"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/09/2019

Legislação (174)


Brexit

-- DL 147/2019, de 30/9: Aprova medidas de contingência a aplicar na eventualidade de uma saída do Reino Unido da União Europeia sem acordo


 
 

Jurisprudência 2019 (86)


TJ; reenvio prejudicial

1. O sumário de STJ 9/4/2019 (2926/16.0T8BRG.G1.S2) é o seguinte: 

I - De acordo com o art. 267.º do TFUE, qualquer tribunal nacional que, na sua qualidade de aplicador comum do direito europeu, tenha dúvidas quanto à interpretação deste a um determinado caso concreto dispõe da faculdade de colocar ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) a correspondente questão a resolver. Se se tratar de um tribunal nacional que decida em última instância, como é o caso do STJ, aquela faculdade converte-se em obrigação.

II - No caso, não se suscitam quaisquer dúvidas a interpretação das normas em causa – arts. 10.º e 11.º da Directiva 93/22/CEE, de 10 de Maio de 1993 –, não havendo, assim, razão para reenvio prejudicial.

III - A actividade de intermediário financeiro é norteada por elementares deveres de informação a que aludem os arts. 7.º, n.º 1, e 312.º, n.º 1, ambos do CVM. Contudo, e no caso em apreço, não ficou demonstrado qualquer comportamento positivo ou negativo que possa ser considerado violação relevante de normas legais e regulamentares que na altura estavam estabelecidas, o que era ónus da autora demonstrar (art. 342.º, n.º 1 do CC).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nas conclusões CX. a CXVII., a recorrente defende que as alterações produzidas na matéria de facto (que, como se disse, ela própria suscitou na apelação), implicam uma situação de conflito de interesses à luz da norma do artigo 11º da Directiva 93/22/CEE, de 10 de Maio de 1993. E acrescenta que a decisão recorrida viola essa norma, ao não considerar que a relação de domínio total entre a emitente dos títulos e o Banco recorrido (intermediário financeiro que vende esses títulos ao seu cliente) consubstancia esse conflito de interesses.

Nessa medida, sustenta que deveria ser suscitado, porque obrigatório, o reenvio dessa questão prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

Vejamos o que dispõem os artigos 10º e 11º da referida Directiva, relativa aos serviços de investimento no domínio dos valores mobiliários:

Artigo 10º

O Estado-membro de origem estabelecerá regras prudenciais que devem ser observadas de forma contínua pela empresa de investimento. Essas regras exigirão, nomeadamente, que a empresa de investimento:

- possua uma boa organização administrativa e contabilística, mecanismos de controlo e segurança no domínio informático, bem como processos de controlo interno adequados, incluindo, nomeadamente, um regime das operações pessoais dos assalariados da empresa,

- tome disposições adequadas em relação aos valores pertencentes aos investidores, por forma a salvaguardar os direitos de propriedade destes, nomeadamente em caso de insolvabilidade da empresa, e a evitar que a empresa de investimento utilize os valores dos investidores por conta própria sem o consentimento explícito destes últimos,

- tome disposições adequadas em relação aos fundos pertencentes aos investidores, por forma a salvaguardar os direitos destes e a evitar, excepto no caso das instituições de crédito, que a empresa de investimento utilize por conta própria os fundos dos investidores,

- assegure que o registo das operações efectuadas seja pelo menos suficiente para permitir às autoridades do Estado-membro de origem verificar o cumprimento das regras prudenciais por cuja aplicação são responsáveis; esses registos devem ser conservados por um período a determinar pelas autoridades competentes,

- esteja estruturada e organizada de modo a reduzir ao mínimo o risco de os interesses dos clientes serem lesados por conflitos de interesses entre a empresa e os seus clientes ou entre os próprios clientes. No entanto, caso seja criada uma sucursal, as respectivas regras de organização não poderão estar em contradição com as normas de conduta estabelecidas pelo Estado-membro de acolhimento em matéria de conflitos de interesses.

Artigo 11º

1. Os Estados-membros estabelecerão normas de conduta que as empresas de investimento serão obrigadas a cumprir em qualquer momento. Essas normas devem traduzir pelo menos os princípios enunciados nos travessões do presente número e devem ser aplicadas tendo em consideração a condição profissional da pessoa a quem é prestado o serviço. Os Estados-membros aplicarão igualmente essas normas, sempre que o julgarem conveniente, aos serviços auxiliares referidos na secção C do anexo. Estes princípios obrigarão a empresa de investimento a:

- no exercício da sua actividade, actuar com lealdade e equidade na defesa dos interesses dos seus clientes e da integridade do mercado,

- actuar com a competência, o cuidado e a diligência que se impõem, no interesse dos seus clientes e da integridade do mercado,

- possuir e utilizar eficazmente os recursos e os processos necessários para levar a bom termo as suas actividades,

- informar-se sobre a situação financeira dos seus clientes, a sua experiência em matéria de investimentos e os seus objectivos em relação aos serviços pedidos,

- comunicar de modo apropriado as informações úteis no âmbito das negociações com os seus clientes,

- esforçar-se por suprimir os conflitos de interesses e, quando estes não possam ser evitados, assegurar que os clientes sejam tratados equitativamente,

- cumprir todas as regulamentações aplicáveis ao exercício das suas actividades, de modo a promover o melhor possível os interesses dos seus clientes e a integridade do mercado.
 
2. Sem prejuízo das decisões a tomar no âmbito de uma harmonização das normas de conduta, a aplicação e o controlo da sua observância continuam a ser da compe­tência do Estado-membro em que é prestado o serviço.
 
3. Sempre que uma empresa de investimento executar uma ordem, o critério da condição profissional do investidor, para efeitos da aplicação das normas referidas no n.º 1, será apreciado em relação ao investidor que está na origem da ordem, quer esta tenha sido colocada directamente pelo próprio investidor ou indirectamente por intermédio de uma empresa de investimento que preste o serviço referido no ponto 1. a) da secção A do anexo.
 

