"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/05/2019

Jurisprudência 2019 (23)




Injunção; fraude à lei;
extinção do procedimento


I. O sumário de RL 5/2/2019 (70173/17.5YIPRT.L1-7) é o seguinte:

1. A decisão que considera não ocorrer erro na forma do processo cabe na previsão de qualquer uma das alíneas do n.º 2 do art. 644.º do C.P.C., nomeadamente na sua al. h), pelo que não é suscetível de recurso autónomo (n.º 3 do citado artigo).

2. Na al. h) o legislador abre a possibilidade de interposição de recursos intercalares quando a sujeição à regra geral do diferimento da impugnação para o recurso de outra decisão, importe a absoluta inutilidade de uma decisão favorável que eventualmente venha a ser obtida.

3. Não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final, sendo necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso da decisão interlocutória não assumirá qualquer reflexo no resultado da acção ou na esfera jurídica do interessado.

4. Não estando em causa uma transação comercial, apenas é lícito o recurso à injunção estando em causa o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000,00.

5. O requerente, ao apresentar, em simultâneo, no Balcão Nacional de Injunções, dois requerimentos injuntivos, invocando, em ambos, o incumprimento, pelas requeridas, do mesmo contrato, com vista ao pagamento coercivo, pelas requeridas:

- numa das injunções, aquela a que corresponde o Proc. n.º 70172/17.7YIPRT, da quantia de € 9.209,52, a título de capital, pelo não pagamento de rendas referentes aos meses de outubro de 2015 a junho de 2016;

- noutra das injunções, a que corresponde o presente processo, com o n.º 70173/17.5YIPRT.L1, da quantia de € 8.648,37, a título de capital, pelo não pagamento das rendas referentes aos meses de Julho de 2016 a 14 de Março de 2017,

ou seja, da quantia global, a título de capital, de € 17.857,89, mais não faz do que, defraudando a lei e o espírito do legislador, exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de um contrato de valor superior € 15.000,00.

6. Assim sendo, o presente procedimento de injunção, não constitui processo próprio para o requerente peticionar o pagamento das quantias que considera serem-lhe devidas a título de rendas vencidas e não pagas, ainda que em cada um dos procedimentos injuntivos instaurados, o requerente pretenda o pagamento coercivo de quantia inferior a € 15.000,00.

7. No entanto, não é isso que releva para efeitos de se aferir se o procedimento injuntivo constitui o meio processual adequado com vista ao pagamento coercivo da concreta quantia nele indicada, o mesmo é dizer, para se analisar a questão da propriedade ou impropriedade da forma do processo utilizada.
 
8. A determinação da propriedade ou impropriedade da forma do processo escolhida pressupõe uma análise prévia no sentido de se apurar se o pedido formulado se harmoniza, ou não, com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual adoptada pelo requerente.

9. Um tal erro na forma do processo, por implicar a anulação de todo o processado na justa medida em que a própria petição não pode sequer ser aproveitada por não obedecer aos requisitos previstos nos artigos 552.º, n.º 1 e 147.º, n.º 2, do C.P.C., constitui uma excepção dilatória inominada, traduzida no uso indevido do processo de injunção num caso em que não se mostram reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização, dando lugar à absolvição da instância.


III. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] o requerente, ao apresentar, em simultâneo, no Balcão Nacional de Injunções, dois requerimentos injuntivos, invocando, em ambos, o incumprimento, pelas requeridas, do mesmo contrato, ou seja, do “Contrato de Arrendamento Para Fins Não Habitacionais Com Prazo Certo”, celebrado em 01 de Novembro de 2010, pelo qual deu de arrendamento à requerida Maria, a fracção autónoma designada pela letra “S”, correspondente à Loja 00, do prédio urbano, em propriedade horizontal sito na Rua C, número 01, freguesia de S, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de M sob a ficha 003 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 007º, e no qual a requerida Alexandra figura como fiadora, com vista ao pagamento coercivo, pelas requeridas:

- numa das injunções, aquela a que corresponde o Proc. n.º 70172/17.7YIPRT, da quantia de € 9.209,52, a título de capital, pelo não pagamento de rendas referentes aos meses de outubro de 2015 a junho de 2016 (€ 1.023,28 x 9);

- noutra das injunções, a que corresponde o presente processo, com o n.º 70173/17.5YIPRT.L1, da quantia de € 8.648,37, a título de capital, pelo não pagamento das rendas referentes aos meses de Julho de 2016 a 14 de Março de 2017 (€ 1.023,28x8+€ 462,13-proporcional de Março), 

ou seja, da quantia global, a título de capital, de € 17.857,89, mais não faz do que exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de um contrato de valor superior € 15.000,00.

Assim sendo, o presente procedimento de injunção [...], não constitui processo próprio para o requerente peticionar o pagamento das quantias que considera serem-lhe devidas a título de rendas vencidas e não pagas.

É certo que em cada um dos procedimentos injuntivos instaurados, o requerente pretende o pagamento coercivo de quantia inferior a € 15.000,00.

