Competência internacional;
Reg. 1215/2012; âmbito de aplicação
1. O sumário de RL 24/5/2018 (27.881/15.0T8LSB-A.L1-6) é o seguinte:
I – Em matéria relativa à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial coexistem, actualmente, na nossa ordem jurídica, dois regimes gerais de aferição da competência internacional: (i) o regime emanado do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e (ii) o regime interno estabelecido nos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil.
II – O regime interno de competência internacional só será aplicável se o não for o regime comunitário, que é de fonte normativa hierarquicamente superior, face ao primado do direito europeu (cf. artigos 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e 1.ª parte do art.º 59.º do CPC).
III – O decretamento de medidas de administração de um imóvel comum de casal dissolvido, no âmbito de processo especial de suprimento de deliberação de comproprietários (art.º 1002º do CPC), na pendência de acção de liquidação da comunhão conjugal subsequente a acção de divórcio, não incide «em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis» e por isso não se inscreve no âmbito de aplicação do n.º 1 do artigo 24.º, do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro.
IV – O litígio a que respeita a providência requerida nos autos deve antes ser qualificado como relativo a matéria de «regime de bens do casamento», para efeitos da excepção prevista no artigo 1.º, número 2, alínea a), do mesmo Regulamento.
V – As relações jurídicas patrimoniais resultantes directamente do vínculo conjugal ou da sua dissolução, ou seja, as relações jurídicas relativas ao “regime de bens do casamento” devem considerar-se como abrangidas pela excepção prevista no artigo 1º, n.º 2, alínea a), do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, para efeitos de se considerar excluída a aplicação deste instrumento jurídico internacional a tais situações.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"3.3.- Sendo Portugal e a Espanha Estados-Membros da União Europeia, importa averiguar se ao litígio dos autos é aplicável, como decidiu a 1ª Instância e defende a Recorrida, o regime comunitário definido pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que revogou o Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000, ou se, pelo contrário, se este regime tem de ser afastado, como sustenta o Recorrente, uma vez que a matéria em causa nos presentes autos está excluída do âmbito de aplicação deste Regulamento.
3.4.- Nos presentes autos, a Autora invoca como causa de pedir um direito real (direito à habitação) sobre um bem comum (imóvel) do casal dissolvido (esta é a tese da Autora, plasmada na petição inicial).
Está, assim, em causa uma questão de competência em matéria de «regime matrimonial», na acepção do legislador europeu que foi vertida para o Regulamento (EU) 2016/1103, do Conselho, de 24 de Julho de 2016, que implementa a cooperação reforçada no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais (Cf. Jornal Oficial da União Europeia, de 8/07/2016 [[...]].
Na definição dada pela alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do referido Regulamento, entende-se por «Regime matrimonial» o conjunto de normas relativas às relações patrimoniais dos cônjuges e às suas relações com terceiros, em resultado do casamento ou da sua dissolução.
Vistas as coisas na acepção do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, ora em análise, o litígio dos autos respeita a matéria conexa com «regime de bens do casamento» e não a «matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis» como considerou – aliás, erradamente – o Tribunal a quo.
Ora, o Regulamento n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, não se aplica aos “regimes de bens do casamento”, por se tratar de matéria expressamente excluída do seu âmbito de aplicação, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do aludido Regulamento.
Trata-se, aliás, de uma excepção que já se encontrava consagrada, em termos algo similares [...], na Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, datada de 27/09/1968, a qual esteve na origem do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro, que foi revogado pelo Regulamento n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro.
