"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/05/2019

Jurisprudência 2018 (217)


Direito da concorrência;
pacto de jurisdição


1. O sumário de STJ 19/12/2018 (2312/16.2T8FNC.L1.S1) é o seguinte: 

I. Sendo aplicáveis à presente acção normas de Direito Comunitário/Direito da União Europeia sobre competência internacional, na sua interpretação, como na interpretação da generalidade das normas jurídicas de fonte supra-estadual, vale o princípio da interpretação autónoma relativamente aos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros, em razão da prossecução do objectivo de aplicação uniforme de tais normas.

II. Consequentemente, pode concluir-se que, tal como se encontra formulada, a primeira questão objecto do presente recurso – pela qual as recorrentes pretendem que normas de regulamentos comunitários/da União Europeia sejam interpretadas e aplicadas em função de conceitos normativos e de concepções doutrinais e/ou jurisprudenciais relativos(as) ao ordenamento jurídico português – configura uma metodologia inadequada e que, por isso, deve ser afastada na resolução da questão da competência internacional.

III. Confirmando-se a inserção da presente acção no âmbito temporal, material e espacial de aplicação do Regulamento nº 1215/2012, desta conclusão, conjugada com o enunciado princípio da interpretação autónoma, resulta a essencialidade da segunda questão do presente recurso: saber se a resolução da questão da competência internacional, feita à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, conduz ou não ao afastamento das cláusulas atributivas de jurisdição dos contratos dos autos (cfr. artigo 25º daquele Regulamento), sendo os tribunais portugueses considerados competentes para conhecer das alegadas infracções ao Direito da Concorrência (designadamente, ao abrigo do artigo 102° do TFUE), de acordo com a regra prevista no nº 2, do artigo 7º do mesmo Regulamento.

IV. Sendo que, se se concluir em sentido negativo, isto é, que a questão enuciada em III não se encontra resolvida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, se terá de proceder a reenvio prejudicial para o mesmo Tribunal.

V. Da jurisprudência do TJUE resulta: (i) que as infracções ao Direito da Concorrência originam responsabilidade extracontratual, sendo “matéria civil e comercial” para efeito de aplicação do regime do Regulamento nº 44/2001 (o que, perante o princípio da continuidade interpretativa, é válido para o regime do Regulamento nº 1215/2012); (ii) e que a responsabilidade extracontratual, designadamente por infracção ao Direito da Concorrência, nascida de condutas que, simultânea ou conexamente, constituam incumprimento de obrigações contratuais, deve ser apreciada pelo tribunal competente para conhecer deste incumprimento. Mas resulta também: (iii) que, em acções relativas a responsabilidade por certas infracções ao Direito da Concorrência, a prevalência de cláusulas contratuais atributivas de jurisdição sobre a regra de competência do nº 3, do artigo 5º do Regulamento nº 44/2001 (como do nº 2, do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2012), depende da previsibilidade, pelas partes, de que aquela responsabilidade extracontratual esteja abrangida por tais cláusulas.

VI. A conjugação entre os critérios enunciados em V, e a sua aplicação ao caso dos autos, suscitou dúvidas a este Supremo Tribunal, equivalentes às questões formuladas em processo de reenvio prejudicial relativas à interpretação de normas do Regulamento nº 44/2001, pendente à data da interposição do presente recurso, apresentadas ao Tribunal de Justiça pela Cour de Cassation francesa, dando origem ao processo C-595/17.

VII. Tais questões prejudiciais foram respondidas pelo Acórdão do TJUE de 24.10.2018 (processo nº C-595/17) da seguinte forma: “1) O artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que a aplicação, a uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º TFUE, de uma cláusula atributiva de jurisdição contida no contrato que vincula as partes não está excluída pelo simples facto de essa cláusula não se referir expressamente aos litígios relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência. 2) O artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º TFUE não depende da constatação prévia de uma infração ao direito da concorrência por uma autoridade nacional ou europeia.”

