"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/11/2018

Jurisprudência 2018 (117)


Dívida comum; execução;
litisconsórcio necessário



1. O sumário de STJ 22/5/2018 (2299/10.5TBAMT-A.P1.S1) é o seguinte:

I - Na ação executiva, em regra, o pressuposto processual da legitimidade afere-se exclusivamente pelo título executivo (art. 53.º, n.º 1, do CPC).

II - Admite-se a hipótese de litisconsórcio passivo necessário, em processo executivo, quando a mesma prestação deva ser exigida a todos os devedores/executados, pela natureza indivisível da prestação, pela lei ou por negócio.

III - A qualificação da dívida exequenda como comum não determina, por si, a existência de litisconsórcio necessário.

IV - A executada, única demandada, é parte legítima na execução movida por exequente com base em título executivo respeitante a uma dívida da sua responsabilidade e do seu ex-cônjuge.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O Acórdão recorrido veio a absolver a Executada da instância, por ter entendido que se verificava a exceção de ilegitimidade dado que a executada não tinha sido demandada conjuntamente com o seu ex-marido, que também tinha subscrita a “declaração de dívida”.

Na acção executiva e por via de regra, o pressuposto processual da legitimidade afere-se exclusivamente pelo título executivo (n.º 1 do artigo 53.º do Código de Processo Civil). Daí que se deva considerar que tem legitimidade para promover e fazer seguir a execução quem no título figure como credor e que só deve intervir como executado quem, à luz do título, seja devedor da obrigação exequenda (cfr. Acórdão do STJ, de 15 de abril, acessível em www.dgsi.pt).

Temos assim que, no contexto da ação executiva, a aferição da legitimidade adjetiva é efetuada num prisma exclusiva e marcadamente formal. O texto legal foi, aliás, redigido com o intuito de não atribuir importância à efetiva titularidade (do lado ativo ou passivo) do direito de crédito contido no título executivo e de apenas relevarem as posições creditícias e debitórias que deste derivam (cfr. Anselmo de Castro, in A acção executiva singular, comum e especial, págs.76/77, e Alberto dos Reis, in Processo de Execução, vol. 1º, pág.219).

Por contraponto e como se sabe, no contexto da ação declarativa, a legitimidade processual é aferida em vista de um critério substantivo – o interesse em demandar e em contradizer – cfr. n.º 1 do artigo 30.º, do Código de Processo Civil.

O emprego de um discrepante critério de aferição do mesmo pressuposto processual resulta do facto de o título executivo que, necessária e impreterivelmente sustenta a execução, integrar em si o direito exequendo e possuir um nível de segurança tido por lei como suficiente quanto à existência daquele (cfr. Lebre de Freitas, A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, pág.46), o que torna despicienda qualquer indagação prévia sobre a subsistência do mesmo.

Assim, na maior parte dos casos, o exame do título dado à execução permitirá aferir a legitimidade adjetiva. Tratando-se de título extrajudicial, o exequente corresponderá à pessoa a favor de quem foi constituída a obrigação nele documentada e o executado será quem a contraiu.

No seguimento do que supra expusemos, temos que sempre que se verifique falta de coincidência entre quem promove - ou contra quem é promovida - a ação executiva e o título executivo, verificar-se-á ilegitimidade (cfr. Acórdão do STJ, de 20 de fevereiro de 2014). Trata-se de uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso cuja verificação implicará o indeferimento liminar do requerimento executivo ou, caso seja apenas conhecida em momento ulterior do processo (maxime até às diligências de venda), a rejeição da execução (n.º 2 do artigo 576.º, alínea e) do artigo 577.º, artigo 578.º alínea b) do n.º 2 do artigo 726.º e n.º 1 do artigo 734.º, todos do Código de Processo Civil).

Existem, é certo, desvios à regra de aferição formal da legitimidade que atrás enunciámos.

Desde logo, a que consta do n.º 2 do artigo 53.º, do Código de Processo Civil, na qual se alude ao título ao portador, o qual não contém, obviamente, a identificação do credor. Por sua vez, o n.º1 do artigo 54.º do Código de Processo Civil prevê a hipótese de ter ocorrido sucessão no direito ou na obrigação constante do título e estipula que a execução deve correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda.

O n.º 2 do mesmo preceito viabiliza que a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro corra diretamente contra este. E o n.º 4 daquele artigo permite que, estando os bens onerados do devedor na posse de terceiro, este seja conjuntamente demandado.

Por fim, o artigo 55.º do Código de Processo Civil em decorrência das normas atinentes à abrangência subjetiva do caso julgado, estipula que a execução fundada em sentença condenatória pode ser promovida, ademais, contra terceiros a ela vinculadas.

Note-se, contudo, que o facto de as expressões “credor” e “devedor” empregues na letra do n.º 1 do artigo 53.º do Código de Processo Civil terem sido formuladas no singular não impede que se desconsiderem eventuais litisconsórcios ativos ou passivos, havendo, nesse caso, que entendê-las por referência ao respetivo grupo.

