"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/05/2019

Jurisprudência 2019 (24)

 
Penhora; acções;
deliberações sociais; impugnação

 
1. O sumário de STJ 29/1/2019 (874/10.7TYVNG.P1.S2) é o seguinte:
 
I - As funções atribuídas ao fiel depositário, que decorrem do dever legal de administrar com diligência e zelo o bem penhorado, reconduzem-se, fundamentalmente, em providenciar a conservação do “bem” em atenção ao seu valor e natureza, permanecendo o bem na titularidade do respectivo proprietário que, nessa medida, não foi afectado na sua posse, mas apenas limitado no seu direito de disposição.

II – A penhora de acções não contende com os direitos sociais do respectivo titular, designadamente o respectivo direito de voto que não pode ser alheado do direito de impugnar as deliberações sociais.

III - A nulidade e/ou a declaração de inexistência das deliberações sociais podem ser invocadas por qualquer interessado aferindo-se, porém, a qualidade do mesmo em função do exercício normal e adequado do direito de impugnação.

IV – Enquanto mero detentor ou possuidor em nome alheio, o depositário de acções penhoradas não pode ser considerado interessado para o exercício do direito de impugnar as deliberações da sociedade; como tal, carece de legitimidade substantiva para arguir os vícios que inquinem o acto deliberativo de uma sociedade.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Através da acção o Autor visa impugnar as deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da Ré Sociedade, realizada em 06-10-2010, que tiveram por conteúdo a aprovação do relatório de gestão e contas do exercício de 2009, a aprovação da proposta de aplicação de resultados do exercício de 2009 e a aprovação de um voto de confiança aos órgãos de administração e fiscalização da sociedade. Pretende que as mesmas sejam declaradas inexistentes ou nulas, ou decretada a sua anulação.

Sustenta a legitimação do direito de impugnar tais deliberações sociais na qualidade de depositário das acções (correspondentes a 99,06% do capital social da Ré BB) que são pertença do Réu EE e foram penhoradas no âmbito de acção executiva intentada por terceiro contra aquele [...].

O acórdão recorrido, na esteira do decidido pela 1ª instância, considerou que o Autor carecia de legitimidade substantiva para arguir os vícios que imputa às deliberações em causa, alicerçado em raciocínio que se faz consignar sob as seguintes premissas:

- o Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC) consagra apenas três categorias de vícios das deliberações sociais – nulidade, anulabilidade e ineficácia – não reconhecendo autonomia à inexistência jurídica;

- para além das entidades indicadas no artigo 57.º, do CSC, a lei não prevê a possibilidade de qualquer outra poder arguir os vícios que inquinem o acto deliberativo de uma sociedade;

- revestindo a deliberação societária a natureza de negócio jurídico, por força do regime previsto no artigo 286.º, do Código Civil (doravante CC), só os interessados podem arguir a nulidade das mesmas;

- o direito de invocação da nulidade do negócio jurídico não é universal, assumindo um cariz substantivo que pressupõe a oponibilidade do negócio ao seu titular; nessa medida, o sujeito legitimado a arguir a nulidade da deliberação tem de demonstrar um interesse directo na nulidade e, não e apenas, um interesse reflexo;

- incumbindo ao depositário dos bens penhorados (possuidor precário), a mera administração e guarda dos referidos bens, não cabe no âmbito dos respectivos poderes o exercício de direitos sociais que assumem a natureza de direitos pessoais;

Contrapõe o Recorrente evocando a relevância jurídica do interesse enquanto fiel depositário para acompanhar e fiscalizar os negócios sociais, fazendo apelo aos seguintes aspectos que, em seu entender, o legitimam para o exercício de direitos sociais inerentes às acções penhoradas:

- por os dividendos constituírem os frutos das acções penhoradas, que nos termos do artigo 758.º, n.º1, do CPC, aplicável às participações sociais por efeito do artigo 783.º, do mesmo Código, cabe ao fiel depositário receber e administrar conjuntamente com as próprias acções penhoradas;

- por lhe assistir o direito à informação, por aplicação analógica do disposto no artigo 293.º, do CSC;

- por as deliberações em causa violarem o disposto no artigo 104.º, do Código de Valores Mobiliários (doravante CVM), de natureza imperativa, determinando a inexistência das mesmas;

- por constituir condição imprescindível ao exercício das suas funções como fiel depositário (judicial e não depositário civil) o acompanhamento e fiscalização das contas da sociedade e, podendo a nulidade ser suscitada por qualquer interessado, carecer de cabimento a distinção entre interesse directo na nulidade e interesse meramente reflexo;

Vejamos.
 
As acções são títulos de capital de uma sociedade anónima que reunidas num titular lhe conferem uma participação social em determinada sociedade. 
 
Da titularidade de uma participação social decorrem diversos direitos e obrigações (artigos 21.º, n.º1 e 20.º, do CSC). 