Esta Directiva viria a ser revogada (substituída) pela Directiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21.04.2004 [...], mas apenas com efeitos a partir de 01.11.2007 (cfr. artigo 69º), o que significa que, à data dos factos dos presentes autos (Outubro de 2004), ainda vigorava.

De acordo com o artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), qualquer tribunal nacional que, na sua qualidade de aplicador comum do direito europeu, tenha dúvidas quanto à interpretação deste a um determinado caso concreto dispõe da faculdade de colocar ao Tribunal de Justiça da União Europeia a correspondente questão antes de resolver o caso. Se se tratar de um tribunal nacional que decida em última instância, como é o caso do STJ, aquela faculdade converte-se em obrigação. É nisto que se traduz o reenvio prejudicial.

Ora, a verdade é que não se suscitam quaisquer dúvidas na interpretação das normas em causa e muito menos se compreende a relevância que pode ter para os interesses da Autora a relação de domínio de grupo e domínio total do emitente dos títulos sobre o intermediário financeiro, geradora de potencial conflito de interesses [...], quando o que importa, ao cabo e ao resto, é averiguar se este cumpriu as regras prudenciais e de conduta a que estava (e está) obrigado e que encontram reflexo, na ordem jurídica interna, nas disposições dos artigos 7º e 304º e seguintes, entre outras, do Código dos Valores Mobiliários.

Não se vê, por conseguinte, razão para reenvio prejudicial."

[MTS]


27/09/2019

Jurisprudência 2019 (85)

 
PER; sentença homologatória;
título executivo
 
1. O sumário de STJ 9/4/2019 (154/17.7T8ALD.C1.S2) é o seguinte:
 
 [...] A sentença homologatória do plano especial de revitalização (PER) não constitui título executivo, não existindo fundamento para a aplicação analógica da norma do art. 233.º, n.º 1, al. c), do CIRE, porquanto as diferenças entre o regime do plano de pagamentos em insolvência e o do plano de recuperação em PER são flagrantes.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A fundamentação do acórdão recorrido é, em parte, a seguinte: "(…)

A recorrente assenta o seu inconformismo em dois argumentos nucleares, a saber:

A aplicação analógica ao PER do artº 233º nº 1 al. c) do CIRE que tem como título executivo as sentenças homologatórias do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos em insolvência.

O entendimento de que para que uma sentença possa servir de base à acção executiva basta que ateste a existência de uma obrigação.

Quanto a este argumento já se viu, maxime em função da nova redacção do anterior artº 4º nº3 do CPC ora constante no artº 10º nº4 do NCPC, que o título não tem apenas de certificar a existência da obrigação, mas, ademais, que esta está acertada na esfera jurídica do exequente e lhe é devida.

Quanto àquele corroboramos o entendimento vertido no Aresto citado na decisão.

Como decorre do preceituado no artº 10º nº2 do CC, a aplicação do direito por analogia apenas é permitida quando «…no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei».

Tal conditio sine qua non não se encontra aqui presente.

Certo é que aquele segmento normativo do CIRE estatui que:

«Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência»

Porém, como bem se expende em tal acórdão:

«Verifica-se…uma diferença entre o regime específico do processo especial de revitalização e o processo de insolvência que impede a aplicação analógica do art. 233.º, n.º 1, al. c) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas à sentença homologatória do plano aprovado do processo de revitalização (no qual) falta de uma fase ou processo próprio de verificação de créditos destinados ao seu reconhecimento com caráter definitivo…

Na verdade:

«…a lista definitiva de créditos reconhecidos no âmbito do processo especial de revitalização não visa a determinação da existência e configuração do direito do credor, mas tão só legitimar a intervenção do credor no processo e permitir a formação do quorum deliberativo. Não reveste por isso a natureza e a força própria de uma sentença de verificação de créditos (pelo que) … não se pode considerar que a lista de créditos reconhecidos no processo de revitalização contenha a declaração de acertamento que, como vimos, dispensa o recurso ao processo declarativo…

Ademais:

«…o incumprimento do plano implica automaticamente a extinção dos efeitos quanto à moratória e ao perdão, tal significa a repristinação do crédito nas condições originais ou primitivas, anteriormente ao plano, afectando necessariamente a obrigação constante do acordo. E significa, por outro lado, que o acordo plasmado no plano não traduz efeito novatório.

…se a sentença homologa um acordo, cuja obrigação (modificada) cessa por força do incumprimento, já se vê que não pode servir de título executivo tendo por base um acordo extinto.
…as consequências do incumprimento do plano de recuperação judicialmente homologado não passarão, em tese, forçosamente pelo modelo tradicional da execução das decisões judiciais e menos ainda pela apreciação incidental naquele tipo de processo especial, entretanto já findo”, mas antes pela declaração de insolvência do devedor ou na exigência do pagamento do primitivo crédito que já se mostre judicialmente reconhecido.»

As citações foram longas, mas valeram a pena, pois que, em função delas, adicionais argumentos, por redundantes, se mostram desnecessários.

Não há dúvida que em sede insolvencial, certas decisões podem constituir títulos executivos – cfr, para além da prevista no segmento do artº 233º, vg., a sentença de qualificação da insolvência – cfr. Ac. da RC de 27.04.2017, p.1288/15.8T8CBR.1.C1.

Mas, como se viu, em sede de PER, tendencialmente e, no concreto caso que nos ocupa, e em função do supra citado, claramente, inexistem fundamentos que possam, à míngua de estatuição legal nesse sentido, impor, ou, sequer, permitir, a qualificação como título executivo da sentença em causa, por aplicação analógica do que o citado artº 233º permite para a sentença homologatória do plano de pagamentos ou a sentença de verificação de créditos.

