"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/05/2019

Jurisprudência 2019 (26)


Competência internacional;
Reg. 1215/2012


I. O sumário de RG 24/1/2019 (1689/17.7T8BGC.G1) é o seguinte:

.1- Para a determinação da competência internacional, só se aplicam os critérios de conexão a que se refere o artigo 59º do Código de Processo Civil se não existirem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais ratificadas ou aprovadas, que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses, porque estes prevalecem sobre os restantes critérios.

.2- No âmbito do Regulamento (UE) 1215/2012, o domicílio do demandado no território dos Estados–Membros da União Europeia desempenha a função não só de critério geral de competência, mas também de condição para aplicar as regras de competência direta previstas no próprio Regulamento, nos termos do artigo 4.º, nº 1.

.3- Aplica-se este Regulamento quando o demandado se encontre domiciliado no território do Estado-Membro da União Europeia, independentemente da sua nacionalidade, mesmo que outros fatores de conexão apontem apenas para outros Estados que não o subscreveram (como o ...).

.4- As “competências especiais” previstas na secção 2ª do Regulamento (UE) 1215/2012, entre as quais as relativas a matéria contratual e extracontratual, previstas no artigo 7º do Regulamento, são apenas critérios alternativos ao do domicílio, não o substituindo.

.5- Assim, mantém-se a competência do tribunal do Estado-Membro onde está domiciliado o demandado, nos termos do artigo 4.º, nº 1 do Regulamento (UE) 1215/2012, mesmo que o recurso aos critérios previstos no seu artigo 7º aponte para os tribunais de outro país.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Do âmbito de aplicação do Regulamento(UE) n.º 1215/2012

O Regulamento(UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, no que toca ao seu âmbito de incidência objetiva, aplica-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição, mas não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado («acta jure imperii»), como decorre do seu artigo 1º..

Quanto ao âmbito subjetivo há que recorrer ao artigo 4.º, que estabelece como critério geral da competência o do domicílio do Réu: como regra, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro, independentemente da sua nacionalidade.

O domicílio do demandado no território dos Estados–Membros da União Europeia desempenha a função não só de critério geral de competência, mas também de condição para aplicar as regras de competência direta previstas no próprio Regulamento.

Da mesma forma, também se aplica este Regulamento quando o demandado se encontre domiciliado no território do Estado- Membro da União Europeia, mesmo que outros fatores de conexão apontem para outros Estados que não a subscreveram.

Sobre o âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões, que precedeu o presente regulamento, sendo os mesmos os princípios gerais que lhe subjazem, pronunciou-se o TJ no Processo C-281/02 Andrew Owusu contra N. B. Jackson, agindo sob o nome comercial «Villa Holidays Bal-Inn Villas», em pedido de decisão prejudicial apresentado pela Court of Appeal (England & Wales) Civil Division, nos seguintes termos: “O artigo 2.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, com as alterações introduzidas pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica e pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa, é aplicável num litígio que opõe nos órgãos jurisdicionais de um Estado contratante partes domiciliadas nesse Estado e tem elementos de conexão com um Estado terceiro e não com outro Estado contratante e aplica-se a uma situação que abranja as relações entre os órgãos jurisdicionais de um único Estado contratante e as de um Estado não contratante e não as relações entre os órgãos jurisdicionais de diversos Estados contratantes. Com efeito, embora na verdade a própria a aplicação das regras de competência da Convenção exija a existência de um elemento de estraneidade, o carácter internacional da relação jurídica em causa não tem de necessariamente decorrer, para efeitos da aplicação da referida disposição, da implicação de diversos Estados contratantes, devido ao mérito da questão ou ao domicílio respetivo das partes no litígio. A implicação de um Estado contratante e de um Estado terceiro, em virtude, por exemplo, do domicílio do demandante e de um demandado no primeiro Estado e da localização dos factos controvertidos no segundo, também é suscetível de conferir natureza internacional à relação jurídica em causa.”

“Compreende-se esta jurisprudência. Dado que as decisões proferidas pelos tribunais dos Estados-Membros circulam livremente no espaço europeu, é desejável que a competência internacional dos tribunais de origem seja determinada pelas mesmas regras em todo esse espaço. Particularmente indesejável seria que a competência internacional desse tribunal se baseasse numa competência exorbitante decorrente do direito interno de um Estado-Membro.”, afirmou Miguel Teixeira de Sousa, em comentário disponível em https://blogippc.blogspot.pt/2016/ 07/jurisprudencia-414.html, que continua “O que é referido quanto ao art. 2.º CBrux deve ser dito quanto ao correspondente art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012, pelo que a circunstância de a acção ter conexão com um Estado terceiro (Moçambique) não é suficiente nem para afastar a aplicação do Reg. 1215/2012, nem para excluir a competência internacional dos tribunais do Estado do domicílio do demandado que é atribuída pelo art. 4.º, n.º 1, Reg. 121572012 (na doutrina, cf. Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht. 9.º ed. (2011), vor Art. 2 EuGVO 8; Schlosser/Hess, EuZPR, 4.ª ed. (2015), Vor Art. 4-35 EuGVVO 5). Noutros termos: a circunstância de a opção ser entre a competência internacional dos tribunais portugueses ou a competência internacional dos tribunais moçambicanos não é suficiente para excluir a aplicação do Reg. 1215/2012, pelo que teria bastado a aplicação do disposto no art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012 para justificar a competência internacional dos tribunais portugueses.

Dos critérios do Regulamento(UE) n.º 1215/2012

Como se viu, o domicílio do requerido no território dos Estados–Membros da EU desempenha a função não só de critério geral de competência, mas também de condição para aplicar as regras de competência direta previstas no próprio Regulamento.

O recurso ao critério do domicílio como fator de atribuição da competência internacional tem exceções no campo do direito de consumo, trabalho, nos casos em que os Estados-Membros da União Europeia tenham competência exclusiva (artigo 24º) ou tenha sido celebrado pacto de jurisdição.

Por outro lado, o artigo 7º do Regulamento prevê, na parte que aqui nos interessa que “ As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:

1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

— no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

— no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.

Do seu próprio teor resulta que aquele que demanda “pode” escolher o foro contratual ali especificado, assim não se afastando o critério geral previsto no artigo 4º, apenas se prevendo uma opção ao demandante. Tal resulta também, aliás, do Considerando 16 dos do Regulamento 1215/2012 (sublinhado nosso): “O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele.”

Assim, o artigo 7º do Regulamento apenas estabelece um critério alternativo ao do domicílio, não o substituindo.

Há que concluir que, visto que o critério previsto neste artigo 7º não derroga o estabelecido no artigo 4º nº 1, relativo ao domicílio do demandado, bem podia o Autor demandar os Réus domiciliados em Portugal em tribunal português.

Cumpre ainda referir que também este regulamento estipula competências exclusivas para os Estados Membros, as quais se mostram previstas no artigo 24º, afastando, aí sim, esses casos da possibilidade de aplicação da regra geral. Estabelece esta norma, além de outros casos que aqui nunca poderiam ter qualquer implicação, que “Têm competência exclusiva os seguintes tribunais de um Estado-Membro, independentemente do domicílio das partes: 1) Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado-Membro onde se situa o imóvel.” No entanto, a mesma não atribui aos Estados não membros qualquer exclusividade para o conhecimento de tais questões, pelo que o caso não cabe no âmbito desta norma."

[MTS]