"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/05/2019

Jurisprudência 2019 (21)


Prova; poderes instrutórios;
prova testemunhal*

1. O sumário de RL 30/1/2019 (639/18.8T8FNC-A.L1-4) é o seguinte:

I– À luz do princípio do inquisitório, cabe ao juiz ordenar e realizar todas as diligências que se revelem necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, tenham elas sido requeridas pelas partes, tenham elas partido de iniciativa sua.

II– Mas o princípio do inquisitório não concede ao juiz o poder de se substituir às partes, colmatando os seus lapsos ou esquecimentos no que respeita ao ónus de arrolar ou de aditar determinada testemunha ao rol apresentado.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Apreciemos [...] se o despacho que admitiu a audição da testemunha viola os princípios do inquisitório, da preclusão, do contraditório e da igualdade.

O Autor, patrocinado pelo Ministério Público, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 6º e 411º do CPC ex vi al.a) do nº 2 do artigo 1º do CPT, requerer a audição da testemunha (…), invocando que posteriormente à apresentação do rol, o Ministério Público teve conhecimento [de] que a mencionada testemunha conhece os termos da execução do contrato de trabalho do Autor, bem como a data em que este terminou.

A Ré opôs-se alegando que o pretendido aditamento ao rol de testemunhas é intempestivo e viola o disposto no artigo 63º do CPT.

O Tribunal a quo entendeu que o requerido pelo Autor não se reconduz a um aditamento ao rol de testemunhas, avocou o princípio da descoberta da verdade material, referenciando o disposto nos artigos 6º, 547º e 417º do CPC e deferiu o pedido de audição da testemunha. [...]

Como se sabe, o Código de Processo do Trabalho contempla normas específicas relativas à instrução (cfr. arts. 63º a 67º do CPT).

Dispõe o artigo 63º do CPT:

“1.– Com os articulados, devem as partes juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requerer quaisquer outras provas.

2.– O rol de testemunhas pode ser alterado ou aditado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade no prazo de 5 dias.”


Do referido preceito decorre que as partes, querendo apresentar testemunhas ou outras provas, devem fazê-lo nos articulados, podendo alterar ou aditar o rol até 20 dias antes da data designada para a audiência final.

Contudo, esta regra não fecha a porta a que, também no processo laboral, ao abrigo do princípio do inquisitório enformador do direito [processual] civil e previsto no artigo 411º do CPC, sejam admitidas a depor testemunhas que não tenham sido indicadas nos articulados, sem que com tal actuação seja violado o disposto no artigo 63º do CPT.

Tal possibilidade decorre, de modo claro, do disposto na al. a) do nº 2 do artigo 1º do CPT, que dispõe que, nos casos omissos recorre-se, sucessivamente, à legislação processual comum, civil ou penal que directamente os previna.

Mas a admissão de testemunhas ao abrigo do referido princípio não significa o exercício de um poder arbitrário na medida em que essa admissão só poderá ocorrer dentro dos moldes traçados por aquele mesmo princípio e de harmonia com o sistema processual civil considerado na globalidade.

Assim sendo, antes de mais, importa lançar um olhar sobre os princípios que a Recorrente afirma terem sido violados - princípios do inquisitório, da preclusão, do contraditório e da igualdade.

Dispõe o artigo 411º do CPC, sob a epígrafe Princípio do inquisitório:

“Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”

Sobre este princípio escreve José Lebre de Freitas, na obra “Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código”, 4ª Edição, pag.178: “A prova dos factos da causa deixou, no processo civil hodierno, de constituir monopólio das partes: de acordo com o art.411, o juiz tem o dever de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias ao apuramento da verdade. Trata-se do princípio do inquisitório, que constitui o inverso do princípio da controvérsia; ao juiz cabe no campo da instrução do processo, a iniciativa e às partes incumbe o dever de colaborar na descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que foram determinados (art.471-1). O papel do juiz- árbitro encontra-se definitivamente ultrapassado.”

E em anotação ao artigo 411º do CPC, escrevem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre no “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, Artigos 362.º a 626.º, 3ª Edição, pag.207 e 208: “Neste domínio, o juiz tem poderes mais amplos do que no domínio da investigação de factos, na medida em que pode determinar quaisquer diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes, mas não lhe é lícito, a menos que o processo seja de jurisdição voluntária (art. 986-2, 1.ª parte), considerar factos essenciais não alegados (arts.5-1, 608-2, 2ª parte e 615-1-d, 2ª parte). (…).

Os poderes-deveres do juiz estabelecidos pelo artigo em anotação não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, como mostra o segmento “mesmo oficiosamente”. Ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que necessários ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. Daqui se pode extrair, a contrario, que lhe cabe rejeitar os meios de prova desnecessários, dentro dos limites em que o direito fundamental do acesso à justiça o permita (…).”

Assim, à luz do princípio do inquisitório, cabe ao juiz ordenar e realizar todas as diligências que se revelem necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, tenham elas sido requeridas pelas partes, tenham elas partido de iniciativa sua, pelo que aceitamos a afirmação do Tribunal a quo de que “o juiz pode ouvir qualquer pessoa, mesmo que esta não conste do rol de testemunhas”.

Sucede, porém, que relativamente às diligências requeridas pelas partes é pressuposto do seu deferimento o terem sido requeridas dentro dos prazos concedidos pela lei.

E nem a constante e necessária busca da verdade material autoriza que assim não seja.

Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2.3.2010, in ww.dgsi.pt, “A necessidade de que o tribunal decida de acordo com a verdade material não significa que esta deva ser obtida à outrance e por qualquer modo. O que seria mais adequado a um tribunal norteado pelo populismo e pelo justicialismo, característico de situações sociais de anarquia em que as instituições vão surgindo e funcionando de forma espontânea.

A obtenção da verdade material tem regras e leva-nos àquilo que é normalmente chamado de verdade formal, ou seja, aquela que é obtida por certa forma, ou por certas formas processuais. A verdade formal não é uma mentira, mas a verdade material que foi possível obter. Daqui que a qualidade processual de um sistema de justiça avalie-se pela capacidade de aproximar a "sua" verdade da verdade "real".”

Deste modo, seguir e aplicar correctamente os preceitos da verdade formal é a forma com mais segurança que tem o julgador, de acordo, aliás com o que a lei lhe impõe, de obter uma segura visão da realidade sobre a qual tem de actuar.”

Acresce que o princípio do inquisitório não concede ao juiz o poder de se substituir às partes, colmatando os seus lapsos ou esquecimentos no que respeita ao ónus de arrolar ou de aditar determinada testemunha ao rol apresentado.

E como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.7.2000, citado no “Código de Processo do Trabalho anotado“, de Marlene Mendes, Sérgio Almeida e João Botelho, pag.107, “I- A inquirição de testemunhas não oportunamente arroladas, depende de o tribunal, não se considerando inteirado de todas as circunstâncias do evento, as reputar necessárias para tal fim. II-(…).” [...]

Revertendo ao caso, podemos afirmar que não descortinamos que o despacho recorrido tenha violado os princípios do contraditório e o da igualdade.

Na verdade, o que se extrai dos autos é que a Recorrente apenas se opôs à requerida admissão da inquirição da testemunha, nada esgrimindo no sentido de influir na dita prova, sendo certo que nada requereu, em paridade com o Autor, que lhe tivesse sido negado pelo Tribunal a quo; a Ré limitou-se a opor-se a que a testemunha fosse inquirida.

Mas terá o despacho recorrido violado os princípio do inquisitório e da preclusão?

Vejamos:

No caso, não se tratou de diligência probatória ordenada oficiosamente pela Sra. Juiz, mas, sim, do deferimento de requerimento apresentado pelo Autor.

O requerimento foi apresentado na 2ª sessão da audiência final, isto é, fora dos articulados e depois de decorrido o prazo previsto para o aditamento ao rol de testemunhas, em violação do disposto no artigo 63º do CPT.

E era sobre o Autor que recaía o ónus de praticar o acto – indicação da testemunha – dentro do prazo legal.

Nada no despacho recorrido aponta no sentido de que o Tribunal a quo não estava ainda esclarecido das circunstâncias do caso e que, por isso, ao abrigo do princípio do inquisitório se lhe imponha a inquirição da testemunha. Aliás, o requerimento nem foi deferido ao abrigo do disposto no artigo 411º do CPC.

Acresce que, contrariamente ao que refere o Tribunal a quo, o requerimento apresentado pelo Ministério Público não é claro quanto às razões que levaram a que a testemunha em causa só fosse indicada na 2ª sessão da audiência de julgamento.

Com efeito, no requerimento em questão, para além de se referir que a testemunha “conhece os termos da execução do contrato de trabalho do autor, bem como a data em que este terminou”, apenas se refere que “posteriormente à apresentação do rol o Ministério Público teve conhecimento (…)”

E o Autor? Quando é que o Autor teve conhecimento que a referida testemunha tinha conhecimento dos termos do seu contrato? E porque motivo é que não a arrolou no articulado ou não a aditou ao rol de testemunhas?

Ou seja, face ao requerimento em questão, ignora-se, em absoluto, quando é que o Autor teve conhecimento da existência da testemunha e porque motivo não a arrolou anteriormente.

E a verdade é que, mesmo apelando ao princípio do inquisitório e da descoberta da verdade material, nem do requerimento do Autor, nem do despacho recorrido, que se limitou a deferir a pretensão do Autor, resultam os motivos legitimadores da audição da testemunha fora das circunstâncias previstas no artigo 63º do CPT; nenhum elemento se recolhe no sentido de que ao abrigo daqueles princípios era possível a audição da testemunha.

Consequentemente, é de concluir que a admissão da inquirição da testemunha viola o disposto no artigo 63º do CPC, bem como os princípios do inquisitório e da preclusão e autorresponsabilidade das partes.

Assim, deverá a apelação proceder, revogando-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que não admita a audição da testemunha."

*3. [Comentário] O problema que a RL deveria ter resolvido não era tanto o de saber se foram violados pela decisão recorrida os princípios do inquisitório, da preclusão, do contraditório e da igualdade, mas muito mais o de determinar se a audição da testemunha não indicada atempadamente pelo autor era necessária para a justa composição do litígio.

Assim, mais do que referir, quase en passant, que "nada no despacho recorrido aponta no sentido de que o Tribunal a quo não estava ainda esclarecido das circunstâncias do caso", teria sido indispensável que a RL tivesse apreciado se, no caso concreto, a audição da testemunha era necessária para o apuramento de um facto controvertido.

Até pode ser que a conclusão da RL viesse a ser exactamente a mesma a que chegou no acórdão em análise. Porém, salvo o devido respeito, teria sido necessária uma metodologia de decisão completamente diferente.

MTS