Pois que naquela, versus o que se verifica nesta, os créditos são apenas admitidos para os estritos efeitos e finalidades do PER e não são formalmente reconhecidos e atribuídos ao alegado credor.

Improcede, brevitatis causa, o recurso".

Crê-se que se decidiu bem.

Não foi posto em causa nos autos que a sentença homologatória – em que o juiz se limita a verificar a validade da confissão, desistência ou transacção celebrada entre as partes – constitua uma sentença condenatória (cfr. art. 290º, nº 3, do CPC) e, como tal, possa servir de título executivo (art. 703º, nº 1, al. a) do mesmo diploma legal).

Ponto é que, como se exige de qualquer título executivo, contenha o acertamento do direito que se pretende executar.

No caso, discute-se se a sentença homologatória de um plano de recuperação aprovado em PER, incumprido (em relação a um dos credores), satisfaz essa exigência.

A disciplina do PER nada previa para a situação de incumprimento do plano de recuperação aí aprovado e homologado.

Tem vindo a preconizar-se, porém, como se entendeu no acórdão recorrido, que deve ser aplicado a esse incumprimento, analogicamente, o regime previsto no art. 218º, nº 1, do CIRE [Neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 482 e 483; Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, 98; Nuno F. Lousa, O incumprimento do plano de recuperação e os direitos do credor, em I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, (coord. de Catarina Serra), 134 e segs; Acórdãos da Relação de Guimarães de 21.01.2016 (Proc. 1963/14), da Relação de Coimbra de 12.07.2017 (Proc. 3528/15) e da Relação do Porto de 19.03.2018 (Proc. 121/14), aqui invocado como acórdão fundamento, todos, como os demais adiante citados, em www.dgsi.pt].

Com efeito, é inegável que existem entre o plano de insolvência e o plano de recuperação "flagrantes afinidades", existindo uma "predisposição natural" para aplicar analogicamente a este as disposições daquele plano. Acresce que essa norma está "em plena harmonia com a natureza e fins do PER", contendo "solução adequada à realização dos interesses em presença" [Catarina Serra, Ibidem].

Foi essa, aliás, a solução que veio a ser consagrada no art. 17º-F, nº 12, do CIRE, após as alterações introduzidas pelo DL 79/2017, de 30/6.

Dispõe o art. 218º, nº 1, al. a), do CIRE que, salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor.

Por força desta disposição, ficam sem efeito a moratória e o perdão contemplados no plano homologado, ocorrendo uma repristinação dos créditos originais.

Mas assim, como parece evidente, por força da aplicação dessa norma ao PER, o que poderia ser executado seriam esses créditos, tal como existiam antes do plano, e não nas condições – com o perdão e moratória – estabelecidas no plano homologado que, nesse âmbito, ficou sem efeito.

Ou seja, não estaria a ser executada a sentença homologatória.

Por outro lado, no que toca a esses créditos, originais, não existe no PER decisão judicial a reconhecê-los e a certificá-los.

A este respeito, importa sublinhar que a lista de créditos tem no PER um alcance diverso do da insolvência, visando apenas "determinar quem pode participar nas negociações, as maiorias de aprovação e quem pode votar" [L. M. Pestana de Vasconcelos, Recuperação de Empresas: o Processo Especial de Revitalização, 56].

Como se refere no Acórdão do STJ de 01.07.2014 (Proc. 2852/13), o processo previsto no art. 17º-D do CIRE para a reclamação de créditos e organização da lista definitiva de credores, a fim de participarem nas negociações e votação do plano de recuperação, tem uma tramitação assaz simplificada, que não tem o contraditório indispensável a que o tribunal possa decidir com força de caso julgado relativamente a todos os credores eventualmente lesados (…).

Com efeito, mesmo que haja lista definitiva de créditos, não tendo o credor de crédito aí incluído de o reclamar novamente no processo de insolvência subsequente (cfr. art. 17º-G, nº 7, do CIRE), "tal não significa, por um lado, que um credor que tenha reclamado o seu crédito, sem que ele tenha sido reconhecido, esteja impedido de o reclamar no processo insolvencial ou, por outro lado, que aquele que já tenha o crédito reconhecido, nestes termos, no PER, esteja impedido de o fazer, ou, ainda, que esse crédito não esteja sujeito, nos termos gerais, a ser impugnado no processo insolvencial" [L. M. Pestana de Vasconcelos, Ob. Cit., 57; no mesmo sentido, Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização, 44 e 45].

Ou seja, como já se afirmou, "a lista só é definitiva nos termos e para os efeitos do processo de revitalização"[Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 2ª ed., 159]; não integra "um acto formal de reconhecimento do crédito" [Maria do Rosário Epifânio, Ob. Cit., 52].

Assim, considerando o sentido a alcance acima referidos, não tendo o PER por finalidade dirimir litígios sobre os créditos, a lista definitiva, bem como a eventual decisão sobre a reclamação de créditos não constituem caso julgado fora do PER [ Neste sentido, N. Salazar Casanova e D. Sequeira Dinis, PER-O Processo Especial de Revitalização, 79; também Fátima Reis Silva, Ob. Cit, 45].

Daí decorre, parece-nos, que não existe fundamento para a aplicação analógica da norma do art. 233º, nº 1, al. c), do CIRE ao plano de recuperação homologado em PER.

Como aí se dispõe, encerrado o processo, os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as que constem do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do nº 1 do artigo 242º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for caso disso, com a sentença homologatória do plano de insolvência.

As diferenças entre o regime do plano de pagamentos em insolvência e o do plano de recuperação em PER são flagrantes, desde logo quer em termos de "reconhecimento" de créditos (cfr. art. 256º do CIRE), quer de abrangência de créditos pelo plano (cfr. art. 257º, nº 3).

Não há fundamento, pois, tendo em consideração a sentença homologatória do plano de pagamentos, para a aplicação analógica da referida norma à sentença homologatória do plano de recuperação em PER (art. 10º, nº 2, do CC).

