"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/05/2019

Jurisprudência 2019 (22)

 
Processo penal; indemnização civil;
competência material
 

1. O sumário de RL 7/2/2019 (89/16.0NLLSB-AG.L1-9) é o seguinte:

I. Estando em causa uma situação de responsabilidade civil extracontratual baseada em factos constitutivos de ilícito de natureza criminal, os quais constituam a causa de pedir da acção cível enxertada no processo penal, por virtude, por exemplo, de o arguido ter praticado os factos no exercício de funções em Organismo Público, pessoa colectiva de direito público, não impede o seu conhecimento pelo Tribunal comum ou pelo Tribunal Criminal onde esteja a ser tramitada a acção penal.

II. O critério identificador da ordem administrativa não se pode reconduzir a uma perspectiva de ordem subjectiva, atendendo apenas à qualidade dos sujeitos, ou, como no caso, de um dos sujeitos (o Estado).

III. Não obstante se nos apresentar como lesante uma figura que nas suas relações jurídicas se regula pelo direito administrativo, tal situação não basta por si, para se entender da incompetência do Tribunal comum, criminal, para a apreciação do pedido indemnizatório fundado na responsabilidade civil emergente da conduta crime. Para além da insuficiência deste critério, há que cumprir o princípio da adesão obrigatória da dedução do pedido para ressarcimento dos danos resultantes da conduta criminosa, no âmbito processual do procedimento criminal.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No caso em apreço, o objecto de todos os recursos coloca apenas a questão da competência do Tribunal Criminal (Militar) para julgamento dos pedidos cíveis deduzidos pelos assistentes contra os arguidos e contra o Estado Português. Assim, a nossa análise versará a apreciação conjunta. [...]

***

Com relevância para o conhecimento da decisão cumpre anotar:

Os arguidos, demandados nos pedidos cíveis, exercem funções nas Forças Armadas Portuguesas e estão acusados da prática de vários crimes previstos e punidos pelo Código de Justiça Militar, como crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no artigo 93 do C.J.M.- Lei 100/2003 de 15.11 (alt. Lei 2/2004 de 3.1).

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Atentar nas seguintes disposições legais do C.J.M.:

Artigo 2.º
Aplicação da lei penal comum e aplicação subsidiária

1 - As disposições do Código Penal são aplicáveis aos crimes de natureza estritamente militar em tudo o que não for contrariado pela presente lei.

2 - As disposições desta lei são aplicáveis aos crimes de natureza estritamente militar puníveis por legislação de carácter especial, salvo disposição em contrário.

Artigo 107.º
Aplicação do Código de Processo Penal

As disposições do Código de Processo Penal são aplicáveis, salvo disposição legal em contrário, aos processos de natureza penal militar regulados neste Código e em legislação militar avulsa.

Artigo 108.º
Disposições aplicáveis

A competência material, funcional e territorial dos tribunais em matéria penal militar é regulada pelas disposições deste Código, e subsidiariamente pelas do Código de Processo Penal e das leis de organização judiciária.

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[...] No nosso modesto entendimento, cremos que não existe uma diferença ontológica entre o ilícito penal e o ilícito civil, o que, porém já não se verifica na parte sancionatória. O ilícito civil tem como consequências jurídicas a execução coerciva, a obrigação de indemnização, a restituição ou ainda a nulidade do acto; já o ilícito de natureza penal tem como consequência a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança ao autor do facto e que, em regra o afecta pessoalmente. Dito de uma forma mais simplista, a sanção civil implica sobretudo a reparação à vítima do dano/prejuízo causado pelo acto ilícito, a penal visa um “castigo” com vista à prevenção da prática de futuros crimes e ainda à recuperação do agente criminoso, para que não volte a delinquir.

Como refere Germano Marques da Silva [O direito penal e outros ramos do direito- Direito Penal, I, 139],“a sanção civil é essencialmente um remédio, ainda que possa secundariamente exercer uma função de repressão e de prevenção, enquanto a sanção criminal é sobretudo um castigo, pois já nada remedeia, e tem por função principal a prevenção de futura criminalidade.”