VIII. No caso
sub judice, ponderados todos os dados, e tendo presente o princípio da continuidade interpretativa entre o Regulamento nº 44/2001 e o Regulamento nº 1215/2012, entende este Supremo Tribunal que: (i) Em resultado da aplicação do Direito da União Europeia, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça, em especial no acórdão indicado em VII; (ii) considerando que as infracções jus-concorrenciais invocadas na presente acção, designadamente o abuso de posição dominante, correspondem a alegadas condutas da ré no âmbito das relações contratuais entre as partes, e com estas directamente conexionadas; (iii) de tal forma que se encontra satisfeita a exigência de previsibilidade, pelas partes, da possibilidade de tais infracções estarem abrangidas pelo âmbito das cláusulas atributivas de jurisdição; é de concluir que a questão da competência internacional deve ser resolvida no sentido de que as cláusulas atributivas de jurisdição dos contratos dos autos (pelas quais se atribui a competência aos tribunais irlandeses) prevalecem sobre a norma do nº 2, do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2012, de cuja aplicação resultaria serem competentes os tribunais portugueses.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"7. Passemos a apurar se a questão da competência internacional, resolvida à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, deve ou não conduzir ao afastamento das cláusulas atributivas de jurisdição dos contratos dos autos, devendo os tribunais portugueses ser considerados competentes para conhecer das alegadas infracções ao Direito da Concorrência (designadamente, ao abrigo do artigo 102° do TFUE), de acordo com o previsto no nº 2, do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2012, segundo o qual “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso).

7.1. Importa ter presente a seguinte jurisprudência do TJUE:

a) Como se viu supra, no ponto 6.3. do presente acórdão, pelo acórdão flyLAL - Lithuanian Airlines AS, de 23 de Outubro de 2014 (processo C-302/13, EU:C:2014:2319), entendeu-se:

- Que “uma ação, como a que está em causa no processo principal, que tem por objeto a reparação do prejuízo resultante de alegadas violações do direito da concorrência da União é abrangida pelo conceito de «matéria civil e comercial» para efeitos de aplicação do Regulamento nº 44/2001 (e portanto também do Regulamento nº 1215/2012);

- E que assim é porque “a reparação do prejuízo associado a uma alegada infração ao direito da concorrência. Assim, a ação é do domínio do direito da responsabilidade civil extracontratual [negrito nosso]

b) No Acórdão Marc Brogsitter, de 13 de Março de 2014 (processo C-548/12, EU:C:2014:148), em resposta à seguinte questão prejudicial:

“Deve o artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 ser interpretado no sentido de que um demandante que alega ter sido lesado por um ato [constitutivo de concorrência desleal] que, nos termos do direito alemão, deve ser considerado um ilícito praticado pelo seu cocontratante estabelecido noutro Estado‑Membro, pode também invocar contra o referido cocontratante direitos relacionados com um contrato, quando baseia a sua ação em atos ilícitos?”

O Tribunal de Justiça decidiu o seguinte:

As ações de responsabilidade civil, como as que estão em causa no processo principal, de natureza extracontratual nos termos do direito nacional, devem, no entanto, ser consideradas abrangidas pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, ponto 1, alínea a), do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, se o comportamento censurado puder ser considerado um incumprimento das obrigações contratuais, tal como podem ser determinadas tendo em conta o objeto do contrato.” [negrito nosso]

c) No Acórdão Cartel Damage Claims (CDC) Hydrogen Peroxide SA, de 21 de Maio de 2015 (processo C-352/13, EU:C:2015:335), em resposta à seguinte questão prejudicial:

“No caso de ações de indemnização por infração à proibição de cartéis enunciada no artigo 81.° CE/artigo 101.° TFUE e no artigo 53.° do Acordo EEE, o princípio, consagrado no direito da União, de execução eficiente dessa proibição permite ter em conta cláusulas de arbitragem e cláusulas atributivas de jurisdição contidas em contratos de fornecimento se isso implicar, face a todos os demandados e/ou em relação a todos ou a uma parte dos direitos invocados, a derrogação das regras de competência internacional previstas no artigo 5.°, n.° 3, e/ou no artigo 6.°, n.° 1, do Regulamento [n.° 44/2001?]”

O Tribunal de Justiça decidiu o seguinte:

“O artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que permite, em caso de pedido de indemnização em razão de uma infração ao artigo 101.° TFUE e ao artigo 53.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992, ter em conta cláusulas atributivas de jurisdição contidas em contratos de fornecimento, mesmo que isso implique a derrogação das regras de competência internacional previstas nos artigos 5.°, n.° 3, e/ou 6.°, n.° 1, do referido regulamento, desde que essas cláusulas se reportem aos litígios relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência.” [negrito nosso]

7.2. Perante as decisões dos dois primeiros acórdãos do TJUE supra indicados (acórdão flyLAL‑Lithuanian Airlines AS e acórdão Marc Brogsitter), afigura-se ser de concluir que:

1º) As infracções ao Direito da Concorrência originam responsabilidade extracontratual, sendo “matéria civil e comercial” para efeito de aplicação do regime do Regulamento nº 44/2001 (o que, perante o princípio da continuidade interpretativa, é válido também para o regime do Regulamento nº 1215/2012);

2º) A responsabilidade extracontratual, designadamente por infracção ao Direito da Concorrência, nascida de condutas que, simultânea ou conexamente, constituam incumprimento de obrigações contratuais, deve ser apreciada pelo tribunal competente para conhecer deste incumprimento.