Pode dizer-se que não há, entre essas situações, semelhança que justifique ou exija a mesma estatuição [Oliveira Ascensão, O Direito, 13ª ed., 447].

Mas a idêntica conclusão se chega tendo em conta a sentença de verificação de créditos e a sentença homologatória do plano de insolvência que se admite no aludido normativo poderem constituir também título executivo.

Como é sugerido pelo teor da norma, o título executivo será, em primeira linha, constituído pela sentença de verificação de créditos; a sentença homologatória do plano de insolvência tem uma função complementar, de demonstrar e certificar as modificações introduzidas no plano aos créditos reconhecidos.

Todavia, no caso de incumprimento do plano, com os efeitos previstos no já citado art. 218º, nº 1, al. a), a sentença homologatória do plano de insolvência poderá não servir, por si, de base à execução, pelas razões acima referidas – terem ficado sem efeito as condições estabelecidas no plano.

Subsiste, porém, na insolvência, o reconhecimento dos créditos estabelecido na sentença de verificação, que constitui título executivo, o que não tem paralelo no caso do processo de revitalização, como se salientou supra, em que não há um procedimento próprio de verificação de créditos destinado ao seu reconhecimento com carácter definitivo.

Conclui-se, por isso, que a sentença homologatória do plano de recuperação aprovado em PER não constitui título executivo."
 
[MTS]
 

26/09/2019

O (novo) n.º 7 do artigo 26.º do RCP

1. A Lei n.º 27/2019, de 28 de março, aditou ao artigo 26.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP) o n.º 7, com a seguinte redação:

"Se a parte vencedora gozar do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, as custas de parte pagas pelo vencido revertem a favor do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P.."

Tendo em conta que os encargos e a compensação ao patrono nomeado são inscritos na conta final de acordo com a regra de custas fixada pelo juiz (cf. artigos 16.º, alínea a), subalíneas i) e ii), e 30º, n.º 3, alínea c), do RCP, artigo 36.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigo 8º, n.º 1, da Portaria 10/2008, de 3 de janeiro) e considerando ainda que os encargos cujo pagamento o IGFEJ, I.P. tenha adiantado nos termos do artigo 20.º, n.º 2, do RCP também entram na regra de custas a final, embora sem ser através do mecanismo das custas de parte, o único sentido útil do novo n.º 7 do artigo 26.º do RCP é estabelecer que o IGFEJ, I.P. passa a ter direito, quando a parte vencedora litiga com apoio judiciário, a exigir à parte vencida (que não beneficia de apoio judiciário) o valor ficcionado que a parte vencedora pagaria a título de taxa de justiça se não fosse a concessão do apoio judiciário.

2. Esta taxa e justiça ficta (que não foi suportada pela parte vencedora, dado que a mesma beneficia de apoio judiciário) não se encontra prevista na lei (v., no mesmo sentido, o Cons. Salvador da Costa, no paper publicado no Blog do IPPC, em 16.04.2019, pág. 4, acessível em https://blogippc.blogspot.com/…/alteracao-do-regime-das-cus…).

Isto significa que não pode ser exigida à parte vencida, no âmbito do mecanismo das custas de parte previsto no n.º 7 do artigo 26.º do RCP, o valor (total ou parcial) da suposta taxa de justiça, de acordo com a regra de custas a final, que a parte vencedora teria pago não fosse o apoio judiciário de que beneficia.

Para aquele valor poder ser exigido à parte vencida (que litiga com a parte vencedora que beneficia de apoio judiciário) teria de haver uma lei que criasse ou habilitasse a criação dessa taxa ficta, dado que é da reserva relativa de competência da Assembleia da República a criação de taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas (cf. art. 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição).

3. É, pois, admissível a reclamação pela parte vencida contra a exigibilidade pela secretaria do pagamento da taxa de justiça que a parte vencedora teria pago não fosse o apoio judiciário de que beneficia, com fundamento na inconstitucionalidade orgânica.
J. H. Delgado de Carvalho


Jurisprudência 2019 (84)


Direito à prova;
impossibilidade culposa; inversão do ónus da prova*


I. O sumário de STJ 9/4/2019 (4759/07.6TBGMR-A.G1.S1) é o seguinte:

1. A apreciação do modo como as instâncias qualificaram a actuação de uma das partes no contexto da inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil insere-se no âmbito do recurso de revista.

2. Porém, não se inclui nesse âmbito a apreciação da alteração baseada na livre apreciação da prova.

3. A inversão do ónus da prova, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, como sanção civil que é à violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, exige uma actuação culposa da parte que tenha tornado impossível ou particularmente difícil a produção de prova pela contraparte dos factos que lhe competiam.

4. Opera a inversão do ónus da prova a conduta do oponente que, por meio de alteração voluntária da escrita, tornou impossível a obtenção de um resultado pericial conclusivo, quanto à autoria das assinaturas apostas nos títulos executivos, quando a perita que subscreveu o relatório acabou por assegurar, em julgamento, essa autoria.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O art.º 674.º, n.º 1, do CPC [...] prevê como fundamento da revista, na al. a) “a violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável”, acrescentando no n.º 2 que, para estes efeitos, “consideram-se como lei substantiva, as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum e as disposições genéricas, de carácter substantivo, emanadas dos órgãos de soberania, nacionais ou estrangeiros, ou constantes de convenções ou tratados internacionais”; e, na al. b), “[a] violação ou errada aplicação da lei de processo”.

Estipula, ainda, no n.º 3, que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

O executado/oponente invocou que o acórdão recorrido incorreu em erro na apreciação das provas ao alterar o facto não provado para provado, tal como consta do n.º 9 da fundamentação de facto, com base na inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, e no que foi afirmado pela Ex.ma Perita, quando a recorrente apresentou versão diversa da que havia apresentado na contestação da oposição.