Concluindo-se assim, podemos dizer que, ambos os ilícitos verificados, ainda que, autónomos entre si, podem os dois causar danos patrimoniais e não patrimoniais no lesado e no ofendido. Estes danos merecem a protecção legal e são assim passíveis de indemnização. São de vária natureza: patrimonial, não patrimonial, futuros, lucros cessantes etc.

No âmbito da reparação por ilícito penal (e é disso que se trata no caso) é hoje considerado pela doutrina vigente e pela jurisprudência dominante, que não pode ser mais equacionada como uma sansão reparatória penal, assumindo antes foro de uma verdadeira indemnização por danos causados pela conduta criminosa ao lesado.

É que a indemnização civil fundada na prática de um crime é um instituto encarado pela nossa doutrina, pela Lei e pela jurisprudência, como de natureza exclusivamente civilística. Simplificando, diremos que a prática de um crime (quem quer que seja o seu agente) gera junto dos Tribunais a formulação de dois pedidos diferentes: um de natureza criminal, justificando a censura penal do autor/agente criminoso e outro de natureza cível para que os lesados com a conduta criminosa sejam indemnizados pelos danos materiais e não patrimoniais sofridos. [...]

No que em particular diz respeito ao nosso ordenamento jurídico, com assento no princípio da adesão obrigatória, poder-se-ão apontar como vantagens: a celeridade processual, decorrente da própria tramitação; a economia de meios de prova; a maior amplitude do sistema investigatório, a economia de custos de natureza pecuniária, a eliminação do risco da oposição de julgados; por outro lado, o próprio julgador conseguirá apreender a globalidade das questões com maior compreensão da realidade em causa. Como desvantagens são normalmente apresentadas através das críticas dirigidas ao facto de estarem em causa diferentes responsabilidades, a civil e a penal, e de estas terem diferentes critérios de apreciação, diferentes objectivos e, até diferentes sujeitos processuais, bem como o risco de se verificar alguma “pressão” da parte sancionatória criminal sobre a decisão da reparação civil, muito embora, também no sistema independente pode ocorrer que a absolvição verificada no processo crime influencie de forma negativa o sucesso da posterior acção da jurisdição civil, posto que os factos, a realidade da vida é a mesma e foi já objecto de apreciação anterior.

Na realidade e, no nosso País, optando o legislador, pela adesão obrigatória da acção cível no processo penal, teve em consideração razões de ordem económica (processual), de uniformização de julgados, de celeridade na reparação dos danos. [...]

Perseguindo estes princípios permite-se (artº. 73 do C.P.P.) aos responsáveis meramente civis que intervenham no processo crime através do seu chamamento ou da intervenção voluntária, mantendo no processo uma posição idêntica à do arguido (artº. 74 nº. 4 do C.P.P.).Estão nesta situação, os titulares dos órgãos, funcionários, agentes do Estado e outras entidades públicas que devam responder pelos danos causados pela prática de actos ilícitos no exercício das suas funções e por causa delas, o que resulta actualmente do disposto na Lei 67/2007 de 31 de Dezembro, alterada pela Lei 31/2008 de 17 de Julho.

Poderá então, aqui questionar-se sobre a competência do Tribunal especializado no processo criminal para apreciação do pedido cível, nomeadamente quando figurem como responsáveis entidades públicas administrativas ou o próprio Estado. [...]

Conforme resulta do que se acha disposto nos artigos 211 da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente no nº. 1 daquela norma, bem como do disposto no artigo 26 nº. 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - Lei nº. 52/2008 de 28 de Agosto - (e, actualmente no artigo 40-1 da Lei 62/2013 de 26 de Agosto) e do artigo 66 do Código de Processo Civil, o critério utilizado para aferir a competência material de um tribunal é um critério que podemos chamar de residual, ou seja, toda a causa que não for por Lei atribuída a determinada jurisdição especial é da competência do Tribunal Comum. Porém, o nº. 3 do artigo 212 da Constituição reconhece competência aos tribunais administrativos e fiscais para as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais; o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais- Lei nº. 13/2002 de 19 de Fevereiro- (14ª versão - a mais recente -DL n.º 214-G/2015, de 02/10), no seu artigo 4º, alíneas g) e h) define a esta jurisdição administrativa e fiscal a apreciação da responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público e dos titulares de órgãos, funcionários e agentes e demais servidores públicos. [...]

