Pacto de jurisdição;
conhecimento de embarque
1. O sumário de RL 22/1/2019 (395/14.9TNLSB.L1-7) é o seguinte:
O pacto atributivo de jurisdição firmado entre expedidor e transportador, expresso em cláusula pré-elaborada aposta em conhecimento de embarque, não é oponível ao destinatário da mercadoria (e seguradora sub-rogada na posição deste) porquanto não se alega nem se demonstra que o mesmo foi comunicado ao destinatário e foi aceite por este, de forma clara e precisa, tanto mais que tal cláusula é acessória e eventual.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"No conhecimento de embarque junto aos autos (original em inglês a fls. 55 e tradução a fls. 254 v) consta como Expedidor: D., Limited, com sede na China, como Destinatário: J. e como Transportador: a 1ª Ré. No canto inferior esquerdo do referido documento consta pré-impresso o seguinte texto: «CLÁUSULA DE COMPETÊNCIA E LEGISLAÇÃO O contrato indicado ou contido neste Documento de Carga é governado pelas leis da República Popular da China e qualquer reclamação ou litígio resultante do mesmo ou com ele relacionado será exclusivamente decidido pelos tribunais da República Popular da China e nenhum outro Tribunal.»
A questão que se coloca é a de saber se este documento consubstancia um pacto atributivo de jurisdição vinculativo para a Autora. [...]
Nos termos do Artigo 94º do Código de Processo Civil,
«1 - As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.
2 - A designação convencional pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais portugueses, quando esta exista, presumindo-se que seja exclusiva em caso de dúvida.
3 - A eleição do foro só é válida quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;
b) Ser aceite pela lei do tribunal designado;
c) Ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra;
d) Não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
e) Resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.
4 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se reduzido a escrito o acordo constante de documento assinado pelas partes, ou o emergente de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de comunicação de que fique prova escrita, quer tais instrumentos contenham diretamente o acordo quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que ele esteja contido.»
Acerca da interpretação deste preceito e num caso muito similar, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3.5.2012, Aguiar Pereira, 43/09, nestes termos:
«(…) o contrato de transporte marítimo de mercadorias está documentado pelo conhecimento de embarque (Bill of Landing), em que fica a constar a declaração do carregador descrevendo as mercadorias que entregou e que devem, por sua vez, ser entregues ao destinatário.
No caso dos autos acresce ainda que também se fizeram constar as específicas condições as condições em que deveria ser efetuado o transporte e a cláusula adicional, naturalmente acordada entre o carregador e o transportador, no sentido da atribuição de jurisdição para o julgamento dos litígios decorrentes do transporte aos tribunais sediados em Marselha – França.
Para que não restem dúvidas, e em conclusão, a autora é parte no contrato de transporte cujo cumprimento defeituoso invoca e que está documentado no conhecimento de embarque.
E é assim a partir do momento em que a autora, na qualidade de destinatária da mercadoria e ainda que terceira em relação ao acordo inicial entre o carregador e o transportador, aderiu ao contrato e assumiu os direitos e obrigações inerentes à sua posição contratual.
De resto, como já se salientou a presente ação mais não é – pelo menos quanto à ré transportadora – do que a manifestação de direitos decorrentes do incumprimento do contrato por parte da ré.
3. Do que vem de ser dito não decorre, necessariamente, que seja oponível à autora a cláusula adicional inserida no conhecimento de embarque que titula o contrato de transporte e em que foi atribuída convencionalmente aos tribunais de Marselha – França, a jurisdição para julgar o presente litígio.
Como salienta Francisco Costeira da Rocha a páginas 239 da obra citada “uma coisa é a adesão do destinatário ao contrato de transporte, outra, bem diferente, é a da oponibilidade das cláusulas do contrato a esta parte assíncrona”.
No comércio internacional a utilização dos INCOTERMIS dispensa o conhecimento mais aprofundado das condições em que o negócio é celebrado, facilitando as cláusulas standard o conhecimento dos elementos essenciais do negócio celebrado entre o carregador e o destinatário.
Daí que a adesão ao contrato de transporte por parte da autora não implique a aceitação do pacto de jurisdição, que não é uma convenção típica ou normal do contrato de transporte.
Mais ainda. Tratando-se, como resulta da análise do próprio documento de fls. 12, de uma cláusula não negociada inserida num contrato pré-elaborado seria necessário para que ela vinculasse validamente a autora, no mínimo, que ela tivesse conhecimento do seu teor antes da data da adesão, de acordo com o regime geral das regras relativas às cláusulas contratuais gerais.
Nesse contexto, e em rigor, para que uma tal cláusula pudesse ser oposta ao destinatário do contrato de transporte, seria necessário a aceitação expressa do seu teor (no mesmo sentido Francisco Costeira da Costa, obra e local citado), o que não se verifica no caso dos autos. (…)
Como já atrás se disse, o artigo 99º nº 3 alínea e) do Código de Processo Civil faz depender a validade do pacto atributivo de jurisdição da existência de um “acordo escrito ou confirmado por escrito” em que se faça menção expressa da jurisdição competente.
Quando a norma mencionada utiliza o termo “acordo” está a referir-se a um encontro de vontades, que tem que ser reduzido a escrito e assinado por ambas as partes. Isso mesmo esclarece o artigo 99º nº 4 do Código de Processo Civil ao referir-se a “acordo constante de documento assinado pelas partes” ou que resulte da troca de correspondência de que fique prova escrita, quer nela se contenha diretamente o acordo quer se contenha apenas cláusula de remissão para documento em que ele esteja contido.