Parece, assim, querer fundamentar a revista na violação do citado art.º 344.º, n.º 2.

A questão da inversão do ónus da prova prevista nesta norma inscreve-se nos limites da revista, pois, não obstante não estar em causa qualquer “erro de apreciação das provas”, «… tal como é viável a interferência do Supremo Tribunal de Justiça na matéria de facto cuja fixação esteja associada a alguma ofensa a disposição expressa de lei que exija determinado meio de prova ou que fixe a força probatória de algum meio, também deve admitir-se que, no âmbito do recurso de revista, possa ser sindicado pelo Supremo o modo como as instâncias interpretaram e aplicaram uma norma de direito probatório material, como a do art. 344º, n.º 2, do CC, na medida em que (…) tal se possa traduzir na modificação do juízo probatório subjacente à decisão da matéria de facto provada e não provada» [
Cfr. Acórdão do STJ, de 12.05.2016, processo n.º  85/14.2T8PVZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt]. 

Mas vejamos se, apesar desta admissibilidade, em abstracto, da questão, o seu mérito deve ser reconhecido.

O art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil dispõe:

“Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”

Daqui resulta que a inversão do ónus da prova prevista nesta norma está dependente da verificação dos seguintes pressupostos:

- a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer;


- que tal comportamento lhe seja imputável a título de culpa.

Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [
In Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, pág. 222], verifica-se o condicionalismo do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, quando a conduta do recusante “impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs: art. 313-1 CC; art. 364 do CC), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos…”.

A inversão do ónus da prova surge, assim, como uma sanção civil à violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, consagrado no art.º 417.º, n.º 1, do CPC, que constitui, enquanto radicado nas próprias partes, uma emanação do princípio geral da cooperação consagrado no art.º 7.º, n.º 1 do mesmo Código, “quando essa falta de cooperação vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte podia e devia agir de outro modo” [Cfr. Acórdão do STJ de 12/4/2018, processo n.º 744/12.4TVPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.] (art.ºs 344.º, n.º 2 do C. Civil e 417.º, n.º 2 do CPC).

Bem se compreende a razão de ser desta sanção de ordem probatória, pois que, como refere Vaz Serra [
In “Provas (direito probatório material), BMJ, n.º 110, pág. 160], «não é justo que fique exposto às consequências da falta de prova o onerado que não pode produzi-la devido a culpa da outra parte».

Isto não significa, porém, que tal circunstancialismo importe, só por si, que o facto controvertido se tenha por verdadeiro ou por provado, pois, como adverte o acórdão deste Supremo, proferido no processo n.º 994/06.2TBVFR.P1.S1 [...], se assim fosse, estaríamos perante um meio de prova com força probatória plena, o que não é o caso.

Tal recusa significa, somente, que passou a caber à parte recusante a prova da falta da realidade desse facto, não estando, por isso, as instâncias dispensadas de valorar essa recusa para efeitos da formação da sua convicção com vista a dar, como provado, ou não provado, o facto em causa.

É neste contexto que cabe analisar a questão supra enunciada, tendo em conta que está em causa a resposta dada ao art.º 1.º da base instrutória que o Tribunal da Relação deu como provada, tal como consta no n.º 9 da fundamentação de facto, com base na inversão do ónus da prova, com os fundamentos que aqui se transcrevem:

«
A questão central reconduz-se a saber se os dizeres “dou o meu aval a favor da firma FF” e se a assinatura manuscrita ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso de cada um dos cheques dados à execução, foram apostos pelo punho do opoente AA.

Para o efeito foi ordenada a realização de prova pericial.

O Laboratório incumbido do exame apresentou o relatório pericial no qual afirma que não é possível formular conclusão.

Assim, numa primeira fase, o resultado da prova pericial revelou-se inconclusivo.

A questão, todavia, não ficou resolvida na medida em que se consignou expressamente naquele relatório pericial que “a escrita produzida na colheita de texto, quando comparada com a escrita de assinaturas, não configura a hipótese de uma escrita natural”.

E esta afirmação vem estribada na circunstância de a escrita contestada ser maioritariamente em maiúsculas, fluente e evoluída enquanto a escrita produzida na colheita de autógrafos ser em maiúsculas, muito pouco fluente e de traçado lento.


Acrescenta-se naquele relatório que a escrita das assinaturas genuínas de AA é também fluente e envolve letras minúsculas. No entanto, quando solicitado a escrever texto em minúsculas, declarou não saber escrever de outra forma que não em letras maiúsculas.

Daí que, no caso presente, em termos de juízo pericial, considerou-se existir uma clara incompatibilidade entre a escrita de assinaturas, fluente e em minúsculas, e a escrita de texto, pouco fluente, em maiúsculas, sendo cada letra constituída por vários traços.

Nestas condições, não foi possível o exame comparativo e, consequentemente, formular qualquer conclusão.

Daqui, podíamos já inferir que a impossibilidade de realização do exame em termos conclusivos se ficou a dever ao facto de o opoente AA não ter produzido ou oferecido, como termo de comparação, quando da colheita de texto perante o Laboratório, uma escrita natural.

Mas esta hipótese de escrita não natural, significará o mesmo que escrita artificial, isto é, intencionalmente modificada?

No caso
sub judice, cremos que sim, em face das diligências instrutórias realizadas.

A simples observação visual, mesmo sem possuir conhecimentos especiais, causa a impressão forte de artificialidade (cada letra é constituída por vários traços).

Mas é o próprio perito que, não obstante as justificações apresentadas pelo opoente, afirma existir uma clara incompatibilidade entre a escrita de assinaturas, fluente e em minúsculas, e a escrita de texto a maiúsculas, muito pouco fluente e constituída por traços.

Admitindo, até aqui, alguma dúvida, cremos ter sido sanada com as diligências instrutórias posteriormente realizadas, e assentes num juízo pericial.

Foram juntos novos elementos documentais e realizou-se um novo exame pericial.