Como fixar esta competência no caso que nos ocupa, resulta a nosso ver, e, perante o princípio da adesão obrigatória, fundamentalmente, da forma como o pedido civil for formulado e não apenas do conhecimento (pela via da intervenção prevista no artigo 73 do C.P.P.) da existência de entidades públicas responsáveis. [...] Ou seja, em que medida as questões suscitadas pela relação jurídica emergente da prática de um acto ilícito, criminal, gerador de responsabilidade civil se pode integrar na noção de litígio emergente de uma relação jurídica regida pelo direito administrativo. Respondemos, da nossa perspectiva, que o critério identificador da ordem administrativa não se pode reconduzir a uma perspectiva de ordem subjectiva, atendendo apenas à qualidade dos sujeitos, ou, como no caso, de um dos sujeitos (o Estado),[...] como parece ter ocorrido no despacho sob recurso. É que existe uma uniformidade de conduta criminosa, enquanto acto naturalístico e mesmo jurídico, mas com protecção do lesado através de mais do que um regime para reparação do seu dano, mas cada um com a sua teleologia própria. Assim, na unidade da conduta criminosa, e, sobretudo por força do princípio da adesão obrigatória, corresponderá a unidade do pedido de indemnização.

Por seu turno o artigo 22 da Constituição da R.P. (Responsabilidade das entidades públicas) regula que: O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

A nossa jurisprudência do mais alto tribunal, tem vindo a entender que, estando em causa uma situação de responsabilidade civil extracontratual baseada em factos constitutivos de ilícito de natureza criminal (cfr. disposições aplicáveis e acima citadas), os quais constituam a causa de pedir da acção cível enxertada no processo penal, por virtude, por exemplo, de o arguido ter praticado os factos no exercício de funções em Organismo Público, pessoa colectiva de direito público, não impede o seu conhecimento pelo Tribunal comum ou pelo Tribunal Criminal onde esteja a ser tramitada a acção penal.

Como sustenta Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal, 1996, volume I, p.111], “Sucede é que o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso da absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo.”

Na verdade, uma questão fundamental será a de saber se deveremos olhar apenas ao bem fundado pedido cível, independentemente da natureza da responsabilidade que lhe subjaz, abarcando não apenas os casos de responsabilidade aquiliana e de responsabilidade objectiva, mas também outros casos, como o da responsabilidade contratual, em que o pedido cível se pode basear na violação de uma relação creditícia, ou se pelo contrário, o bem fundado do pedido cível se deve confinar à responsabilidade extracontratual ou aquiliana, ou objectiva, com exclusão da responsabilidade contratual.

Chamado a resolver o conflito suscitado por dois acórdãos da Relação de Coimbra, que preconizavam soluções opostas para a questão, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão uniformizador de jurisprudência em 17-06-1999.

Aí fixou a seguinte jurisprudência: “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”. [Tal acórdão foi publicado no D.R., I-A, n.º 179, de 03-08-99, sob a designação de “Assento n.º 7/99” e no BMJ 488, 49]

Em suma.

São os mesmos, os factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, havendo apenas, que acrescentar, que em relação a esta última haverão de verificar-se ainda os factos que indicam o dano e o nexo causal entre o dano e o facto ilícito. 

E, mais uma vez em prol de uma economia de meios e custos e de uma maior celeridade e oportunidade de justiça, quando em caso de absolvição ou extinção do crime o processo prossegue para apreciação e decisão do pedido cível ali deduzido em nome do princípio da adesão obrigatória.

Ora, no caso e, não obstante se nos apresentar como lesante uma figura que nas suas relações jurídicas se regula pelo direito administrativo, tal situação não basta por si, para se entender da incompetência do Tribunal comum, criminal, para a apreciação do pedido indemnizatório fundado na responsabilidade civil emergente da conduta crime. Para além da insuficiência deste critério, há que cumprir o princípio da adesão obrigatória da dedução do pedido para ressarcimento dos danos resultantes da conduta criminosa, no âmbito processual do procedimento criminal, isto é, há que considerar correcta a dedução dos pedidos de indemnização formulados, com a devida competência material do Tribunal de julgamento da conduta típica crime."


[MTS]