Apreciação da prova;
competência do STJ
1. O sumário de STJ 8/3/2018 (2170/13.9TVLSB.L1.S1) é o seguinte:
I - Pedindo os autores que se declare nulo um testamento por, no momento da sua outorga (25-05-2011), se verificar incapacidade acidental da testadora, considera-se terem os mesmos feito prova dos factos constitutivos do direito alegado, tal como lhes competia de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova (art. 342.º, n.º 1, do CC), quando a Relação, alterando a matéria de facto, deu como provado que “Em 25MAI2011, a A não estava capaz de emitir uma vontade livre e esclarecida quanto à disposição dos seus bens nem de compreender o significado do testamento que assinou”.
II - Não cabe ao STJ sindicar o erro na livre apreciação das provas, “salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (art. 674.º, n.º 3, do CPC) ou ainda quando, naquela apreciação, o tribunal recorrido tenha incorrido em manifesta ilogicidade no uso das presunções judiciais.
III - A circunstância de constar do testamento, lavrado por notária, que “foi feita a sua leitura e a explicação do seu conteúdo à testadora” não faz com que a capacidade desta esteja abrangida pela força probatória plena daquele documento autêntico, tanto porque apenas ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora ou que nele são atestados com base nas suas percepções, mas já não os meros juízos pessoais do documentador (art. 371.º, n.º 1, do CC); como, porque, no caso concreto, tal atestação não integra sequer o documento autêntico.
IV - Não se divisando, face ao teor da fundamentação constante do acórdão recorrido, que o raciocínio desenvolvido pela Relação no sentido de dar como provado o facto referido em I revele ilogicidade manifesta, não é permitida a sua censura pelo STJ.
II - Não cabe ao STJ sindicar o erro na livre apreciação das provas, “salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (art. 674.º, n.º 3, do CPC) ou ainda quando, naquela apreciação, o tribunal recorrido tenha incorrido em manifesta ilogicidade no uso das presunções judiciais.
III - A circunstância de constar do testamento, lavrado por notária, que “foi feita a sua leitura e a explicação do seu conteúdo à testadora” não faz com que a capacidade desta esteja abrangida pela força probatória plena daquele documento autêntico, tanto porque apenas ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora ou que nele são atestados com base nas suas percepções, mas já não os meros juízos pessoais do documentador (art. 371.º, n.º 1, do CC); como, porque, no caso concreto, tal atestação não integra sequer o documento autêntico.
IV - Não se divisando, face ao teor da fundamentação constante do acórdão recorrido, que o raciocínio desenvolvido pela Relação no sentido de dar como provado o facto referido em I revele ilogicidade manifesta, não é permitida a sua censura pelo STJ.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
7. Quanto à questão da alegada ilogicidade manifesta no uso de presunções judiciais para dar como provado o facto 23 (“Em 25MAI2011 LL não estava capaz de emitir uma vontade livre e esclarecida quanto à disposição dos seus bens nem de compreender o significado do testamento que assinou”), consideremos os termos em que o acórdão recorrido fundamentou a decisão:
“Está em causa nos autos saber se a testadora, no momento em que exarou o testamento cuja anulação se pretende ver decretada, estava incapacitada de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade (cf. art.° 2199° do CCiv). (…)
No caso concreto dos presentes autos a prova directa da alegada incapacidade da testadora só poderia resultar dos depoimentos de quem teve intervenção no acto, no caso a notária perante a qual foi lavrado o testamento e as testemunhas de tal acto.
Os seus depoimentos no entanto não permitem formular qualquer juízo quanto à capacidade da testadora.
Com efeito, a notária não teve qualquer outro contacto com a testadora que não o ocorrido no momento da outorga do testamento; quer o seu agendamento quer o seu conteúdo foram tratados com o escritório de advogados com quem habitualmente trabalha''. Afirmou não se recordar em concreto do diálogo que encetou com a testadora mas que este terá obedecido ao habitual nos casos idênticos: que após a leitura do testamento seja perguntado se o que acabou de ser lido corresponde à vontade do testador, se é o que quer e se disso tem a certeza; sendo certo que da interacção que teve com a testadora não se lhe afigurou que a mesma tivesse qualquer dificuldade de entendimento. O que se retira desse depoimento é que a intervenção da notária se limitou à formalidade do acto onde ocorreu uma conversação 'formatada' e, dada a simplicidade da disposição testamentária, a um nível muito básico, insusceptível de fundamentar qualquer juízo sério sobre a capacidade intelectual da testadora.
Ideia que, aliás, é reiterada pelos depoimentos das testemunhas do acto.