Neste novo exame, o Laboratório, tendo procedido à comparação entre os cheques incontestavelmente preenchidos pelo punho do opoente e os originais dos cheques dados à execução, já concluiu que a escrita contestada atribuída a AA, pode ter sido produzida pelo seu punho.

Mas de importância capital revelou-se a prestação de esclarecimentos da Srª Perita que subscreveu o relatório e que após ressaltar as diferenças entre a escrita dos documentos obtidos de forma espontânea e os obtidos por colheita de autógrafos afirma que este tipo de inconsistência interna na produção da escrita nas colheitas de autógrafos, com falta de fluência, hesitações e correcções configura a hipótese de “alteração voluntária de escrita”.

Conclusão que manteve e explicou quando foi ouvida em julgamento, afastando com argumentação técnica as diversas hipóteses que lhe eram colocadas como justificativas daquele tipo de letra.

A Srª Perita não emitiu uma opinião, uma probabilidade, ou sequer manifestou um estado de dúvida. Emitiu um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão em análise.

Daí a valoração da prova pericial, por assentar em critérios científicos e objetiváveis, tendo sido descrito e explicado pela perita o procedimento de análise que conduziu às suas conclusões. É este conjunto de critérios objetivos que permite ao juiz, na ausência de conhecimentos científicos equiparáveis ao do perito, formular um juízo sobre o mérito intrínseco e grau de convencimento a atribuir ao laudo pericial (neste sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, “A valoração da prova pericial”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal (27), 2016, p. 11-24).

Do que se deixa exposto, forçosa se impõe a conclusão de que o opoente por meio da alteração voluntária de escrita tornou impossível a obtenção de um resultado pericial conclusivo e, assim, a impossibilidade de a parte onerada, o exequente, demonstrar os factos que eram relevantes para a sua defesa.

Sendo certo que, no caso, não se trata de uma mera culpa ou culpa negligente, mas sim de uma atuação dolosa, pois é manifesto que o opoente usou propositadamente uma escrita aos tracinhos visando com isso impedir o Laboratório de comparar a escrita contestada com a sua escrita genuína, obtida esta em quantidade e qualidade suficientes que o habilitassem a um juízo científico rigoroso e conclusivo.

Quando assim é, verificado um comportamento culposo, opera a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2, do C. Civil.

A propósito da impossibilitação culposa da prova, defende Ferreira de Almeida que, “inverte-se o ónus da prova com base na regra de experiência de quem coloca entraves excessivos, ou mesmo insuperáveis, à descoberta da verdade material é o que mais descrê da consciência do seu direito, além de violar o princípio da cooperação entre as partes no domínio do processo” (Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 239).

Invertido o ónus probatório, passa a competir ao opoente demonstrar não ter sido ele o autor das escritas e das assinaturas em discussão nos presentes autos.

Coligida a prova produzida, não logrou o opoente fazer a demonstração de tal facto.
»

Desta fundamentação da decisão de facto resulta que se encontram preenchidos os pressupostos, acima aludidos, de que depende o mecanismo probatório da inversão do ónus da prova, como bem se explica no trecho acabado de transcrever, com o que se concorda.

Aliás, em bom rigor, o recorrente nem sequer os põe em causa em termos de este Supremo Tribunal poder aferir da sua (in)admissibilidade, única questão de que pode conhecer.

Limita-se a fundamentar a sua discordância no facto de não existir outra prova que justifique a inversão do ónus da prova e de a contraparte ter apresentado no recurso de apelação versão diferente da que havia sustentado na contestação à oposição.

O primeiro argumento não tem fundamento, porquanto, a provarem-se os restantes factos alegados, nem sequer seria necessário lançar mão do mecanismo probatório da inversão do ónus da prova.

E o segundo também não ocorre, pois que, logo no art.º 1.º da contestação, a exequente/recorrida imputou ao executado/oponente as assinaturas apostas no verso dos cheques dados à execução, já então invocou a inversão do ónus da prova em face da sua desconformidade gráfica, deliberada e enganosa (cfr. art.ºs 18.º a 23.º) e era-lhe imprevisível, à data da apresentação daquele articulado, a conduta que acabou por este adoptar aquando da sua sujeição à prova pericial.

De resto, o que o recorrente pretende é insurgir-se contra a alteração da resposta ao art.º 1. º da base instrutória, feita pela Relação no exercício da sua competência privativa, ao abrigo do disposto no art.º 662.º do CPC, na sequência da impugnação da decisão de facto que havia sido proferida pela 1.ª instância, pondo em causa a sua livre apreciação a que está sujeita a prova produzida, nomeadamente a pericial (cfr. art.º 489.º do CPC).

Todavia, isso sai do âmbito da revista, por não constituir fundamento previsto no art.º 674.º, n.º 3, do CPC, o qual, recorde-se, visa a intervenção (excepcional) do Supremo, no plano dos factos, quando tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a exigência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Não sendo este o caso, por não estarem em causa erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, o Supremo não pode cassar a decisão sustentada em determinado facto cuja prova tenha sido feita através de um meio que respeite a exigência de prova legal que ao caso respeita."


*III. [Comentário] 1. O sumário do acórdão não é muito feliz. 

A conjunção "porém" que inicia o n.º 2 dá a entender que trata da mesma matéria sumariada no n.º 1. Se bem se interpretou o acórdão, não é assim. Realmente, o STJ não afirmou que pode conhecer da aplicação do disposto no art. 344.º, n.º 2, CC, mas que não pode conhecer do facto que as instâncias consideraram provado com base na inversão do ónus da prova estabelecida neste preceito. Como é claro, estas afirmações não seriam compatíveis entre si.