No entanto, não é isso que releva para efeitos de se aferir se o procedimento injuntivo constitui o meio processual adequado com vista ao pagamento coercivo da concreta quantia nele indicada, o mesmo é dizer, para se analisar a questão da propriedade ou impropriedade da forma do processo utilizada.

A determinação da propriedade ou impropriedade da forma do processo escolhida pressupõe uma análise prévia no sentido de se apurar se o pedido formulado se harmoniza, ou não, com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual adoptada pelo requerente.

E, no caso concreto, não se harmoniza!

E não se harmoniza porque, há que dizê-lo claramente, aquilo que se nos afigura que o requerente fez, mais não foi do que, olvidando aquilo que esteve no espírito do legislador ao aprovar o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior € 15.000,00, utilizar um estratagema que lhe permitisse contornar a proibição legal de instauração de uma injunção destinada a conferir força executiva a um requerimento injuntivo destinado a exigir o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de um contrato.

Ou seja, e em termos eventualmente mais simples, de modo a contornar aquela proibição legal, invocando o incumprimento do mesmo contrato de arrendamento para fins não habitacionais, dividiu uma divida de capital, referente a rendas vencidas e não pagas desde outubro de 2015 até 14 de março de 2017, no valor global de € 17.857,89, em “duas fatias”:

a) uma, no montante € 9.209,52, referente à rendas vencidas e não pagas relativas aos meses de outubro de 2015 a junho de 2016;

b) outra, no montante de € 8.648,37, referente às rendas relativas aos meses de julho de 2016 a 14 de março de 2017,

e, relativamente a cada uma delas instaurou, em simultâneo, um procedimento injuntivo:

- o procedimento injuntivo para pagamento coercivo da quantia referida em a) e que, na sequência da oposição das requeridas, deu lugar ao Proc. n.º 70172/17.7YIPRT;

- o procedimento injuntivo para pagamento coercivo da quantia referida em b) e que, na sequência da oposição das requeridas, deu lugar ao Proc. n.º 70173/17.5YIPRT.L1, ou seja, aos presentes autos.

A vingar a estratégia do requerente, estaria escancarado o caminho para, por exemplo, numa situação em que estivesse em causa o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de um contrato no valor de centenas de milhares de euros, serem “fracionadamente” instaurados tantos procedimentos injuntivos quantos os necessários, em cada um deles se indicando um valor não superior a € 15.000,00, até se perfazer o valor total de uma tal dívida.

Tratar-se-ia, como se trata no caso concreto, de um procedimento defraudante da lei e do espírito do legislador.

Ocorre, pois, in casu, uma situação de erro na forma do processo.

Ou seja, está em causa uma excepção dilatória inominada, traduzida no uso indevido do processo de injunção num caso em que não se mostram reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização.

O art. 577.º, do C.P.C., ao enumerar as exceções dilatória, fá-lo de forma exemplificativa [...].

Tais exceções, conforme decorre do art. 576.º, n.º 2, do C.P.C., «obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância (...)». 

Ora, o requerente, ao fazer uso do processo injuntivo nos termos em que o fez, e acima se deixaram descritos, numa situação em que não se mostravam preenchidos os pressupostos legalmente exigidos para tal, está, inequivocamente, a fazer um uso indevido e inadequado deste meio de exigir o cumprimento das obrigações, o que configura uma exceção dilatória inominada.

É certo que à luz do disposto no art. 193.º, n.º 1, do C.P.C., «o erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei», não devendo, porém, como decorre do n.º 2, «aproveitar-se os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu».

Sucede, porém, que na situação presente, esse erro implica a anulação de todo o processado na justa medida em que a própria petição não pode sequer ser aproveitada por não obedecer aos requisitos previstos nos artigos 552.º, n.º 1 e 147.º, n.º 2, do C.P.C..

A isto acresce, tal como se decidiu no Ac. desta Relação de 17.12.2015, proferido no Proc. n.º 122528/14.9YIPRT.L1-2 (Maria Teresa Albuquerque), in www.dgsi.pt, que a circunstância de na situação dos autos a primitiva injunção se ter transmutado em acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, não legitima a utilização indevida da injunção, como é acentuado no Ac. do S.T.J. de14/2/2012, ou qualquer adequação processual ou convite a um aperfeiçoamento, pois, caso contrário, «estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção» [...].

Impõe-se, pois, no presente caso, julgar verificada a exceção dilatória inominada consistente no erro na forma do processo e, nos termos dos arts. 576º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, do C.P.C., absolver da instância as requeridas, ora apelantes, com que, conforme referido supra, fica prejudicado o conhecimento das demais questões que constituíam o objeto do presente recurso.

*III. [Comentário] A RL poderia (e, preferencialmente, deveria) ter seguido um outro caminho: o de que o requerente, ao procurar, através do desdobramento da quantia (alegadamente) em dívida, conseguir um fim proibido pela lei, actuou de má fé (art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC), pelo que, nos termos do disposto no art. 612.º CPC, havia que extinguir ambos os procedimentos de injunção.

MTS