"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/05/2019

Jurisprudência 2019 (15)


Competência internacional;
direito interno; critério da necessidade


1. O sumário de STJ 15/1/2019 (27881/15.0T8LSB-A.L1.A.S1) é o seguinte

I. Tendo a Autora/Recorrida, na sequência do divórcio decretado nos Tribunais Espanhóis, intentado, em Portugal, na comarca de Lisboa, contra o seu ex-marido, uma acção de suprimento de deliberação de comproprietários, visando os termos em que será utlizado, por cada um dos ex-cônjuges a utilização/fruição de um imóvel, tal acção não incide sobre matéria de direitos reais sobre imóveis e, por isso, não se inscreve no âmbito de aplicação do n.º1 do artigo 24.º do Regulamento (EU) n.º1215/2012, de 12 de Dezembro, por não se relacionar com um direito real, mas com um direito subjectivo.

II. A necessidade de efectiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no art. 62º al. c) do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício: o princípio da necessidade vale como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excepcional da competência internacional dos Tribunais portugueses.

III. O Regulamento (EU) n.°1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, define como critério geral de competência o domicílio do réu, no caso, trata-se de uma relação jurídica plurilocalizada, sendo partes pessoas singulares: a Autora, residente em Espanha, e o Réu, residente em Portugal.

IV. No caso em apreço, não se tratando de partilhar um bem que integra o património conjugal, mas antes de um processo de suprimento com o objecto antes definido, não se vislumbra que a competência material, na ordem jurídica portuguesa, caiba às secções de Família e Menores do Tribunal da situação do imóvel.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O casamento da Autora/recorrida como Réu/recorrente foi dissolvido por sentença de 26.10.2012 proferida por sentença do Tribunal de 1º Instância, nº79 de Madrid.

Na sequência do divórcio, a Autora requereu, em 24.3.2014, processo de formação de inventário contra o ora Réu, que correu termos por aquele tribunal que proferiu sentença relativamente ao inventário da comunhão conjugal; por não terem sido atempadamente apresentadas, não foram declaradas medidas de administração dos bens que compõem a comunhão conjugal. Além do mais o inventário integra um “apartamento sito na Rua …., n.°… Piso, em Lisboa”.

A recorrida moveu ao Réu acção – nos termos do art. 1002º do Código de Processo Civil – processo especial de suprimento de deliberação de comproprietários (art.°1002º do Código de Processo Civil), - pedindo ao Tribunal a utilização alternada de tal fracção, cabendo um mês a cada um, ou que seja estabelecida outra rotação considerada mais adequada pelo Tribunal, devendo o Réu facultar o acesso da Autora à fracção.

Apreciando o recurso de apelação interposto pelo Réu, o Acórdão recorrido confirmou a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação, considerando que, estando em causa matéria relativa à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, coexistem, actualmente, na nossa ordem jurídica, dois regimes gerais de aferição da competência internacional: (i) o regime emanado do Regulamento (EU) n.°1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e (ii) o regime interno previsto nos artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil, mas que a prevalência virtual do regime legal comunitário não é no caso de afirmar porquanto o litígio, versando sobre o “decretamento de medidas de administração de um imóvel comum de casal dissolvido, no âmbito de processo especial de suprimento de deliberação de comproprietários (art.° 1002º do Código de Processo Civil), na pendência de acção de liquidação da comunhão conjugal subsequente a acção de divórcio, não incide “em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis” e por isso não se inscreve no âmbito de aplicação do nº1 do artigo 24.º, do Regulamento (EU) n.º1215/2012, de 12 de Dezembro.”

Considerando que a controvérsia se relaciona com o “regime de bens do casamento” e a administração ou fruição de um bem do dissolvido casal, estando abrangida pela excepção prevista no art. 1º, nº2, al. a) daquele Regulamento, determina a aplicação das normas de direito interno português - arts. 62º e 63º do Código de Processo Civil – pelo que concluiu pela competência dos Tribunais Portugueses, confirmando, ainda que com diversa fundamentação, a decisão apelada – despacho de 14.12.2017 – que julgou improcedente a excepção de incompetência absoluta.

