"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/11/2018

Jurisprudência 2018 (123)


Competência internacional;
Reg. 2201/2003; acção de divórcio

 
1. O sumário de RP 11/7/2018 (1933/18.3T8VNG.P1) é o seguinte:

I - A competência internacional pressupõe que o litígio, tal como o autor o configura na acção, apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.
 
II - Caindo determinada situação no âmbito de aplicação v.g. de um concreto Regulamento Comunitário, e porque as regras internacionais integram-se no ordenamento jurídico de cada Estado, quando o Tribunal português é chamado a conhecer de uma causa em que haja um elemento de conexão com a ordem jurídica de outro Estado contratante, deverá ignorar as regras de competência internacional da lex fori e aplicar as regras uniformes do Regulamento.
 
III - Estabelecendo o artigo 3.º, nº 1, do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro, três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado - Membro para conhecer de uma acção de divórcio, sendo um o da residência habitual, o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges, e, finalmente, o terceiro, o do domicilio comum, verificando-se um deles-o da nacionalidade de ambos os cônjuges-e coincidindo ele com Portugal, ter-se-á, forçosamente, que julgar o tribunal português, onde a acção foi interposta, como o competente (internacionalmente) para a julgar.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"Como supra se referiu é apenas uma questão que importa apreciar e decidir: 

a) - saber se o tribunal recorrido é, ou não, competente internacionalmente para a acção de divórcio impetrada pela Autora.

Como se evidencia da decisão recorrida aí se julgou, oficiosamente, verificada a incompetência absoluta dos tribunais portugueses com fundamento no disposto nos artigos 62.º e 72.º do CPC.

Deste entendimento dissente a recorrente por considerar ser competente internacionalmente para os termos da acção o tribunal recorrido.

Quid iuris?

A propósito da questão da competência internacional dos tribunais portugueses para poderem conhecer de determinada acção, como bem refere o STJ no seu acórdão de 08/04/2010 [...], justifica-se que seja ela trazida à colação quando a causa, através de qualquer um dos seus elementos, tem conexão com uma outra ordem jurídica, além da portuguesa , ou , melhor, quando determinada situação, apesar de possuir, na perspectiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresenta também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa, sendo que, é aos tribunais portugueses que cabe aferir da sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós. [...]

Isto dito, importa, desde logo, sublinhar que é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição, que cabe determinar a competência do tribunal. [...]

E, nos termos do artigo 37.º, n.º 2 da Lei n.º 62/2013 (LOSJ), de 26/08 “A lei de processo fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais”, sendo que “a competência se fixa no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente” (artigo 38.º, n.º 1 do mesmo diploma).
 
[...] no âmbito da aferição da competência internacional dos tribunais portugueses, importa salvaguardar o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, que vinculem internacionalmente o Estado Português, reconhecendo-se, assim, o primado do direito internacional convencional ao qual o Estado Português se encontre vinculado sobre o direito nacional, designadamente a prevalência do direito comunitário sobre o direito nacional. [...]

[...] a aplicação das disposições legais do CPC que fixam e estabelecem os factores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses, mostra-se negativamente delimitada pelo das convenções internacionais regularmente ratificadas e/ou aprovadas, e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
 
[...] Daqui emerge que caindo determinada situação no âmbito de aplicação de um concreto Regulamento, as normas deste último prevalecem sobre as normas de direito interno que regulam a competência internacional [...], como será o caso quando o Tribunal Português é chamado a conhecer de uma causa em que haja um elemento de conexão com a ordem jurídica de outro Estado contratante.

Nestas situações devem, por conseguinte, ignorar-se as regras de competência internacional da lex fori, devendo antes aplicar-se as regras uniformes do Regulamento. [...]

No caso concreto perante o alegado pela apelante na petição inicial, torna-se evidente que o quid dedidendum apresenta alguns elementos de conexão (quanto à nacionalidade da Autora e Réu, residência de ambos os sujeitos processuais e lugar da prática por um dos sujeitos processuais de factos relevantes) que se relacionam, quer com o ordenamento jurídico português, quer com a ordem jurídica alemã.

Estamos, portanto, perante litígio ao qual se aplica o Regulamento (CE) 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro, relativo à competência, ao reconhecimento, e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental que, no artigo 3.º, sob a epígrafe de “Competência Geral“, e inserido no respectivo capítulo II, Secção 1 (com o título de Divórcio, Separação e Anulação do Casamento), estabelece o seguinte:

1 - São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação de casamento, os tribunais do Estado ­ Membro:

a) Em cujo território se situe:

- a residência habitual dos cônjuges, ou

- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou

- a residência habitual do requerido, ou

- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido, pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado - Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu “domicilio”;

b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges, ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do “domicílio” comum" 

2. Para efeitos do presente regulamento, o termo “domicílio” é entendido na acepção que lhe é dada pelos sistemas jurídicos do Reino Unido e da Irlanda.

Preceitua, por outro lado o artigo 6.º, do mesmo Regulamento sob a epígrafe “Carácter exclusivo das competências definidas nos artigos 3.º, 4.º e 5.º” que:

Qualquer dos cônjuges que:

a) Tenha a sua residência habitual no território de um Estado-Membro; ou 

b) Seja nacional de um Estado-Membro ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, tenha o seu “domicílio” no território de um destes dois Estados-Membros, só por força dos artigos 3.º, 4.º e 5.º pode ser demandado nos tribunais de outro Estado-Membro.

Finalmente, estatui o mesmo Regulamento, no seu artigo 17.º sob a epígrafe “Verificação da competência” que: “O tribunal de um Estado-Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência nos termos do presente regulamento e para o qual o tribunal de outro Estado-Membro seja competente, por força do presente regulamento, declara-se oficiosamente incompetente“.

Dos citados preceitos resulta, assim, que são três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para poder conhecer de uma acção de divórcio:

a) - o da residência habitual (que por sua vez se subdivide em 5 outros critérios, todos eles interligados ao conceito de residência habitual);

b) - o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges;

c) e, finalmente, o terceiro, o do domicílio comum (mas neste caso aplicável apenas ao Reino Unido e Irlanda).

Resulta igualmente dos citados incisos que, verificando-se concomitantemente diversos critérios ao dispor do requerente/autor, pode ele lançar mão de qualquer deles, desde que, em todo o caso, a sua opção não colida com o disposto no citado artigo 6.º (não poder o demandado, desde que com residência habitual no território de um Estado-Membro, ou nacional de um Estado-Membro, ser demandado nos tribunais de outro Estado-Membro, a não ser que tal possibilidade resulte dos artigos 3.º, 4.º e 5.º do Regulamento).

Portanto, os critérios de competência em matéria matrimonial são de aplicação alternativa, o que significa que não existe nenhuma hierarquia e, consequentemente, nenhuma ordem de precedência entre eles. [...]

Aqui chegados, e porque como vimos supra é em função da relação jurídica pelo autor delineada na petição que cabe determinar a competência do tribunal para de determinada acção poder/dever conhecer, certo é que ambos os cônjuges têm a residência na Alemanha, que não em Portugal, razão porque, desde logo, importa afastar a possibilidade do primeiro critério geral referido, a saber, o da residência habitual.

Todavia, ambos os cônjuges têm a nacionalidade portuguesa, o que equivale a dizer que se verifica o critério da Nacionalidade de ambos os cônjuges, tal como o refere o nº 1 al. b), do artigo 3.º, do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro."

[MTS]