E isto porque é de admitir a hipótese de a ação executiva respeitar a uma pluralidade de pessoas. Assim, existirá um litisconsórcio em processo executivo quando a mesma prestação for exigida por vários exequentes ou a vários executados – isto é, quando se verifique unidade na obrigação e unidade ideal de credores e devedores –, sendo aquele de qualificar como necessário à luz do critério enunciado no n.º 1 do artigo 34.º, do Código de Processo Civil, sempre que a intervenção de todos os devedores seja requerida pela natureza indivisível da prestação, pela lei ou por negócio (Lebre de Freitas, obra citada, pág.158, e Rui Pinto, in Manual da Execução e Despejo, pág.302).

Regressando ao caso vertente, temos que o acórdão recorrido considerou que, pelo facto de o título dado à execução respeitar a uma dívida da responsabilidade da executada e do seu ex-marido, verificar-se-ia um caso de litisconsórcio necessário legal e inicial. Para tanto, convocou-se a previsão da primeira parte do n.º 3 do artigo 34.º do Código de Processo Civil).

É inequívoco que, no título dado à execução para pagamento de quantia certa instaurada pelo recorrente (cfr. ponto n.º 1 do elenco factual), figuram, como devedores, a executada e o CC, que foi casada com a recorrida até 28 de junho de 2007 – cfr. fls.48, pelo que, face ao critério enunciado no n.º 1 do artigo 53.º, qualquer um deles deteria legitimidade para a presente ação executiva, sem que, sequer, seja necessário convocar qualquer dos aludidos desvios e exceções a essa regra.

Porém, a ação executiva foi apenas instaurada contra a executada.

De acordo com o que emerge do título executivo, a quantia exequenda provirá de um empréstimo da quantia de €55 500 que aquela e o seu marido obtiveram por parte do exequente.

Trata-se, como bem se refere no acórdão recorrido, de uma dívida contraída pelos ex-cônjuges. Como tal, a responsabilidade pela sua satisfação é atribuída a ambos e onera o património comum do dissolvido casal (n.º 2 do artigo 1690.º, alínea a) do n.º 1 do artigo 1691.º e do artigo 1695.º, todos do Código Civil).

Sucede, porém, que se deve entender que a previsão da primeira parte do n.º 3 do artigo 34.º do Código de Processo Civil tem o seu campo de aplicação confinado à ação declarativa. Tal solução, além de afastar as dificuldades práticas que decorreriam do emprego daquele critério na ação executiva, justifica-se pela circunstância de a ratio daquele preceito – a salvaguarda de ambos os cônjuges quando se discuta o regime de responsabilidade patrimonial pelo facto pretensamente atribuível àqueles – esgotar a sua eficácia na definitiva fixação da responsabilidade comum dos cônjuges.

Saliente-se, por seu turno, que o risco de perda de bens apenas disponíveis por ambos (cfr. n.º 1 do artigo 34.º ex vi n.º 3 do mesmo preceito) é, em casos como o dos autos acautelado por via dos mecanismos prevenidos pelo n.º 1 do artigo 740.º e pela alínea a) do n.º 1 do artigo 786.º. Deve-se, aliás, notar que o preceituado no n.º 1 do artigo 740.º é aplicável ainda que ambos os cônjuges detivessem ab initio legitimidade para a execução, tanto mais que a expressão legal – “execução movida só contra um dos cônjuges” – inculca que, neste contexto, irreleva a índole própria ou comum da dívida.

Deve-se, por tudo isto, considerar que o n.º 3 do artigo 34.º não impõe ao credor exequente que esteja munido de título executivo extrajudicial que vincule ambos os cônjuges a obrigação de instaurar a execução contra aqueles. Dito de outra forma, o facto de, no título, figurar como devedor o ex-marido da recorrida não importa a sua demanda conjunta.

Esta posição não é, porém, unívoca na doutrina.

Embora reconheça a tendencial inexistência de litisconsórcio necessário no âmbito da execução para pagamento de quantia certa e a falta de imposição legal expressa, sustenta Rui Pinto (ob. citada, págs.533 e 534) que, sendo a dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, a execução intentada apenas contra um deles não produz o seu efeito útil normal, viabilizando, contra a lei substantiva, a geração de uma responsabilidade comum parcial. Perfilha, por isso, o entendimento de que a primeira parte do n.º 3 do artigo 34.º é aplicável à ação executiva, excluindo hipóteses como a dos autos do âmbito da aplicação da previsão do n.º 1 do artigo 740.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 786.º.

O mencionado autor baseia-se nos entendimentos de Castro Mendes (in Direito Processual Civil, II vol., Revisto e Actualizado, págs.112 e 290) e de Teixeira de Sousa (in A Acção Executiva Singular, págs.219/220).