Do que não pode prescindir-se é de um acordo escrito e assumido pelas partes já que se torna “necessária a este respeito uma descrição clara e concisa sobre a verdadeira intenção dos contraentes e a inequívoca certeza de que ambas as partes tiveram a intenção de atribuir a jurisdição a um tribunal estrangeiro” (assim o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Fevereiro de 2004 in www.dgsi.pt) não sendo suficiente a inserção de uma cláusula adicional no conhecimento de embarque que titula o contrato de transporte a que a autora aderiu, mas não assinou, escrita com um tamanho de letra reduzido e sem qualquer tradução, a qual se não mostra ter sido aceite pela destinatária.
Não pode, pelo exposto, concordar-se com a afirmação contida na douta sentença impugnada de que “o pacto de jurisdição foi reduzido a escrito”.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.11.2015, Lopes do Rego, 602/13, não preenche o requisito da necessária bilateralidade do pacto a simples menção unilateral, feita por um dos contraentes em documento particular por ele emitido, de que o foro convencionado para resolução dos litígios emergentes de certa relação contratual é o de determinado país, cabendo ao juiz aferir se a cláusula atributiva de competência constituiu efetivamente objeto do consenso das partes, consenso que deve manifestar-se de forma clara e precisa. E, mais adiante: «(…) a aceitação (não devolução) da fatura unilateralmente emitida pela R. e o pagamento dos bens fornecidos não pode ter-se por comportamento concludente - que, com toda a probabilidade, revele a aceitação da cláusula de renúncia ao foro normalmente competente; como é evidente, são realidades bem diversas a aceitação das obrigações emergentes dos fornecimentos titulados por cada fatura enviada e a aceitação da proposta de pacto de jurisdição nela encapotadamente incluída – não havendo qualquer elemento que, em termos minimamente consistentes, permita concluir que tal cláusula foi efetivamente apreendida, no seu real significado, pela A. e por ela aceite – em termos de abranger a dirimição de todos os litígios, mesmo que respeitantes à relação fundamental existente entre as partes, de modo a poder ter-se por verificado o requisito estruturante da necessária bilateralidade dos pactos de jurisdição.»
Ora, no caso em apreço, a 1ª Ré limita-se a invocar o teor do documento (acima enunciado), acrescentando que «tratando-se este documento de um título negociável – por ser o original- a J. aceitou os termos aí expressos e contratados». OU seja, a excecionante não invocou uma conduta específica e autónoma do destinatário de aceitação, clara e precisa, do pacto atributivo de jurisdição, limitando-se a arrazoar com base na natureza do documento.
Tal cláusula mostra-se apenas acordada entre o expedidor e o transportador, sendo a J. alheia ao teor do mesmo, nada tendo sido especificamente alegado no sentido de que a destinatária subscreveu ou aderiu à mesma ou sequer que tenha sido informada previamente do seu teor.
Conforme refere Francisco Costeira da Rocha, O Contrato de Transporte de Mercadorias, Almedina, 2000, p. 239:
«Uma coisa é a adesão do destinatário ao contrato de transporte, outra, bem diferente, é a da oponibilidade das cláusulas do contrato a esta parte assíncrona.
Assim, por exemplo, a Cour de Cassation decidiu que não basta a existência de uma cláusula atributiva de competência no clausulado de um contrato de transporte para que a mesma possa ser oposta ao destinatário, torna-se ainda necessário que a parte a aceite expressamente.
A este propósito, impõe-se uma análise de cada situação em concreto, para aferir do conhecimento pelo destinatário da proposta contratual que lhe é dirigida e da sua respetiva adesão. (…)
Importa que o destinatário não seja confrontado com “cláusulas surpresa”, devendo, por isso, ser dado cumprimento aos pertinentes princípios básicos de direito privado. Caídos que estamos no campo das cláusulas contratuais gerais, há que obedecer ao respetivo regime e, designadamente, respeitar o princípio da boa fé objetiva, que aqui encontra uma área privilegiada de atuação.»
A aposição deste tipo de cláusula em conhecimentos de embarque é acidental, e não essencial, sendo que o que é corrente é a prática de submeter os litígios emergentes do transporte marítimo ao foro da sede do transportador (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8.10.2009, Granja da Fonseca, 47/08 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.5.98, Ferreira Mesquita, 676/98, www.colectaneadejurisprudencia.com ) e não – como no caso – ao foro do expedidor.
É certo que o conhecimento de carga assume uma função tridimensional: serve de recibo de entrega ao transportador de uma certa e determinada mercadoria nele descrita, prova o contrato de transporte firmado entre carregador e transportador e as condições do mesmo, representa a mercadoria nele descrita sendo negociável e transmissível de acordo com o regime geral dos títulos de crédito (Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial, 1996, p. 53). Todavia, estas características substantivas e intrínsecas do conhecimento de carga não se projetam em declaração (ficta) de aceitação, mesmo tácita, do destinatário no que tange a um pacto atributivo de jurisdição, tanto mais que tal cláusula é meramente acessória e eventual.
Por todo o exposto, infere-se que nada há a alterar à decisão impugnada, sendo o pacto de jurisdição inoponível à ora Autora, sub-rogada na posição da destinatária."
[MTS]