Da aplicação destas conclusões ao recurso interposto neste Supremo Tribunal, resultaria que, estando em causa infracções ao Direito da Concorrência que correspondem a alegadas condutas da R. no âmbito das relações contratuais existentes entre as partes, e com elas directamente conexionadas, os tribunais competentes para dirimir o litígio seriam os tribunais competentes para conhecer dos litígios relativos a essas relações contratuais. Incluindo, em princípio, os tribunais convencionalmente escolhidos pelas partes. 
Contudo, da decisão do terceiro acórdão do TJUE supra indicado (acórdão Cartel Damage Claims (CDC)) pode extrair-se uma outra conclusão relevante, e não inteiramente coincidente com o anteriormente afirmado, que é a seguinte:

Em acções relativas a responsabilidade por infracções ao Direito da Concorrência, a prevalência de cláusulas contratuais atributivas de jurisdição sobre a regra de competência do nº 3, do artigo 5º do Regulamento nº 44/2001 (como do nº 2, do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2012) depende da previsibilidade, pelas partes, de que aquela responsabilidade de natureza extracontratual esteja abrangida por tais cláusulas.  

Esta conclusão, se aplicada ao caso pendente neste Supremo Tribunal, uma vez que as cláusulas dos contratos dos autos, que atribuem a competência aos tribunais irlandeses, não se referem expressamente a acções por infracções jus-concorrenciais, poderia levar a considerar que a regra de competência do nº 2, do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2012 (segundo a qual “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”) prevaleceria sobre aquelas cláusulas.

Mas esta solução não se apresenta isenta de dúvidas, atendendo, nomeadamente, às diferenças existentes entre a presente lide e o processo judicial que deu origem ao acórdão do TJUE Cartel Damage Claims (CDC), entre as quais se destacam as seguintes: a diferente natureza das (aqui alegadas) infracções jus-concorrenciais em causa; a (aqui) não existência de prévia declaração de infracção jus-concorrencial por autoridade competente para o efeito. 

7.3. Perante as dúvidas subsistentes, este Supremo Tribunal admitiu a hipótese de estar obrigado a proceder a reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça (neste sentido, cfr. Moura Ramos, Aplicabilidade de cláusulas atributivas de jurisdição em acções de responsabilidade emergente de práticas consideradas de abuso de posição dominante, anotação ao acórdão do STJ de 16 de Fevereiro de 2016, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 147º, págs. 265 e segs. especialmente, pág. 278); só que, entretanto, apurou-se estar já pendente, à data da interposição do presente recurso, um reenvio prejudicial apresentado ao Tribunal de Justiça pela Cour de Cassationem 11 de Outubro de 2017 (dando origem ao processo C-595/17), no âmbito de acção interposta nos tribunais franceses, equivalente à presente acção interposta nos tribunais portugueses, e na qual a aqui R. foi demandada (sendo que, na acção pendente na Cour de Cassation, se provou que, em 10 de Outubro de 2002, a CC International, sociedade de direito irlandês, celebrou com a sociedade eBizcuss um contrato em que lhe reconhecia a qualidade de revendedor autorizado dos produtos da marca CC; e que esse contrato, pelo qual a eBizcuss se comprometeu a distribuir, em quase exclusividade, os produtos do seu co-contratante, continha uma cláusula atributiva de jurisdição a favor dos tribunais irlandeses; vindo a sociedade eBizcuss, em Abril de 2012, a intentar contra a CC International, a CC Inc., sociedade de direito americano, e a CC retail France, sociedade de direito francês, uma acção de indemnização por actos de concorrência desleal e abuso de posição dominante, nos termos do artigo 1382° do Código Civil francês, do artigo L 420º, 2 do Código Comercial francês e do artigo 102° do Tratado de Funcionamento da União Europeia. Neste reenvio prejudicial, cuja existência era naturalmente conhecida pela aqui R., foram formuladas as seguintes questões prejudiciais:

“1) Deve o artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 ser interpretado no sentido de que permite ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º [TFUE] aplicar uma cláusula atributiva de jurisdição prevista no contrato que vincula as partes?

2) Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, deve o artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 ser interpretado no sentido de que permite ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º [TFUE] aplicar uma cláusula atributiva de jurisdição constante do contrato que vincula as partes, incluindo no caso de a referida cláusula não se referir expressamente aos diferendos relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência?

3) Deve o artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 ser interpretado no sentido de que permite ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.ª [TFUE] afastar uma cláusula atributiva de jurisdição prevista no contrato que vincula as partes no caso de uma autoridade nacional ou europeia não ter constatado uma violação ao direito da concorrência?”


7.4. Em resposta ao reenvio prejudicial da Cour de Cassation, foi proferido, em 24 de Outubro de 2018, acórdão do TJUE, (processo C-595/17, EU:C:2018:854), que fundamentou a resolução das questões prejudicais enunciadas, nos seguintes termos:

Quanto à primeira e segunda questões

20. Com a primeira e segunda questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que está excluída a aplicação, a uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º TFUE, de uma cláusula atributiva de jurisdição contida no contrato que vincula as partes, que não se refere expressamente aos litígios relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência.

21. A este respeito, cumpre recordar que, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a interpretação de uma cláusula atributiva de jurisdição, a fim de determinar os diferendos abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, é da competência do órgão jurisdicional nacional onde foi invocada (Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C‑352/13, EU:C:2015:335, n.º 67 e jurisprudência referida).

22. No entanto, uma cláusula atributiva de jurisdição só pode dizer respeito a litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, o que limita o alcance de uma cláusula atributiva de jurisdição apenas aos litígios que têm a sua origem na relação de direito existente na altura em que essa cláusula foi acordada. Esta exigência tem por objetivo evitar que uma parte seja surpreendida pela atribuição, a um foro determinado, dos litígios que surjam nas relações havidas com a outra parte cocontratante e que encontrariam a sua origem noutras relações para além das surgidas na altura em que a atribuição de jurisdição foi acordada (Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C‑352/13, EU:C:2015:335, n.º 68 e jurisprudência referida).

23. À luz deste objetivo, o órgão jurisdicional de reenvio considerou que uma cláusula que se refere, de modo abstrato, aos litígios surgidos nas relações contratuais não abrange um litígio relativo à responsabilidade extracontratual em que um cocontratante alegadamente incorreu em resultado do seu comportamento conforme com um cartel ilícito (Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C‑352/13, EU:C:2015:335, n.º 69).

24. Dado que tal litígio não é razoavelmente previsível para a empresa vítima no momento em que deu o seu consentimento à referida cláusula, por, nessa época, desconhecer o cartel ilícito que envolve o seu cocontratante, não se pode considerar que o mesmo tem origem nas relações contratuais (Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C‑352/13, EU:C:2015:335, n.º 70).

25. Tendo em conta estas considerações, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 23.º, n.º 1, do Regulamento n.º 44/2001 permite, em caso de pedido de indemnização em razão de uma infração ao artigo 101.º TFUE e ao artigo 53.º do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3), ter em conta cláusulas atributivas de jurisdição contidas em contratos de fornecimento, desde que essas cláusulas se reportem aos litígios relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência(Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C‑352/13, EU:C:2015:335, n.º 72).

26. À luz desta jurisprudência, há que examinar se esta interpretação do artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 e os seus fundamentos são igualmente válidos em relação a uma cláusula atributiva de jurisdição invocada no âmbito de um litígio relativo à responsabilidade extracontratual em que um cocontratante alegadamente incorreu em resultado de uma violação do artigo 102.º TFUE. 

27. É esse o caso quando o comportamento anticoncorrencial alegado for alheio à relação contratual no âmbito da qual a cláusula atributiva de jurisdição foi acordada.

28. Ora, como o comportamento anticoncorrencial referido no artigo 101.º TFUE, a saber, um cartel ilícito, não está, em princípio, diretamente ligado com a relação contratual entre um membro desse cartel e um terceiro, sobre a qual o cartel produz os seus efeitos, o comportamento anticoncorrencial referido no artigo 102.º TFUE, a saber, o abuso de uma posição dominante, pode concretizar‑se nas relações contratuais que uma empresa em situação de posição dominante estabelece e através das condições contratuais. 

29. Assim, há que salientar que, no âmbito de uma ação ao abrigo do artigo 102.º TFUE, não se pode considerar que a tomada em consideração de um pacto atributivo de jurisdição que faz referência a um contrato e à relação correspondente ou às relações dele decorrentes entre as partes surpreenda uma das partes na aceção da jurisprudência referida no n.º 22 do presente acórdão.