NN diminuiu a credibilidade do seu depoimento pela forma como manifestou a sua intencionalidade de mais do que descrever o que viera ao seu conhecimento afirmar que a testadora "estava lúcida" e 'sabia o que estava a assinar"; foi, como se usa dizer, 'directo ao que interessava'. Essa credibilidade mais comprometida ficou quando nas instâncias foi obrigado a reconhecer que afinal não se lembrava de situação que anteriormente afirmara peremptoriamente ter-se verificado de determinada forma. Uma circunstância, no entanto, afirmou e que se afirma digna de registo e de credibilidade: ser vizinho de longa data do casal da testadora na … e que esta ao chegar ao cartório o reconheceu, cumprimentando-o e perguntando pelos seus familiares próximos.
OO desde logo se anuncia como testemunha não da testadora mas de um seu sobrinho que foi quem lhe pediu para assumir essa posição, limitando-se depois a descrever o acto da outorga do testamento sem qualquer referência concreta e sustentada sobre a sua decorrência, da qual surge como absolutamente alheado, e a afirmar que a testadora apesar de pessoa idosa estava bem porquanto "não batia com a cabeça na secretária". Depoimento imprestável.
Resta, pois, aferir se do acervo probatório resultam demonstrados factos circunstanciais que permitam ajuizar sobre a capacidade da testadora no momento em que outorgou o testamento.
Nesse campo logo assumem particular importância os exames neuropsicológicos da testadora [...] realizados antes e depois da data do testamento na medida em que caracterizam o estado das suas funções intelectuais e a sua evolução ao longo do tempo, sendo de levar ao elenco factual essa caracterização e não apenas uma síntese conclusiva dos mesmos; e também o testemunho daquela que foi a sua médica assistente.
Segundo esses exames a testadora apresentava um defeito generalizado nas funções nervosas superiores" que se caracterizava em JUN2010, entre outros, por défice grave nas capacidades de evocação, aprendizagem e abstracção, na leitura e escrita, na fluência verbal e no cálculo elementar; verificando-se em 10SET2012, e por referência à situação anterior, um agravamento acentuado de quase todos os referidos défices.
A sua médica assistente prestou depoimento caracterizando o comportamento da testadora ao longo do tempo e afirmando o carácter oscilante da demência naquele tipo de doença; não obstante, pelo que acompanhou da evolução do estado de saúde da testadora, não deixou de afirmar achar improvável a mesma estar na posse de capacidades para querer e entender o testamento.
“Está em causa nos autos saber se a testadora, no momento em que exarou o testamento cuja anulação se pretende ver decretada, estava incapacitada de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade (cf. art.° 2199° do CCiv). (…)
No caso concreto dos presentes autos a prova directa da alegada incapacidade da testadora só poderia resultar dos depoimentos de quem teve intervenção no acto, no caso a notária perante a qual foi lavrado o testamento e as testemunhas de tal acto.
Os seus depoimentos no entanto não permitem formular qualquer juízo quanto à capacidade da testadora.
Com efeito, a notária não teve qualquer outro contacto com a testadora que não o ocorrido no momento da outorga do testamento; quer o seu agendamento quer o seu conteúdo foram tratados com o escritório de advogados com quem habitualmente trabalha''. Afirmou não se recordar em concreto do diálogo que encetou com a testadora mas que este terá obedecido ao habitual nos casos idênticos: que após a leitura do testamento seja perguntado se o que acabou de ser lido corresponde à vontade do testador, se é o que quer e se disso tem a certeza; sendo certo que da interacção que teve com a testadora não se lhe afigurou que a mesma tivesse qualquer dificuldade de entendimento. O que se retira desse depoimento é que a intervenção da notária se limitou à formalidade do acto onde ocorreu uma conversação 'formatada' e, dada a simplicidade da disposição testamentária, a um nível muito básico, insusceptível de fundamentar qualquer juízo sério sobre a capacidade intelectual da testadora.
Ideia que, aliás, é reiterada pelos depoimentos das testemunhas do acto.
NN diminuiu a credibilidade do seu depoimento pela forma como manifestou a sua intencionalidade de mais do que descrever o que viera ao seu conhecimento afirmar que a testadora "estava lúcida" e 'sabia o que estava a assinar"; foi, como se usa dizer, 'directo ao que interessava'. Essa credibilidade mais comprometida ficou quando nas instâncias foi obrigado a reconhecer que afinal não se lembrava de situação que anteriormente afirmara peremptoriamente ter-se verificado de determinada forma. Uma circunstância, no entanto, afirmou e que se afirma digna de registo e de credibilidade: ser vizinho de longa data do casal da testadora na … e que esta ao chegar ao cartório o reconheceu, cumprimentando-o e perguntando pelos seus familiares próximos.
OO desde logo se anuncia como testemunha não da testadora mas de um seu sobrinho que foi quem lhe pediu para assumir essa posição, limitando-se depois a descrever o acto da outorga do testamento sem qualquer referência concreta e sustentada sobre a sua decorrência, da qual surge como absolutamente alheado, e a afirmar que a testadora apesar de pessoa idosa estava bem porquanto "não batia com a cabeça na secretária". Depoimento imprestável.