Apreciando a 1ªquestão. [...]

Trata-se de uma relação jurídica plurilocalizada, sendo partes pessoas singulares: a Autora, residente em Espanha, e o Réu, residente em Lisboa. A Autora, na sequência do divórcio decretado pelo Tribunal de Madrid (não tendo sido partilhado o bem imóvel em causa referido na acção), pretende a regulação da fruição/administração desse bem do casal, uma fracção autónoma situada em Lisboa, que, decorre do processo, está na posse do Réu.

Não existe controvérsia que a questão não se relaciona com um direito real de propriedade ou de habitação – não se pondo a questão que, de outro modo teria fácil solução, já que seria competente o forum rei sitae, quer à luz dos Regulamentos comunitários, quer no âmbito da lei processual interna sendo, consequentemente, competente o Tribunal da Comarca de Lisboa – art. 70º, nº1, do Código de Processo Civil.

Não existe verdadeiramente litígio quanto ao entendimento que por se tratar de questão relativa a matéria de “regime de bens do casamento”, ainda que esteja em causa a fruição de um bem imóvel, por força da excepção prevista no art. 1º, nº2, a) do Regulamento, ele não é aplicável.

Estão excluídas da aplicação do Regulamento nº1215/2012, ou Regulamento Bruxelas I bis), que passou a ser aplicável a partir do dia 10.1.2015 (art. 81º) - “As matérias que, apesar de revestirem natureza civil ou comercial, digam respeito ao estado e à capacidade jurídica das pessoas singulares, aos regimes de bens do casamento ou às relações que produzem efeitos comparáveis ao casamento, às falências, concordatas e outros processos análogos, à segurança social, à arbitragem, às obrigações de alimentos decorrentes de uma relação familiar, parentesco, casamento ou afinidade, bem como aos testamentos e sucessões” – Marco Carvalho Gonçalves, in “Scientia Ivridica”, Tomo LXIV, nº339, Setembro/Dezembro 2015 – “Competência Judiciária da União Europeia”, págs. 421/422. [...]

A inaplicabilidade do Regulamento à questão em apreciação porque se relaciona, não com qualquer direito real, mormente, de propriedade, mas com um direito subjectivo emergente do regime matrimonial dos cônjuges que, na redacção da a) do nº1 do art. 3º do Regulamento compreende “o conjunto de normas relativas às relações patrimoniais dos cônjuges e às suas relações com terceiros, em resultado do casamento ou da sua dissolução” e, como refere o Acórdão recorrido:

“Mais recentemente, o Tribunal de Justiça das Comunidades (Sexta Secção) foi chamado a pronunciar-se (proc. n.º67-C/2017 [C-67/17] [...] sobre a interpretação do artigo 1.°, n.°2, alínea a), do Regulamento (EU) n.°1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1) e por Despacho datado de 14 de Junho de 2017 declarou:

“O artigo 1.° n°2, alínea a) do Regulamento (EU) nº1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que um litígio como o do processo principal, relativo à partilha, após pronúncia de um divórcio, de um bem móvel adquirido na constância do matrimónio por cônjuges nacionais de um Estado-Membro mas residentes noutro Estado – Membro não está abrangido pelo âmbito de aplicação deste regulamento, mas pelo domínio dos regimes matrimoniais e, portanto, pelas exclusões previstas no referido artigo 1 °, n.º2, alínea a)”. [...]

Na ordem jurídica portuguesa vigoram dois regimes gerais de competência legal exclusiva: o regime comunitário e o regime interno. O regime interno só é aplicável quando a acção não for abrangida a pelo âmbito de aplicação do regime comunitário, que é de fonte hierarquicamente superior.”

Aplicam-se, pois, as normas de direito português.

O art 59º do Código de Processo Civil estatui: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”

Segundo o art.º 62.º do Código de Processo Civil, “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.”

