"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/05/2019

Jurisprudência 2019 (20)


Providência cautelar comum;
requisitos

1. O sumário de RL 30/1/2019 (7840/17.0T8CBR-B.L1-4) é o seguinte: 

I– O procedimento cautelar, mormente o procedimento cautelar comum, constitui um meio processual destinado a obter uma decisão conservatória ou antecipatória que permita afastar o receio de que alguém se possa ver prejudicado pela conduta de um terceiro suscetível de causar lesão a um seu direito;

II– Não basta, porém, a invocação de um mero receio, assim como não se mostra suficiente a verificação de uma simples lesão do direito que se pretenda ver acautelado para que, desde logo, possa ser judicialmente desencadeado um procedimento cautelar;

III– Para que tal possa suceder, mostra-se necessário que se esteja perante a probabilidade séria da existência de um direito e que haja um justificado receio de que a conduta de um terceiro seja suscetível de causar uma lesão grave e dificilmente reparável ao titular desse direito;

IV– A lesão de alegados direitos dos trabalhadores representados pelo Sindicato Requerente, por parte das Requeridas, cedente e cessionárias no âmbito de invocada transmissão de estabelecimento, não se mostra irreparável ou sequer de difícil reparação, porquanto, passível de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural e/ou de indemnização substitutiva.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como decorre da decisão recorrida proferida pelo Tribunal a quo [...], o Mmo. Juiz da 1ª instância indeferiu liminarmente a presente providência cautelar comum requerida pelo AAA, porquanto, em seu entender, não se mostravam reunidos os requisitos cumulativos que resultam do disposto no art. 368º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ou seja, (i) a verificação de probabilidade séria da existência do direito; (ii) o justo e fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação a esse direito; (iii) a não existência de providência específica para acautelar o mesmo direito e (iv) o prejuízo resultante da providência não exceder o valor do dano que com ela se quer evitar, dado que no caso vertente e em seu entender, não se verificaria o segundo destes requisitos ou pressupostos e isto, porquanto e como afirma na decisão recorrida, “…de todo o extenso elenco de invocados prejuízos não encontramos nenhum que se possa enquadrar naquele conceito legal de «lesão grave e de difícil reparação»” uma vez que “[p]arte das lesões invocadas reportam-se a situações futuras e incertas, que ficarão necessariamente acauteladas com a procedência da acção declarativa já em curso” e “[o]utras, assentam em meras expectativas dos trabalhadores, com base em «suspeitas». Mas todas elas, a verificar-se o direito, serão sempre de fácil reparação, pois que se traduzem em vantagens de natureza patrimonial ou que podem ser assim compensadas”.

Refere ainda como fundamento do decidido indeferimento liminar da presente providência cautelar comum que, “esta providência corre por apenso à acção declarativa com processo comum, a qual está já em fase de saneamento, sendo mais que previsível que a respectiva audiência de julgamento ocorra este ano, e bem assim proferida a respectiva sentença” não se verificando, portanto, o pressuposto do “periculum in mora”.

Vejamos se se decidiu com acerto!

Como refere António Abrantes Geraldes em “Temas da Reforma do Processo Civil” – Volume III (3ª Edição) pág. 35, «[o]s procedimentos cautelares são um instrumento processual privilegiado para protecção eficaz de direitos subjectivos ou de outros interesses juridicamente relevantes. [...]

Posto isto e no que concerne ao procedimento cautelar comum, mostra-se o mesmo, desde logo, previsto no art. 32º do Código de Processo do Trabalho, o qual, no entanto, remete para o Código de Processo Civil sem prejuízo das especialidades ali previstas, sendo que neste último diploma tal procedimento se encontra regulado nos art.ºs 362º a 376º.

Ora, estabelece o n.º 1 do art. 362º do CPC que, «[s]empre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado».

Por sua vez, estipula-se no n.º 1 do art. 368º do CPC que «[a] providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão», enquanto no n.º 2 do mesmo preceito se estipula que «[a] providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar».

Como decorre destas normas, o procedimento cautelar, mormente o procedimento cautelar comum, constitui um meio processual destinado a obter uma decisão conservatória ou antecipatória que permita afastar o receio de que alguém se possa ver prejudicado pela conduta de um terceiro suscetível de causar lesão a um seu direito. Contudo, não basta a invocação de um mero receio, assim como não se mostra suficiente a verificação de uma simples lesão do direito que se pretenda ver acautelado para que, desde logo, possa ser judicialmente desencadeado um procedimento cautelar. Com efeito, para que tal possa suceder, mostra-se necessário que se esteja perante a probabilidade séria da existência de um direito e que haja um justificado receio de que a conduta de um terceiro seja suscetível de causar uma lesão grave e dificilmente reparável ao titular desse direito.

Ora, quanto a este último aspeto, refere António Abrantes Geraldes (ob. cit., pág. 99/100) que, «… não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contra-parte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade de permitir ao tribunal, mediante solicitação do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão… o juiz deve convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo de danos futuros. A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado», acrescentando mais adiante (ob. cit., pág.101) que «[a] protecção cautelar não abarca apenas os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, mas ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular.

Quanto aos prejuízos materiais o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.», referindo ainda noutro passo (ob. cit., pág.101/102), que «[a]penas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil reparação.

Ficam afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento comum, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis».

Ora, levando-se em linha de conta tudo quanto acabámos de afirmar, verifica-se que o Requerente menciona como direitos dos trabalhadores das Requeridas e seus associados, passíveis de lesão decorrente da alegada “transmissão de estabelecimento” ocorrida entre aquelas, os seguintes: [...]

Ora, todos estes alegados direitos se circunscrevem no âmbito da esfera patrimonial dos trabalhadores representados pelo Requerente e a eventual lesão de diversos deles pelas 2ª e 3ª Requeridas, enquanto alegadas cessionárias no âmbito de uma transmissão de estabelecimento ou parte de estabelecimento pertencente à 1ª Requerida, apenas se perspetiva possa vir a suceder num futuro mais ou menos próximo.

Sucede que a eventual lesão desses alegados direitos por parte das 2ª e 3ª Requeridas, cessionárias na referida transmissão de estabelecimento, surge, desde logo, deveras mitigada, senão mesmo excluída, face ao disposto no art. 285º do Código do Trabalho no que concerne aos efeitos da transmissão de estabelecimento sobre os contratos de trabalho dos trabalhadores que nele laborem ao serviço do cedente, porquanto e como se sabe, a transmissão, por qualquer título, de empresa, estabelecimento, ou parte de estabelecimento que constitua uma unidade económica, implica, desde logo, a assunção integral da posição contratual do cedente, por parte do cessionário, em relação aos contratos de trabalho dos trabalhadores que laborem na empresa, estabelecimento, ou parte de estabelecimento objeto de transmissão, o que, em si, importa a verificação de uma transmissão automática dos direitos e obrigações decorrentes desses contratos de trabalho para o cessionário da transmissão.

Acresce que, tal como se concluiu na 1ª instância, a lesão de qualquer desses alegados direitos dos trabalhadores representados pelo Requerente, por parte das Requeridas, no âmbito da invocada transmissão de estabelecimento, não se mostra irreparável ou sequer de difícil reparação, porquanto, passível de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural e/ou de indemnização substitutiva.

Finalmente e a crer-se no que afirma o Mmo. Juiz da 1ª instância na decisão recorrida, aquando da propositura da presente providência cautelar a ação principal de que a mesma é dependente estaria numa fase de saneamento, ou seja, numa fase já avançada do seu processamento, razão pela qual estaria afastada uma situação de grande demora quanto à prolação de uma decisão nesse processo principal."


[MTS]