Erro material; erro de julgamento;
impugnação de decisão; erro no meio processual
I - Os “erros materiais” previstos nos artigos 613.º e 614.º do CPC traduzem-se na divergência entre a vontade real e a vontade declarada do julgador, e só a verificação de tal vício permite o afastamento da regra da intangibilidade da sentença, não se confundindo com os “erros de julgamento”, que ocorrem nas situações em que o julgador disse o que queria dizer mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos provados.
II - Se no processo cabe recurso da decisão os fundamentos elencados nas als. a) e b) do nº 2 do artigo 616.º do CPCivil devem ser objecto da alegação desse recurso como o deve ser a reforma da decisão quanto a custas e multa (nº 3 do mesmo preceito).
III - Todavia, se o Autor pede a reforma da sentença isso não tolhe o seu direito de, posteriormente e perante o indeferimento do pedido de reforma, interpor recurso daquela decisão, já que isso não representa a sua aceitação por não consubstanciar facto que inequivocamente seja incompatível com a vontade de recorrer (cfr. nºs 2 e 3 do artigo 632.º do CPcivil).
IV - Na pendência do processo de inventário notarial, o interessado que pretenda a prestação de contas pelo cabeça de casal, anteriores ou contemporâneas da referida pendência, terá de o requerer como incidente no processo de inventário notarial, não pertencendo, pois, a competência material para a referida prestação de contas ao tribunal.
V - Porém, não estando pendente inventário em Cartório Notarial nem nunca tendo estado, o regime jurídico processual das contas anuais a prestar pelo cabeça de casal de facto da herança só pode ser o da acção especial de prestação de contas previsto nos artigos 941.º e ss. do CPCivil e, por assim ser, a competência material para apreciar tal pedido pertence ao tribunais judiciais e, concretamente, ao tribunal do domicílio do Réu (artigo 80.º, nº 1 do CPCivil).
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Nas suas contra-alegações veio a Ré suscitar a questão da inadmissibilidade do recurso por o Autor ter a ele renunciado ao ter solicitado a reforma da decisão, quando da mesma podia ter interposto o competente recurso.
"Nas suas contra-alegações veio a Ré suscitar a questão da inadmissibilidade do recurso por o Autor ter a ele renunciado ao ter solicitado a reforma da decisão, quando da mesma podia ter interposto o competente recurso.
Com este entendimento não concorda o apelante alegando não ter pedido a reforma da decisão, mas apenas a correcção do lapso manifesto de que a mesma enfermava.
Quid iuris?
Perante a decisão que considerou o tribunal incompetente em razão da matéria e absolveu a Ré da instância veio o Autor, a fols. 145/146 dos autos e com data de 14/02/2018, apresentar requerimento do seguinte teor:
“B..., autor devidamente identificado nos autos, tendo tomado conhecimento da sentença proferida, vem muito respeitosamente, nos termos do nº 1 do artº 614º do C.P.C. dizer o seguinte:
1º O autor foi surpreendido com esta decisão tendo o mesmo ficado perplexo.
De facto,
2º Não entende o autor o motivo de tal sentença, onde é referido que o mesmo alegou que corre termos um processo de inventário no notário.
3º Até porque não corresponde à verdade.
Senão vejamos,
4º Nos articulados que fazem parte dos autos, em parte alguma foi referido, quer pelo autor, quer pela ré que está a decorrer um processo de inventário, porque efectivamente NÃO EXISTE QUALQUER PROCESSO DE INVENTÁRIO A DECORRER.
5º NEM NUNCA EXISTIU.
6º Ora, perante isto ficou o autor atónito com a sentença proferida, uma vez que:
1º não existe processo de inventário a decorrer;
2º jamais foi alegado pelo autor ou pela ré que se encontrava a decorrer um processo de inventário e,
3º estamos, no caso vertente, perante uma ação especial de prestação de contas intentada contra a cabeça de casal nomeada na escritura de habilitação de herdeiros e não no âmbito de um processo de inventário pendente num cartório notarial, uma vez que NÃO EXISTE (NEM NUNCA EXISTIU) QUALQUER PROCESSO DE INVENTÁRIO.
7º Acresce que, como já referido nos seus articulados, o autor, com a presente ação, pretende que lhe sejam prestadas contas dos rendimentos da herança e não a partilha de qualquer bem.
TERMOS EM QUE
Requer-se muito respeitosamente a V. Exa que diligencie de imediato, dando sem efeito a presente decisão, prosseguindo os autos os seus termos até final.”
*
Perante o assim impetrado não há duvida de que do que se trata [...] é, não de uma simples rectificação de erros materiais a que alude o artigo 614.º do CPCivil, mas de uma verdadeira reforma da decisão a que se refere o artigo 616.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
A este propósito, ensina o Professor José Alberto dos Reis [Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, 1981, página 130], que o princípio da intangibilidade da decisão judicial, formulado no artigo 666.º “pressupõe que a sentença ou despacho reproduz fielmente a vontade do juiz; se houve erro material na expressão dessa vontade, se, por qualquer circunstância, a vontade declarada na sentença ou despacho não corresponder à vontade real do juiz, a regra da intangibilidade não funciona. Não faz sentido que subsista vontade diversa da que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho”.