Este critério radica no princípio da coincidência, segundo o qual a competência internacional dos tribunais portugueses resulta da circunstância de a acção dever ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência interna territorial da lei portuguesa, que constam dos arts. 70.º a 84º do Código de Processo Civil.

Não cabendo aplicação dos citados artigos, como claramente não cabe: estamos perante uma acção especial de suprimento regulada no art. 1002º do Código de Processo Civil, é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu – nos termos da norma supletiva do art. 80º, nº1, do Código de Processo Civil.

Contra este entendimento, que foi o do Acórdão recorrido e é o que sufragamos, contrapõe o Recorrente que a pretensão exercida na referida acção se integra no “conceito-quadro em matéria de divórcio e separação de pessoas e bens previsto no art. 72º do Código de Processo Civil” nele cabendo questões incidentais e conexas ao abrigo do art. 91º, razão pela qual é competente o tribunal do domicilio do autor, no caso, tendo a Autora domicilio em Espanha, não seriam os Tribunais portugueses os competentes.

Com o devido respeito dissentimos: não se trata de saber qual o Tribunal competente para a acção de divórcio, porque, nessa hipótese, claramente que a competência radica no domicílio do Autor (a acção de divórcio foi intentada e sentenciada em Espanha).

Ainda relacionado com este ponto o Acórdão recorrido convocou o factor de atribuição da competência internacional da al. c) do art. 62º “Quando o direito invocado não possa tomar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litigio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”

A norma consagra o princípio da necessidade.

No “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em comentário ao normativo, na pág. 94, pode ler-se:

“A al. c) contém uma cláusula de salvaguarda tendente a evitar que, atenta a impossibilidade de ordem prática ou jurídica (v.g. recusa de competência) ou a grave dificuldade na instauração da acção num tribunal de outro Estado, o direito em causa pudesse ficar sem tutela efectiva (v.g. casos de guerra ou outras calamidades).

Concretiza o princípio da necessidade, mas a atribuição da competência aos tribunais, exige uma forte conexão com a ordem jurídica portuguesa, seja de ordem pessoal (v.g. nacionalidade ou residência das partes), seja de natureza real (v.g. o facto de se situar em território nacional o bem que é objecto imediato ou mediato da acção).”

O Recorrente discorda da aplicação do princípio da necessidade, contido na citada norma, considerando que para o exercício do direito em discussão a Autora intentou uma acção no Tribunal espanhol que decretou o divórcio e onde corre o inventário, que foi indeferida por intempestiva, pelo que “a segunda tentativa” de “alteração da qualificação” está em contradição com a sua conduta, exprimindo venire contra factum proprium e “fraude à lei relativa à competência internacional” (conclusão 36ª).

Importa dizer que o facto de a Autora ter intentado em Espanha uma acção cuja causa de pedir e pedido se ignora, mas que pertine ao interesse e à pretensão agora ajuizada em Portugal, só por si não implica que a pretensão actuada perante Tribunal português deva ser desconsiderada: desde logo, a acção proposta no Tribunal Espanhol não apreciou o que quer que fosse, foi considerada intempestiva, não definiu o direito pretendido exercer.

Se, porventura, a Recorrida não puder exercer a pretensão através de acção intentada em Portugal, o direito que lhe assiste como contitular do imóvel, dificilmente será apreciado judicialmente.

As circunstâncias revelam a existência de forte conexão com a ordem jurídica portuguesa, desde logo, o bem (um imóvel) está intimamente ligado à pretensão pessoal de fruição e administração e situa-se em Portugal, em Lisboa, onde o Recorrente tem domicílio.

A necessidade de efectiva tutela jurídica ao abrigo do princípio da necessidade contido no art. 62º al. c) do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício: o princípio da necessidade vale como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excepcional da competência internacional dos Tribunais portugueses.

No caso em apreço, não se verificando qualquer abuso do direito de accionar, ao intentar a acção em Portugal, nem se antevendo qualquer intenção de fraude às regras de competência internacional, a regra do citado normativo é de aplicação pertinente."

[MTS]