"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/05/2019

Jurisprudência 2019 (28)


Competência material;
excepção de caso julgado

1. O sumário de STJ 30/4/2019 (100/18.0T8MLG-A.G1.S1) é o seguinte:

I A competência do Tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos em que o autor estruturou o pedido e a causa de pedir.

II Dispõe o artigo 126º da Lei 62/2013, de 26 de Agostos (LOFT), no que respeita à competência cível dos tribunais de trabalho: «1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: (…) c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;».

III O exercício do direito de regresso por parte de uma seguradora – a Autora aqui Recorrida - contra uma entidade patronal – a Ré aqui Recorrrente-, por haver satisfeito uma indemnização a um trabalhador desta, vitima de um acidente de trabalho, no âmbito das obrigações existentes entre ambas em sede de contrato de seguro de acidentes de trabalho, na medida em que lhe imputa o incumprimento das normas de segurança no trabalho, com a violação de normas imperativas destinadas à protecção e segurança dos trabalhadores, não visa discutir uma situação autonomizada – o direito de crédito da Recorrida accionado em sede de regresso
, mas antes a factualidade consubstanciadora que conduziu a esse direito, isto é, o acidente de trabalho.

IV Nos termos do artigo 40º, da LOFT, os Tribunais juidiciais têm uma competência residual, apenas intervindo quando as causas não estejam atribuídas a outra ordem jurisdicional e a situação dos autos está expressamente afecta à jurisdição laboral, ex vi do artigo 126º, nº1, alínea c) do mesmo diploma, tendo em atenção o pedido e a causa de pedir.

V Seria uma incongruência concluir-se que o Tribunal de Trabalho era o competente para se aferir da responsabilidade da entidade seguradora nesta sede, por via da transferência das responsabilidades através da celebração obrigatória do contrato de seguro havido com a entidade patronal em sede de acidentes de trabalho, e, já não o seria, para averiguar, afinal das contas, se teria ou não ocorrido uma efectiva responsabilidade funcional desta na ocorrência do sinistro, por forma a desonerar aquela das obrigações assumidas, porquanto o que está em causa, a jusante e a montante, é o acidente de trabalho e as circunstâncias em que o mesmo se verificou.

VI Consagra-se, assim, o princípio da absorção das competências, o que equivale a dizer que tendo os Tribunais de trabalho a competência exclusiva para a apreciação das problemáticas decorrentes dos acidentes de trabalho, a eles competirá,
mutatis mutandis, igualmente, o conhecimento de todas as questões cíveis relacionadas com aqueles que prestem apoio ou reparação aos respectivos sinistrados, já que, o cerne da discussão se concentra na ocorrência do sinistro e eventual violação por banda da entidade empregadora das regras de segurança.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Pretende a Ré/Recorrente, a sua absolvição da instância porquanto, na sua tese, face ao acordo celebrado nos autos de conciliação no Tribunal de Trabalho, homologado por decisão judicial, não pode vir agora a seguradora reclamar reembolso de pagamentos, alegando existir culpa desta, em contrário do que acordou por aquela decisão ter transitada em julgado, sob pena de violação da força e autoridade do caso julgado.

Falece a razão à Recorrente, neste conspecto e nesta precisa sede processual.

Queremos nós dizer:

No entendimento que expusemos de o Tribunal judicial não ser o competente, mas antes o Tribunal de Trabalho, de harmonia com o disposto no artigo 126º, nº1, alínea c) da LOFT, será este, e apenas este Órgão jurisdicional, o competente para aferir da existência e operância da excepção invocada pela aqui Recorrente, na sua dupla vertente, de excepção de caso julgado ou de excepção de autoridade do caso julgado.

É que, sendo esta ordem judicial incompetente em razão da matéria para conhecer da matéria controvertida posta à consideração do Tribunal, ficam prejudicadas todas as demais questões que se suscitem, ou possam vir a suscitar, no âmbito da acção.

Assim sendo, será naqueloutro Tribunal, o de Trabalho, na acção própria para a concretização do direito aqui invocado, que poderão ser conhecidas as questões, mormente as excepções preclusivas do mesmo."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a orientação defendida quanto à inadmissibilidade do conhecimento da excepção de caso julgado por um tribunal materialmente incompetente, ou seja, por um tribunal que não tem competência material para se pronunciar sobre a matéria apreciada na decisão transitada em julgado.