Do raciocínio exposto, retira o insigne professor duas conclusões: 1.ª a rectificação não é viável quando houve erro de julgamento e não “erro material na declaração da vontade do juiz”; 2.ª a rectificação é viável “qualquer que seja a causa ou a forma do erro material”.
O autor citado estabelece a seguinte fronteira entre erro material e erro de julgamento: “o erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou do despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando em suma a vontade declarada diverge da vontade real (…). O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados (…)”. [...]
Ora, salvo o devido respeito, no caso em apreço, cotejado o requerimento do Autor, facilmente se verifica que o que o mesmo invoca é um erro de julgamento, já que entende que foi indevidamente dado por provado um determinado facto no qual se baseou a decisão, ou seja, não se divisa qualquer erro material, pois que se não verifica qualquer divergência entre a vontade declarada e a vontade real do julgador, este exarou aquilo que tinha em mente e não coisa diversa dessa.
*
A questão que agora se coloca é se o pedido de reforma da decisão, nos termos impetrados pelo Autor, representou a renúncia tácita ao recurso como defende a Ré recorrente.
Preceitua o artigo 632.º do CPCivil sob a epígrafe “Perda do direito de recorrer e renúncia ao recurso” que:
1 - É lícito às partes renunciar aos recursos; mas a renúncia antecipada só produz efeito se provier de ambas as partes.
2 - Não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida.
3 - A aceitação da decisão pode ser expressa ou tácita; a aceitação tácita é a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer.
4 - O disposto nos números anteriores não é aplicável ao Ministério Público.
5 - O recorrente pode, por simples requerimento, desistir do recurso interposto até à prolação da decisão. [...]
[...] cremos não se poder considerar, respeitando opinião divergente, que o pedido de reforma da decisão corresponda a acto que de forma inequívoca seja incompatível com a vontade de recorrer.
Não há dúvida que cabendo recurso da decisão, como no caso sucedia, era nessa sede que se impunha alegar o erro de julgamento, como parecia ser o caso segundo a alegação vertida no requerimento apresentado pelo Autor.
Efectivamente, como emerge do artigo 616.º do CPCivil a reforma da sentença só pode ser requerida perante o tribunal que proferiu a decisão se dela não couber recurso quando, por manifesto lapso do juiz: tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida. (cfr. nº 2 do citado normativo), ou seja, por interpretação "a contrario sensu”, cabendo recurso da decisão é aí que que a mesma deve ser impugnada com aqueles, ou outros, fundamentos, da mesma forma que também é na alegação de recurso que deve ser pedida a reforma da sentença quanto a custas e multa (cfr. nº 3 do mesmo inciso).
Mas o facto de caber recurso da decisão e mesmo assim a parte tenha solicitado ao julgador a sua reforma, isso não lhe tolhe o direito de vir, em acto posterior, interpor recurso da mesma.
É que perante a concreta actuação da parte (pedido de reforma) ela ainda conserva o direito de recorrer pois que esse acto não é incompatível com a vontade de recorrer, antes pelo contrário, ele revela que a parte não concorda com a decisão, tanto mais que sabe[6] que é quase certo ser indeferido o referido pedido de reforma, pois que ao caso cabia recurso.
Diferente poderia ser, por exemplo, se perante a decisão que julgou o tributal incompetente em razão da matéria, o Autor viesse aos autos solicitar, todos os documentos que acompanhavam a petição e respectiva procuração, dizendo que iria instaurar a acção no tribunal competente, ou mesmo se já a tivesse instaurado e, entretanto, nesse ínterim temporal, viesse a estes autos interpor recurso daquela decisão.
Nessas circunstâncias poder-se-ia afirmar que tais actos eram incompatíveis com a vontade de recorrer, o que não é o caso.
Aliás, na situação concreta para além do Autor ter intitulado o requerimento do pedido de rectificação (diga-se, reforma) de “URGENTE” o que demonstra que pretendia uma decisão rápida, naturalmente, por estar em curso o prazo de recurso e, portanto, ser seu propósito interpô-lo não sendo, claro está, deferido o pedido de reforma, o próprio tribunal no despacho que exarou datado de 16/02/2018 e em que indeferiu por impossibilidade legal o peticionado quanto a dar-se sem efeito a sentença proferida de forma imediata, na parte final do mesmo afirma: “Notifique a requerente pela forma mais expedita (artigo 172º, nº5, e nº6, do CPCivil), nomeadamente telefone/fax- atenta a urgência invocada e dado estarem em curso os prazos legais para eventual impugnação da sentença proferida, nomeadamente recurso ou outros incidentes, não sendo causa de suspensão do mesmo a dedução do requerimento que antecede (sem prejuízo da notificação nos termos habituais)”, ou seja, admitiu, que o solicitado pedido de reforma não era impeditivo da interposição do recurso.
3. [Comentário] A RP decidiu bem, embora a fundamentação mais óbvia tivesse sido a de que, como a decisão admitia recurso ordinário, houve, nos termos do disposto no art. 616.º, n.º 2 caput, um erro da parte no meio processual admissível. O que o tribunal de primeira instância devia ter feito era ter-se recusado a apreciar o requerimento da parte e ter remetido a parte para o recurso adequado. Nesta óptica, é claro que a conduta da parte não representa nenhuma renúncia ao recurso, dado que a parte quis efectivamente impugnar a decisão e apenas escolheu mal o meio adequado.
MTS