a decisão recorrida a exige, porque antes desta questão - que é jurídica - falta provar a factualidade que demonstre a existência do negócio ou acto que tenha transferido a propriedade dos bens em causa para o recorrente.

[MTS]