Conforme salienta Alexandre Soveral Martins [VALORES MOBILIÁRIOS (ACÇÕES), Almedina, p. 31], os direitos que integram a participação social (enquanto conjunto unitário de direitos e obrigações dos sócios) podem ser agrupados em direitos patrimoniais (direito de quinhoar nos lucros de exercício e o direito à quota de liquidação) e direitos administrativos, sendo estes o direito de participar nas deliberações dos sócios, o direito à informação e o direito de ser designado para os órgãos de administração e de fiscalização.

No que se refere ao regime dos direitos sociais em geral, resulta do artigo 55.º, do CVM que quem está legitimado ao exercício dos direitos é aquele que, em conformidade com o registo ou com o título, for o seu titular [...]; assim, a legitimação para o exercício dos direitos inerentes às acções será determinada em função do que constar do respectivo registo. 

Importa realçar que, no caso das acções ao portador, o então n.º1 do artigo 104.º do CVM (revogado pela Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio, que veio proibir a emissão de valores mobiliários ao portador) determinava que o exercício de direitos inerentes aos valores mobiliários titulados ao portador dependia da posse do título ou de certificado passado pelo depositário, sendo certo que, como faz salientar Soveral Martins, o depositário não será possuidor[4], mas mero detentor dos títulos de acções, isto é, sem animus possidendi proprium.

Debruçando-se sobre o penhor de acções refere Tiago Soares da Fonseca [que] “O penhor das acções é, na sua essência, uma garantia real. Através dele visa-se assegurar o cumprimento de determinada obrigação conferindo ao seu credor uma preferência sobre os demais no pagamento do valor resultante da execução do bem penhorado. Para esta função, não se torna necessária a atribuição do exercício dos direitos sociais ao credor pignoratício. Apenas é necessário que o bem dado em penhor se conserve de modo a assegurar o cumprimento de certa obrigação.” [“O PENHOR DE ACÇÕES”, Almedina, 2ª edição, p. 82-83], concluindo que as relações estabelecidas com a sociedade e/ou com outros sócios pertencerá ao titular das acções, sem prejuízo de as partes estabelecerem de forma diferente, como aliás decorre do que se mostra prescrito nos artigos 23.º, n.º4, do CSC, e 81.º, n.º4, do CVM.

Assim, a regra no nosso ordenamento jurídico é a de que o exercício dos direitos sociais compete ao titular das acções, excepto se as partes tiverem convencionado diferentemente, regra que se mantém relativamente ao direito de participar nas deliberações sociais, designadamente o direito de informação, de discussão e de voto – cfr. artigo 21.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CSC.

Relativamente ao direito de voto cabe salientar o que nesse sentido dispõe o artigo 239.º, n.º1, do CSC, nos termos do qual na penhora de uma quota “(…) o direito de voto continua a ser exercido pelo titular da quota penhorada”. [...]
 
Resta-nos pois debruçar sobre a atribuição do direito de impugnar deliberações sociais que constitui o enfoque do que neste âmbito se impõe conhecer. 

A problemática referente ao direito de impugnar deliberações, ainda que logre merecer concordância a possibilidade do mesmo se encontrar dissociado do exercício do direito de voto [...], mostra-se interligada à questão dos vícios de que as deliberações sociais possam padecer.

A este propósito refere o acórdão recorrido, depois de se afastar do posicionamento daqueles que admitem a inexistência jurídica enquanto vício de que as deliberações sociais podem enfermar, que “Em consonância com a respetiva disciplina normativa terá legitimidade para arguir a nulidade de uma deliberação de sociedade comercial as entidades referidas no art. 57º, concretamente o sócio (nº 1), o órgão de fiscalização (nº 2) e, nas sociedades que não tenham órgão de fiscalização, “qualquer gerente”, como expressamente se dispõe no seu nº 4.

É certo que para além dessas entidades não está proscrita a possibilidade de outras poderem arguir o vício que inquinará o ato deliberativo, já que, quanto a esta matéria, o citado art. 57º reporta-se unicamente ao âmbito social, limitando-se a acrescentar uma especialidade em relação ao regime geral previsto no Código Civil.

Consequentemente, assumindo, como nos parece, as deliberações natureza de negócio jurídico (qualificação que, ainda assim, não se revela pacífica), ser-lhes-á, por isso, aplicável - quando enfermem de vício de nulidade - a regra de direito comum plasmada no art. 286º do Cód. Civil, nos termos do qual esse vício genético “é invocável por qualquer interessado”.

Portanto, no caso vertente, não se integrando o autor em nenhuma das categorias de entidades previstas no art. 57º, tudo se resume em determinar se será interessado para arguição dos vícios que assaca às ajuizadas deliberações sociais.

Ora, malgrado não se registe uma posição unívoca a propósito da determinação do âmbito subjetivo do aludido conceito, afigura-se-nos claro que o direito de invocação da nulidade não pode conferido a todos, dado que não é (nem pode ser) qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração da nulidade, que preenche os requisitos para ser considerado interessado.