Ora, a questão relativa à interpretação a dar ao artigo 1.°, segundo parágrafo, n.º 1, da Convenção de Bruxelas, que excluía do seu âmbito de aplicação «o estado e a capacidade das pessoas singulares, os regimes matrimoniais, os testamentos e as sucessões», já foi colocada, a titulo prejudicial, ao Tribunal de Justiça das Comunidades e este, pronunciando-se sobre a mesma, no acórdão datado de 27/03/1979 (proc. n.º 143/78, proposto por Jacques de Cavel contra Luise de Cavel [], disponível em www.http://CURIA.EUROPA.EU/), declarou:
«As decisões judiciais que autorizam medidas de protecção provisórias - como a aposição de selos ou o arresto de bens dos cônjuges — no decurso de um processo de divórcio não se inserem no âmbito de aplicação da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judicial e à execução de decisões em matéria civil e comercial, tal como é definido no seu artigo 1.°, uma vez que essas medidas respeitam, ou se encontram estreitamente ligadas, quer a questões relativas ao estado das pessoas implicadas no processo de divórcio, quer a relações jurídicas patrimoniais resultantes directamente do vinculo conjugal ou da sua dissolução».
Mais recentemente, o Tribunal de Justiça das Comunidades (Sexta Secção) foi chamado a pronunciar-se (proc. n.º 67-C/2017, acessível em www.http://CURIA.EU/ [[]] sobre a interpretação do artigo 1.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1) e por DESPACHO datado de 14 de Junho de 2017 declarou:
«O artigo 1.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que um litígio como o do processo principal, relativo à partilha, após pronúncia de um divórcio, de um bem móvel adquirido na constância do matrimónio por cônjuges nacionais de um Estado‑Membro mas residentes noutro Estado‑Membro não está abrangido pelo âmbito de aplicação deste regulamento, mas pelo domínio dos regimes matrimoniais e, portanto, pelas exclusões previstas no referido artigo 1.°, n.° 2, alínea a)».
Por sua vez, ainda no âmbito do mesmo processo de reenvio prejudicial, o Advogado Geral rematou as Conclusões que em 22 de Fevereiro de 1979 apresentou ao Tribunal de Justiça, da seguinte forma:
«Em definitivo, concluímos que em resposta à questão submetida ao Tribunal de Justiça pelo Bundesgerichtshof, o Tribunal declare que um despacho que tem por objecto medidas cautelares, proferido por um órgão jurisdicional de um Estado-membro no decurso de uma acção de divórcio, não está, pela simples razão de ter sido proferido no âmbito de tal processo, fora do âmbito da convenção de 27 de Setembro de 1968, mas que, sempre que o despacho respeite a bens que constituem objecto de litígio entre as partes nesse processo, deve ser considerado como fora do âmbito de aplicação da convenção, a menos que resulte do próprio despacho que os direitos em litígio nasceram independentemente do vínculo conjugal entre as partes».
Na verdade, a definição da titularidade de um bem imóvel como comum ou próprio, assim como o pronunciamento sobre as consequências a retirar dessa definição para o seu uso, constituem, inquestionavelmente, matérias que se têm como compreendidas no âmbito do “regime de bens de casamento”, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012.
As relações jurídicas patrimoniais resultantes directamente do vínculo conjugal ou da sua dissolução, ou seja, as relações jurídicas relativas ao “regime de bens do casamento” caiem, claramente, no âmbito da excepção prevista no artigo 1º, n.º 2, alínea a), do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, o que exclui a aplicação ao caso sub judice deste instrumento jurídico internacional.
É esse, aliás, como se viu, o entendimento da jurisprudência produzida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, que também perfilhamos.
Como bem sustenta o Professor Moura Ramos no seu Parecer junto aos autos, devendo a matéria em discussão nos autos ser qualificada como relativa a matéria de «regime de bens do casamento», para efeitos da excepção prevista no artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, não se pode deduzir deste acto de direito da União Europeia a competência dos tribunais portugueses para decidir o diferendo que perante eles foi levado a julgamento.
Concorda-se, em suma, com o mesmo Parecer quando conclui que “Uma decisão proferida sobre um inventário, que qualificou a fracção em causa como bem comum do casal (…) é, sem qualquer dúvida, uma decisão que resulta directamente do casamento (rectius, da sua dissolução), uma vez que só tem lugar por força e como consequência dessa dissolução, pelo que constitui uma decisão «em matéria de regimes de bens do casamento» para os efeitos da alínea a) do número 2 do artigo 1.º do Regulamento n.º 1215/2012. Encontra-se, por isso, excluída do âmbito de aplicação do mecanismo de reconhecimento por este instituído (…).”
[MTS]