 2. Resumindo, o que se passou foi o seguinte:

-- Numa execução, o executado deduziu embargos de executado alegando não ser o subscritor do aval aposto nuns cheques;

-- A 1.ª instância julgou os embargos procedentes;

-- O exequente interpôs recurso de apelação para a Relação; esta revogou a decisão do tribunal a quo e considerou os embargos improcedentes;

-- O executado interpôs recurso de revista desta decisão de improcedência.

Perante isto, o STJ afirmou o seguinte:

"O executado/oponente invocou que o acórdão recorrido incorreu em erro na apreciação das provas ao alterar o facto não provado para provado, tal como consta do n.º 9 da fundamentação de facto, com base na inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, e no que foi afirmado pela Ex.ma Perita, quando a recorrente apresentou versão diversa da que havia apresentado na contestação da oposição.

Parece, assim, querer fundamentar a revista na violação do citado art.º 344.º, n.º 2."


Isto é, o executado alega que o Relação utilizou mal o critério da inversão do ónus da prova, imaginando-se que pretendia afirmar que não lhe incumbia a prova de que as assinaturas constantes do aval não eram próprias.

Aderindo à decisão da Relação recorrida, o STJ concluiu que  da "fundamentação da decisão de facto [da Relação] resulta que se encontram preenchidos os pressupostos, acima aludidos, de que depende o mecanismo probatório da inversão do ónus da prova [...]."

MTS


25/09/2019

Bibliografia (Índices de revistas) (149)

Jurisprudência 2019 (83)


Nulidade da sentença;
regra da substituição


1. O sumário de STJ 9/4/2019 (2673/12.2T2AVR.P1.S1) é o seguinte:

I - A regra da substituição ao tribunal recorrido na hipótese de nulidade fundada em omissão de pronúncia (art. 665.º, n.º 1 do CPC), implica, por natureza, a supressão de um grau de jurisdição, e por isso não incorre em excesso de pronúncia o acórdão da Relação que, declarando a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, conhece do objeto da apelação na parte que foi omitida, ao invés de ordenar à 1ª instância que o faça.

II - Sendo suscitada por uma parte, por via de recurso, a nulidade da sentença da 1ª instância, e uma outra parte, que inclusivamente aderiu a esse recurso, tido oportunidade de se pronunciar sobre essa nulidade, não tinha o relator na Relação que fazer ouvir esta última parte nos termos do n.º 3 do art. 665.º do CPCivil, de modo que não houve qualquer privação do contraditório nem a produção de qualquer decisão-surpresa.

III - Visando o dona da obra obter uma indemnização do empreiteiro por deficiente execução da obra, está-se perante um caso de responsabilidade contratual e não delitual, mesmo que o dano a indemnizar não recaia sobre a própria obra objeto da empreitada, mas, reflexamente, sobre outra coisa do dono da obra.

IV - Havendo defeitos na obra, presume-se a culpa do empreiteiro na sua execução, mesmo que a obra tenha sido realizada por subempreiteiro.

V - Tendo o subempreiteiro fornecido e aplicado na obra uma forquilha, fabricada por terceiro, que sofreu rutura por deficiência de conceção e de fabrico, havia de se ter reparado nessa deficiência e disso se ter feito ciente a dona da obra. Não se mostrando que assim procedeu, não pode dizer-se que ficou ilidida a presunção de culpa que recaia sobre o empreiteiro, mesmo que a fiscalização da obra tenha achado a obra conforme ao que fora solicitado.

VI - A circunstância das condições gerais do contrato de seguro de responsabilidade civil excluírem das coberturas do seguro as perdas indiretas, o que aliás foi reiterado nas condições particulares, só por si não esvazia de objeto o seguro, cujo interesse para o segurado se mantém.

VII - Resultando o prejuízo do dono da obra de um concurso de causas, umas da sua responsabilidade outras da responsabilidade do empreiteiro, este, não alegando e provando qualquer facto extintivo da obrigação, está normalmente obrigado a reparar o prejuízo na proporção em que, como concausador, foi estabelecida pelo tribunal.

VIII - Sabendo-se que o dono da obra recebeu da sua seguradora, por efeito de um contrato de seguro de danos sobre coisas que celebrou, uma indemnização que reparou parte do dano, mas não alegando e provando o empreiteiro que a abrangência desse seguro se confinava apenas ao dano causado por terceiro (como seria o caso do empreiteiro), não cobrindo também o dano da responsabilidade do dono da obra, não pode dizer-se que com aquele recebimento ficou o crédito do dono da obra sobre o empreiteiro satisfeito, exonerando-se assim o empreiteiro.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Quanto à matéria das conclusões III a IX:

Sustenta-se aqui que o tribunal recorrido conheceu de matérias de que não podia conhecer, violando o n.º 2 do art. 665.º do CPCivil, por isso que não lhe competia substituir-
se ao tribunal de 1ª instância como fez.

Mas a Recorrente carece de razão.

Lendo-se o art. 665.º do CPCivil - e como é confirmado (e se dúvidas houvesse, que não há, tão clara é a lei) por Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª ed., pp. 225 e 226), com referência ao art. 715.º do anterior Código de Processo Civil, replicado no art. 665.º do atual Código de Processo Civil - a substituição da Relação ao tribunal de 1.ª instância pode ocorrer em dois casos: no caso de a decisão que põe termo ao processo ser declarada nula, e no caso de o tribunal a quo ter deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio. Como diz o referido autor, a regra da substituição ao tribunal recorrido quer nesta segunda hipótese, quer na hipótese de nulidade fundada em omissão de pronúncia, implica a supressão de um grau de jurisdição. Entendeu a lei, mais acrescenta o autor, que os inconvenientes resultantes da instância única seriam largamente compensados pelos ganhos em termos de celeridade, apreciando o tribunal ad quem as questões controvertidas.

Na situação vertente estava em causa na apelação, tal como fora suscitada pela recorrente EE, S.A., a questão da nulidade da sentença da 1ª instância por omissão de pronúncia.