De facto - de acordo, aliás, com a própria inserção sistemática do art. 286º -, o interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar o vício é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu. O sujeito legitimado deve, assim, ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse reflexo, vago e indireto.

Daí que, transpondo essa leitura para o domínio da impugnação das deliberações sociais, não falta quem advogue que, por via de regra, somente o sócio tem reconhecido interesse direto na procedência da ação de declaração de nulidade.

Como se referiu, in casu, o apelante filia o seu interesse no facto de ser depositário das 495.270 ações (representativas de 99,06% do capital da ré “BB, S.A.”) pertencentes ao réu DD, tendo sido investido nessa qualidade na sequência de penhora de tais valores mobiliários que foi decretada no âmbito da ação executiva que a este demandado foi movida por “FF, S.A.”.

Ora, nos termos da lei adjetiva (cfr. art. 843º do pretérito Código de Processo Civil, então em vigor), ao depositário incumbe apenas a administração e guarda dos bens penhorados, sendo que a penhora não produz qualquer diminuição de capacidade do proprietário/titular desses bens, apenas o privando da possibilidade de os alienar.

Significa isto, portanto, que a penhora tem caráter eminentemente patrimonial, pelo que o exercício dos direitos pessoais/sociais do sócio/acionista titular dos valores mobiliários que foram alvo dessa diligência não é por ela afetado. Dito de outro modo, o exercício dos direitos sociais (no qual se integra o de impugnação de deliberações dos sócios) é de natureza pessoal, não se transferindo para o depositário, dado que o respetivo direito continua a radicar na esfera jurídica do sócio/acionista , como emerge, designadamente, dos arts. 21º, nº 1, al. b), 373º, 376º e 379º, nº 1.

Deste modo, o autor/apelante, enquanto depositário das mencionadas ações (sendo, pois, mero possuidor precário ou possuidor em nome alheio), carece de legitimidade substantiva para a invocação de vício de nulidade de que alegadamente padeçam as ajuizadas deliberações sociais, tanto mais que não é atingido diretamente na sua esfera jurídica por esse ato deliberativo.” 

O entendimento explanado merece a nossa concordância, sendo que as razões que o Recorrente vem aduzir de modo algum permitem inverter o sentido deste posicionamento.

De acordo com a regra geral do Código Civil, a nulidade pode ser invocada por qualquer interessado, isto é, pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio [...].

Na lei impera o princípio do numerus clausus das causas de nulidade das deliberações sociais [...], pelo que são apenas e exclusivamente causa de nulidade de deliberações sociais as circunstâncias previstas no artigo 56.º, do CSC [...].

Quanto ao vício da anulabilidade previsto nas alíneas do n.º1 do artigo 58.º do CSC, a lei mostra-se clara (artigo 59.º) ao conceder legitimidade para a sua arguição a quem tiver sido atribuído o direito de voto, bem como ao órgão de fiscalização, encontrando-se, ainda dependente dos pressupostos consignados no referido preceito [...].

No caso, verifica-se que o Autor se encontra fora de qualquer destas situações e, como tal, não lhe poderia assistir qualquer direito de impugnar as deliberações tomadas em assembleia geral da Ré com fundamento na sua alegada anulabilidade.

Ao invés, quanto à nulidade ou à declaração de inexistência das deliberações podem ser invocadas por qualquer interessado. Todavia, a qualidade de interessado não pode deixar de ser aferida e enquadrável no âmbito do exercício normal e adequado do direito à impugnação da deliberação e não traduzir a defesa de um interesse próprio, alheio ou até conflituante com o interesse social.

Coloca-se pois a questão de avaliar em que medida as funções atribuídas ao fiel depositário de acções penhoradas lhe conferem a qualidade de interessado para o exercício do direito à impugnação das deliberações sociais da sociedade, como defende o Recorrente.

O fiel depositário por força desse cargo passa a ter o dever de administrar os bens penhorados com diligência e zelo – cfr. artigo 760.º, n.º1, do CPC. Porém, o conteúdo fulcral deste dever traduz-se, apenas e fundamentalmente, em providenciar a conservação do “bem” em atenção ao seu valor e natureza, permanecendo aquele na propriedade (titularidade) do sócio que não foi afectado na sua posse (sendo o depositário mero detentor ou possuidor em nome alheio), mas apenas limitado no seu direito de disposição que, obviamente, não contende com os seus direitos sociais, designadamente o direito de voto o qual, como acima realçado, não pode ser alheado do direito de impugnação das deliberações.

Por conseguinte, uma vez que a posse das acções de que o Autor é depositário se caracteriza como posse precária ou em nome alheio, permanecendo (a propriedade e posse) na titularidade do sócio, não se vislumbra o alegado interesse (em termos de se mostrar directamente atingido) na arguição de vícios que possam inquinar o acto deliberativo."
 
[MTS]