Os efeitos do caso julgado não se restringem aos tribunais com a mesma competência material do tribunal que proferiu a decisão transitada em julgado. Pode dizer-se até mais: esses efeitos não se restringem à ordem do tribunal a que pertence o tribunal que proferiu a decisão, dado que é perfeitamente possível que uma decisão transitada de um tribunal administrativo produza efeitos num tribunal judicial, e vice-versa.

Basta atentar no disposto no art. 92.º, n.º 1, CPC: o conhecimento do objecto de uma acção pendente num tribunal judicial pode aguardar o proferimento de uma decisão prejudicial por um tribunal criminal ou administrativo. Isto só é pensável se a decisão que venha a ser proferida pelo tribunal criminal ou administrativo produzir o efeito de autoridade de caso julgado (e não, como se refere no acórdão, de "excepção de autoridade de caso julgado") no tribunal judicial.

O que vale para a autoridade de caso julgado vale necessariamente para a excepção de caso julgado. Também esta excepção produz um efeito vinculativo para o tribunal que conhece dela, dado que este tribunal não pode nem contradizer, nem reproduzir a decisão transitada (art. 580.º, n.º 2, CPC). É, aliás, por isso que esse tribunal, não podendo nem afastar-se, nem repetir a decisão transitada, só pode não conhecer do mérito e absolver o réu da instância com base na excepção de caso julgado.

É precisamente este aspecto que justifica que seja admissível a pronúncia de um tribunal materialmente incompetente sobre a excepção de caso julgado decorrente de uma decisão de um outro tribunal. Dado que afinal esse tribunal não conhece do mérito da causa, nada impede que esse tribunal se limite a verificar e a decidir que o que lhe é solicitado já foi apreciado por um outro tribunal numa outra acção.

Suponha-se que entre as partes decorreu, primeiro, uma acção num tribunal administrativo e, depois, é proposta uma acção num tribunal judicial; nesta acção, o réu invoca que, em relação a um dos pedidos formulados pelo autor, se verifica a excepção de caso julgado, dado que a matéria foi decidida pelo tribunal administrativo; na óptica do acórdão, o tribunal judicial desta segunda acção não pode conhecer dessa excepção de caso julgado. Cabe então perguntar, o que, nessa mesma óptica, o tribunal da acção deve fazer. Remeter as partes para a jurisdição administrativa para que esta analise se, no segundo processo, ocorre a excepção de caso julgado?

Pode ainda acrescentar-se que, a seguir-se a orientação propugnada no acórdão, um tribunal judicial não poderia analisar se, numa causa nele pendente, ocorre a excepção de caso julgado com base numa decisão arbitral. Ora, essa análise pode ser absolutamente necessária e completamente justificada. Admita-se, por exemplo, que, depois de uma causa ter sido apreciada (quanto ao mérito) num tribunal arbitral, é proposta, entre as mesmas partes, uma acção num tribunal judicial; se o réu invocar que o que o autor agora pede já foi apreciado pelo tribunal arbitral, é claro que o tribunal judicial tem de verificar se ocorre (ou não) a excepção de caso julgado.

O interessante é que, caso o tribunal judicial venha a concluir que ocorre a excepção de caso julgado, esse tribunal verifica ao mesmo tempo que não tem competência para apreciar a questão decidida no tribunal arbitral, dado que a apreciação dessa questão foi atribuída, por convenção de arbitragem, ao tribunal arbitral. Ainda assim, o tribunal judicial não pode deixar de apreciar a excepção de caso julgado, até para saber se perante ele foi suscitada alguma questão não decidida pelo tribunal arbitral e não abrangida pela convenção de arbitragem.

b) Em conclusão: o STJ podia (e devia) ter conhecido da excepção de caso julgado (que, segundo parece, se verifica mesmo), em vez de ter remetido as partes para um novo processo (e de ter imposto ao réu um novo processo) a correr nos tribunais de trabalho.

MTS