"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/05/2019

Jurisprudência 2019 (19)


Interpretação da sentença;
omissão de pronúncia


1. O sumário de STJ 23/1/2019 (4568/13.3TTLSB.L2.S1) é o seguinte:

I. O trabalhador deve receber na retribuição durante as ferias, quando esta integra comissões, um valor de comissões correspondente à média de um período de referência.

II. A retribuição durante as férias – e o mesmo se diga das comissões que a integrem – não se confunde, com a retribuição paga durante o período em que o trabalho está a ser prestado.

III. Os juros de mora de créditos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, são eles próprios créditos abrangidos pela norma especial do artigo 337.º, n.º 1 do Código do Trabalho.

IV. Para determinar se existe omissão de pronúncia há que interpretar a sentença na sua totalidade, articulando fundamentação e decisão.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Face a[o] teor da sentença [da 1.ª instância] a Autora veio invocar, designadamente, várias nulidades, e, mormente, uma nulidade por omissão de pronúncia. Com efeito, invocou que a sentença não se pronunciara expressamente sobre os pedidos da Autora de condenação da Ré nas diferenças de retribuição de férias e nos subsídios de férias e de Natal de 1989, 1990, 1991, 1992, 1993 e 1994 tal como pedido no artigo 103.º da petição inicial (alínea e) da alegação de nulidades).

Em resposta, o Acórdão recorrido decidiu que não existia omissão de pronúncia, já que o tribunal se teria pronunciado, ao menos implicitamente, sobre o peticionado. Teria havido, antes, a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código do Processo Civil, nulidade essa não arguida e de conhecimento não oficioso. E daí que para o tribunal sobre essa questão nada houvesse a dirimir (página 39 do Acórdão recorrido).

Afirma-se, a este propósito no Acórdão recorrido (p. 73): “Mas e quanto à omissão das diferenças da retribuição de férias e nos subsídios de férias e de Natal de 1989, 1990, 1991, 1992,1993 e 1994? Neste ponto, tal como acima se referiu, não se verifica a invocada nulidade [por omissão de pronúncia]; sendo certo, por outro lado, que não foi invocada a devida nulidade por falta de fundamentação em termos de direito, a qual não é de conhecimento “ex officio”. Resta-nos, pois, a supra mencionada absolvição, sendo que, por motivos evidentes, não se pode apreciar, em termos de censura uma fundamentação que, em rigor, não existe. Improcede, pois, o recurso neste particular” 

É contra este segmento da decisão que o recurso subordinado se insurge invocando erro de julgamento do Tribunal da Relação.

Ora, antes de mais, importa reconhecer que a fundamentação da sentença, como já se disse, expressamente toma posição sobre estas questões. Mas será que as decide verdadeiramente ou que a absolvição não se deve patentemente a um erro ou lapso material?

Ainda que a lei processual distinga a fundamentação e a decisão a sentença constitui um todo pelo que, como a nossa jurisprudência há muito tem afirmado, designadamente em situações em que importa aferir os limites da decisão para efeitos de caso julgado, é frequentemente necessário ler o dispositivo da decisão à luz dos seus fundamentos “para se determinar o verdadeiro alcance da decisão”[ Nesse sentido veja-se já o Acórdão do STJ de 11 de março de 1949, publicado no BMJ n.º 12 (Maio de 1949): “Embora, em regra, só o dispositivo da decisão constitua caso julgado, frequentemente há que relacioná-lo com os seus fundamentos, para se determinar o verdadeiro alcance da decisão”. E muito mais recentemente este Tribunal reiterou no Acórdão do STJ de 05/11/2009, processo n.º 4800/05.TBAMD-A.S1 (OLIVEIRA ROCHA), que “a interpretação da sentença exige (…) que se tome em consideração a fundamentação e a parte dispositiva, fatores básicos da sua estrutura.”].

É o que afirmou, recentemente, FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA:

“É da sentença no seu todo (que não apenas de uma parte dela) que hão-de extrair-se os verdadeiros sentido, conteúdo e objeto do julgado; importa, por isso, ponderar e sopesar devidamente os motivos, isto é, a parte justificativa (motivatória) da decisão, em ordem a surpreender nela uma qualquer restrição ou ampliação do dispositivo, ou mesmo a concluir que determinadas questões não foram objeto de resolução explícita ou sequer implícita (apesar da amplitude da redação da parte dispositiva) ou ainda, e ao invés, que foram consideradas e decididas questões não compreendidas na parte dispositiva. No fundo, tornar-se-á, amiúde, necessário recorrer ao arrazoado da sentença para captar o verdadeiro pensamento do julgador. Do que se trata é de reconstituir o itinerário valorativo e cogniscitivo seguido pelo julgador ao decidir como decidiu.”[FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 646 (itálicos no original).]
 
Em suma, e seguindo agora o ensinamento de ANTONIO NASI, a sentença é um todo, uma unidade incindível, em que “motivar (e motivar bem) constitui parte integrante de julgar”[ANTONIO NASI, Interpretazione della sentenza, Enciclopedia del Diritto, vol. XXII, Guiffrè Editore, Milano, 1972, pp. 293 e ss., p. 303.], pelo que não se pode isolar um segmento da sentença como sendo aquele que é exclusiva ou mesmo predominantemente preceptivo, sendo que a motivação se apresenta como “o prius lógico imprescindível para a compreensão do sentido preceptivo da sentença”[Aut. e ob. cit., p. 304.]. Pelo que a interpretação da mesma exige a compreensão do seu iter genético e a aceitação de uma visão articulada e dinâmica de todo o processo.

Aplicando estes ensinamentos à sentença de 1.ª instância pode concluir-se que, apreendida tal sentença como um todo ela verdadeiramente não decidiu a questão: apesar de na motivação se ter enunciado a questão e decidido em um certo sentido, tal decisão não foi depois levada ao segmento decisório; mas, e por outro lado, a decisão não tem, atendendo à fundamentação, o alcance que o seu teor literal sugere, de absolvição. Com efeito, também aqui não podemos quedar-nos pelo elemento literal do segmento decisório, havendo que atender na interpretação à motivação. Verificou-se, assim, um erro de julgamento do Tribunal da Relação quando este decidiu não se verificar uma nulidade por omissão de pronúncia. Deverão, pois, remeter-se os autos ao Tribunal da Relação para que este conheça da referida nulidade."

[MTS]