O primeiro defende que, pretendendo o exequente executar uma dívida comunicável que foi contraída por um dos cônjuges sem a intervenção do outro (o que, como se disse, não é o caso dos autos), existe um litisconsórcio necessário legal que impõe a demanda conjunta.

Na mesma esteira, o segundo professa o entendimento de que, vigorando entre os cônjuges um dos regimes de comunhão matrimonial e existindo apenas título executivo extrajudicial contra um deles (o que, como apontámos, não ocorre no caso dos autos), deve, em harmonia com o disposto na 2.ª parte do n.º 3 do actual artigo 34.º, ser requerida a intervenção principal do outro cônjuge para que, na execução, se mostre assegurada a participação de ambos os cônjuges na lide, o que é indispensável pelo facto de os bens comuns do casal serem responsáveis pela satisfação da dívida.

Revertendo ao caso em análise, temos a observar o seguinte.

Em primeiro lugar, o regime de bens que vigorou durante a constância do matrimónio que uniu a recorrida e CC foi o da comunhão de adquiridos, atento o facto de ser aplicável o regime supletivo (casamento celebrado em 21 de dezembro de 2006, sem convenção antenupcial – cfr. fls.47) e ignora-se a existência de bens comuns do casal.

Para mais, em momento algum, o recorrente faz menção à pretensão de efetivar a responsabilidade comum do dissolvido casal. Se assim é, deve-se entender que o credor exequente pretende, pelo menos inicialmente, que a execução recaia apenas sobre os bens próprios da executada e pela sua meação nos bens comuns (n.º 1 do artigo 1696.º do Código Civil) se os houver. Tal opção está compreendida no seu poder de condução da lide consoantes os seus interesses.

É certo que essa opção acarreta um risco – já que se faculta à executada um fundamento para deduzir o incidente de oposição à penhora, a saber a subsidiariedade da responsabilização dos bens próprios pela dívida comum – cfr. n.º 1 do artigo 1695.º do Código Civil e alínea b) do n.º 1 do artigo 784.º). Porém, em concreta homenagem ao princípio da auto-responsabilização das partes pela condução da lide, não se antevê qualquer razão para que se outorgue impositivamente ao recorrente um benefício de que ele dispensou (cfr. Acórdão do STJ, de 17 de maio de 2016, acessível em www.dgsi.pt).

Por aqui se vê que a qualificação da dívida exequenda como comum não determina, por si, a existência de litisconsórcio necessário.

Por outro lado, afigura-se-nos que, estando a responsabilidade comum pela dívida exequenda suficientemente acertada no título (sendo, portanto, despicienda a intervenção de CC para a definir), é injustificável a formulação de uma exigência de uma demanda conjunta, que pode até, na prática, se vir a revelar dificilmente conciliável com o exercício do direito de ação.

Nestes termos e sopesando, também, as razões acima aludidas, pensamos que os entendimentos acima sumariados não resolvem satisfatoriamente a questão decidenda. […]

Deste modo, deve ser concedido ao provimento ao recurso, devendo os autos baixarem ao Tribunal da Relação para conhecimento das demais questões colocadas na apelação, já que o Supremo Tribunal de Justiça está impedido de sobre elas tomar posição (cfr. artigos 679º e 665º, ambos do Código de Processo Civil)."

3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a posição do STJ. Não se percebe como é que, sendo a dívida comum e havendo título executivo contra ambos os cônjuges, é possível entender que ambos os cônjuges não têm de ser demandados. 

No fundo, o que a orientação defendida no acórdão faz é desconsiderar a regra da responsabilidade de ambos os cônjuges pela dívida comum que consta do art. 1695.º CC. Em vez de respeitar esta regra -- que, naturalmente, é imperativa --, o que o acórdão realmente  entende é que o credor pode escolher qual é o cônjuge que é responsável por uma dívida comum. Quer dizer: em vez de ser -- como deve ser -- o regime substantivo a determinar o regime processual, o acórdão permite que este último modifique aquele regime substantivo. 

Também não se pode acompanhar a afirmação de que "deve-se […] notar que o preceituado no n.º 1 do artigo 740.º é aplicável ainda que ambos os cônjuges detivessem ab initio legitimidade para a execução, tanto mais que a expressão legal – “execução movida só contra um dos cônjuges” – inculca que, neste contexto, irreleva a índole própria ou comum da dívida." O art. 740.º, n.º 1, CPC refere-se à situação em que, numa execução movida contra um único dos cônjuges, são penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado. Ora, esta hipótese só pode verificar-se, como resulta do disposto no art. 1696.º, n.º 1, CC, na situação em que a dívida é da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges. Não se compreende, portanto, como é que no acórdão se afirma que, na situação regulada no art. 740.º, n.º 1, CPC, irreleva se a dívida é própria ou comum.


[MTS]