Resta, pois, aferir se do acervo probatório resultam demonstrados factos circunstanciais que permitam ajuizar sobre a capacidade da testadora no momento em que outorgou o testamento.
Nesse campo logo assumem particular importância os exames neuropsicológicos da testadora [...] realizados antes e depois da data do testamento na medida em que caracterizam o estado das suas funções intelectuais e a sua evolução ao longo do tempo, sendo de levar ao elenco factual essa caracterização e não apenas uma síntese conclusiva dos mesmos; e também o testemunho daquela que foi a sua médica assistente.
Segundo esses exames a testadora apresentava um defeito generalizado nas funções nervosas superiores" que se caracterizava em JUN2010, entre outros, por défice grave nas capacidades de evocação, aprendizagem e abstracção, na leitura e escrita, na fluência verbal e no cálculo elementar; verificando-se em 10SET2012, e por referência à situação anterior, um agravamento acentuado de quase todos os referidos défices.
A sua médica assistente prestou depoimento caracterizando o comportamento da testadora ao longo do tempo e afirmando o carácter oscilante da demência naquele tipo de doença; não obstante, pelo que acompanhou da evolução do estado de saúde da testadora, não deixou de afirmar achar improvável a mesma estar na posse de capacidades para querer e entender o testamento.
Os restantes depoimentos (familiares próximos, cuidadores, procurador) e documentos confirmam esse quadro clínico.
Ao nível do diálogo este limita-se a questões banais do quotidiano, sem fluência, não espontâneo; muitas vezes ligado a ideias fixas e repetitivas (falar com amiga na Argentina, preocupação se tinha dinheiro para se sustentar); mas sem qualquer referência a conversas sobre temas mais 'sérios' como a administração dos seus bens, o seu conhecimento ou opinião sobre eventos da actualidade, os seus sentimentos e planos (designadamente a disposição dos seus bens).
Nenhuma referência igualmente a qualquer actividade intelectual, pois apenas foi referido que na televisão assistia à novela e que lia (mais propriamente, manuseava) o jornal Expresso (que usava repetidamente durante a semana) e a Hola.
Absoluta ausência de iniciativa e total dependência, sendo que toda a sua vida era programada por terceiros; eram os seus cuidadores, os seus familiares e os seus sobrinhos que tudo organizavam e decidiam: o que comer, as actividades (flores, gato, passeios), o cabeleiro, os almoços com as cunhadas à 5ª feira, os lanches na pastelaria do bairro.
Mesmo a viagem à Argentina (que na fundamentação da sentença recorrida é tida como significante demonstração da capacidade da testadora) se integra nesse quadro de falta de iniciativa e dependência. Com efeito ela apenas se nos afigura como uma (louvável) iniciativa de aceder a uma manifestada invocação da testadora do seu desejo de voltar às suas origens e nada mais; ela não foi uma iniciativa ou organização da testadora, que se limitou a ser levada à Argentina (ademais são diminutas as referências ao que aí ocorreu, uma vez que a única pessoa que a isso se referiu foi a testemunha DDD, mas não lhe foi permitido sequer particularizar o que referiu). Como muito impressivamente referiu a testemunha EEE, "proporcionaram-lhe" ir à Argentina.
Todas as referidas circunstâncias porque relevantes enquanto factos instrumentais devem ser adequadamente expressas no elenco factual da acção, justificando-se as alterações que abaixo se introduzirão.
Por outro lado, se é certo que qualquer pessoa tem a faculdade de mudar de ideias quanto às suas disposições de última vontade não é menos certo que tal mudança se fica normalmente a dever a uma alteração das circunstâncias ou a um objectivo específico e não a um mero capricho. No caso concreto resulta do depoimento do notário perante o qual foi elaborado o primeiro testamento que havia por parte da testadora um plano muito concreto e plenamente assumido de disposição de bens, sendo que se verifica uma absoluta ausência de qualquer referência aos eventuais motivos ou causas que terão levado à alteração do anterior testamento e justifiquem o abandono do inicialmente planeado.
Ponderando a globalidade dos factos circunstanciais apurados, entre os quais os acima expressamente referidos, e a absoluta falta de referência a uma causa da alteração de vontade testamentária, segundo os padrões da experiência comum de vida, afigura-se-nos como provável (e até num grau elevado, que se considera adequado ser exigível no caso) que a testadora não estivesse, no momento em que outorgou o testamento de 25MAI2011, em condições de manifestar uma vontade livre e esclarecida bem como de entender o significado do acto (e, concomitantemente, como improvável que no dia 25MA12011 tivesse ocorrido ocasional remição dos efeitos da doença de que padecia) concluindo terem-se os Autores desincumbido do ónus de demonstração de tais factos.” [...].
Do teor da fundamentação (incluindo o conteúdo das notas) não se divisa que o raciocínio desenvolvido pela Relação no sentido de dar como provado o facto 23 revele ilogiciadade, e muito menos ilogicidade manifesta, em termos de permitir a sua censura por este tribunal de revista."
[MTS]