30. Em face do exposto, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação, a uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º TFUE, de uma cláusula atributiva de jurisdição contida no contrato que vincula as partes não está excluída pelo simples facto de essa cláusula não se referir expressamente aos litígios relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência. 

 Quanto à terceira questão

31. Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º TFUE depende da constatação prévia de uma infração ao direito da concorrência por uma autoridade nacional ou europeia.

32. Esta questão deve ser respondida negativamente.

33. Com efeito, tal como observou o advogado‑geral no n.º 83 das suas conclusões, a existência ou não de uma declaração prévia por uma autoridade da concorrência de uma infração às regras da concorrência é uma consideração alheia às que devem prevalecer para concluir pela aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição a uma ação destinada à reparação de danos alegadamente sofridos em consequência de uma violação das regras da concorrência.

34. No contexto do artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001, uma distinção em função da existência ou não de uma declaração prévia, por uma autoridade da concorrência, de uma infração às regras da concorrência colidiria igualmente com o objetivo de previsibilidade que inspira esta disposição.

35. Por outro lado, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdão de 13 de julho de 2006, Manfredi e o., C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.º 60 e jurisprudência referida), e conforme mencionam os considerandos 3, 12 e 13 da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infrações às disposições do direito da concorrência dos Estados‑Membros e da União Europeia (JO 2014, L 349, p. 1), os artigos 101.º e 102.º TFUE produzem efeitos diretos nas relações entre particulares e criam, para as pessoas em causa, direitos e obrigações que os tribunais nacionais devem tutelar. Por conseguinte, o direito de as pessoas que se considerem lesadas por uma infração às regras do direito da concorrência pedirem a reparação do prejuízo sofrido é independente da constatação prévia dessa infração por uma autoridade da concorrência.

36. Em face do exposto, há que responder à terceira questão que o artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º TFUE não depende da constatação prévia de uma infração ao direito da concorrência por uma autoridade nacional ou europeia.” [negritos nossos]
7.5. A final, o Tribunal de Justiça proferiu a seguinte decisão:

“Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1) O artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que a aplicação, a uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º TFUE, de uma cláusula atributiva de jurisdição contida no contrato que vincula as partes não está excluída pelo simples facto de essa cláusula não se referir expressamente aos litígios relativos à responsabilidade decorrente de uma infração ao direito da concorrência.

2) O artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição no âmbito de uma ação de indemnização intentada por um distribuidor contra o seu fornecedor ao abrigo do artigo 102.º TFUE não depende da constatação prévia de uma infração ao direito da concorrência por uma autoridade nacional ou europeia.” [negritos nossos].

8. Após notificação das partes quanto ao facto de ter sido proferido o referido acórdão do Tribunal de Justiça, cumpre decidir a questão objecto do presente recurso.

Ponderados todos os dados supra enunciados, e tendo presente o princípio da continuidade interpretativa entre o regime do Regulamento nº 44/2001 e o regime do Regulamento nº 1215/2012 (cfr. Considerando 34 deste último), entende este Supremo Tribunal que:

(i) Em resultado da aplicação do Direito da União Europeia, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça, em especial no indicado acórdão de 24 de Outubro de 2018, proferido no processo C-595/17;

(ii) Considerando que as infracções jus-concorrenciais invocadas na presente acção, designadamente o abuso de posição dominante, correspondem a alegadas condutas da R. no âmbito das relações contratuais entre as partes, e com estas directamente conexionadas;

(iii) De tal forma que se encontra satisfeita a exigência de previsibilidade, pelas partes, da possibilidade de tais infracções estarem abrangidas pelo âmbito das cláusulas atributivas de jurisdição (neste sentido, cfr. Moura Ramos, Aplicabilidade de cláusulas atributivas de jurisdição, cit., págs. 274-277, afirmando não existir ausência de previsibilidade “em casos de relações verticais de distribuição em que ao fornecedor seja imputado um abuso de posição dominante, traduzido em condutas que não podem deixar de ter uma marcada conexão com a relação contratual que ligava as partes”);

É de concluir que a questão da competência internacional deve ser resolvida no sentido de que as cláusulas atributivas de jurisdição dos contratos dos autos (pelas quais se atribui a competência aos tribunais irlandeses) prevalecem sobre a norma do nº 2, do artigo 7º do Regulamento nº 1215/2012, de cuja aplicação resultaria serem competentes os tribunais portugueses."

[MTS]