Para o efeito rege o n.º 1 do art. 665.º do CPCivil. E não, contrariamente ao suposto pela Recorrente, o n.º 2.

Nos termos desse n.º 1 o tribunal de apelação conhece da nulidade, e se a julgar verificada deve conhecer do objeto da apelação, o que implica por natureza a supressão de um grau de jurisdição. E não devolver o processo à instância recorrida para que esta vá conhecer do que não conheceu.

E o que fez o acórdão recorrido foi precisamente, após ter decidido que a nulidade existia (o que a ora Recorrente não contesta), conhecer do objeto da apelação na parte omitida, substituindo-se desse modo à 1ª instância.

Carece assim de aceitação a afirmação da Recorrente no sentido de que o processo havia de ter sido devolvido à 1.ª instância para que esta conhecesse da questão cujo conhecimento omitiu. Como carece de aceitação a afirmação de que, ao substituir-se ao tribunal da 1ª instância, o acórdão recorrido conheceu de questão que não lhe competia conhecer.
 
Improcedem, pois, as conclusões em destaque.

Quanto à matéria das conclusões X a XV:

Afirma-se aqui que antes de ter conhecido do objeto da apelação na parte omitida (cobertura do seguro) pela 1ª instância, havia a Exma. Relatora que ter ouvido as partes, nos termos do n.º 3 do art. 665.º do CPCivil.

Ter-se-ia, desse modo, privado a ora Recorrente de exercer o contraditório, constituindo o acórdão recorrido uma decisão-surpresa.

Mas não é assim.

Desde logo, é de entender que o n.º 3 do art. 665.º só rege para a hipótese do n.º 2 do mesmo artigo. É nessa hipótese que faz sentido ouvir as partes, pois que, como nos diz Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., p. 278), “pode acontecer que, girando as alegações apenas em torno da decisão recorrida, as partes se tenham abstido de produzir alegações sobre o restante objeto do processo”.

Já na hipótese do n.º 1, que é a que está aqui em tela, a questão da nulidade (que não é de conhecimento oficioso) tem que ser necessariamente suscitada pela parte recorrente (ou pela parte recorrida, no caso de requerer a ampliação do âmbito do recurso), tendo a contraparte a possibilidade de se pronunciar em sede de contra-alegação (ou na sua resposta à ampliação do âmbito do recurso).

Sendo assim, como é, não se coloca nesta hipótese a necessidade de um novo contraditório, nem se pode falar nunca em decisão-surpresa. A decisão sobre a nulidade e sobre a questão omitida insere-se, à partida, no objeto explícito do recurso, e a parte tem sempre possibilidade de se pronunciar.

No caso vertente, a Ré EE, S.A. arguiu no seu recurso subordinado a nulidade da sentença da 1ª instância por omissão de pronúncia; e reiterou que deviam ser julgadas procedentes as exceções que suscitara acerca da exclusão do sinistro das coberturas do seguro e que, por isso, devia ser absolvida do pedido.

Esta era, pois, a questão decidenda, que fazia parte do objeto do recurso tal como estabelecido por quem estava a recorrer.

Da respetiva alegação foi a ora Recorrente notificada, tendo, inclusivamente, aderido a esse recurso subordinado.

Teve assim a ora Recorrente toda a possibilidade de se pronunciar sobre a nulidade e sobre a questão sucedânea da (im)procedência das exceções e, consequentemente, de influenciar a decisão de recurso a proferir adrede.

Não se entende, deste modo, como pode vir argumentar com a privação do contraditório e falar em decisão-surpresa.

Termos em que improcedem as conclusões em destaque.
"


*3. [Comentário] O STJ decidiu bem qualquer das questões.

Numa feliz expressão escutada algures e que se aproveita para reproduzir, "a garantia do duplo grau de jurisdição vale para cima, não para baixo". Quer isto dizer que a consagração do duplo grau de jurisdição visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.

MTS

24/09/2019

Legislação (173)


-- P 330/2019, de 24/9: Fixa o quadro dos Procuradores-Gerais Adjuntos de coadjuvação e substituição do Procurador-Geral da República nos Tribunais Superiores e o quadro dos vogais do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República e revoga a Portaria n.º 265/99, de 12 de abril


Jurisprudência 2019 (82)


Declarações de parte;
admissibilidade; justo impedimento*

1. O sumário de RP 25/3/2019 (13083/16.2T8PRT-A.P1) é o seguinte:

I - As declarações de parte do art. 466º do CPC pressupõem que a parte requerente esteja presente, não só para manifestar a sua concordância para que o mandatário proceda ao pedido, como para que preste as suas declarações assim que deferido o requerimento, atento o princípio da inadiabilidade da audiência.

II - Não é, pois, de deferir o requerimento de declarações de parte ausente da audiência, formulado pelo mandatário, ainda que se mostre justificada a sua falta.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Insurgindo-se contra o despacho recorrido, supra transcrito, alega o recorrente:

Ao contrário dos restantes meios de prova que têm que ser deduzidos com os respectivos articulados, sendo esta a regra geral.

As declarações de parte são, portanto, uma excepção quanto ao momento para a indicação dos meios de prova.

O regime previsto para as declarações de parte, cuja prestação pode ser requerida depois de produzidos todos os meios de prova em audiência de julgamento, demonstra que o recurso a este meio visa colmatar falhas ao nível da produção da prova.

Trata-se do último expediente de que as partes podem lançar mão para tentar criar no Juiz a convicção da realidade dos factos.

O fundamento do Despacho do Tribunal a quo prende-se essencialmente com razões de celeridade processual.

Todavia, as declarações de parte encontram justificação em interesses e valores diversos da economia e celeridade processual.

Em sentido contrário aos autores citados no douto Despacho, veja-se João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, “Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013”, Coimbra, Almedina, 2013, p. 57-58, “o direito à prova e o interesse da descoberta da verdade material impõem que a única condição seja a formulação do requerimento antes do início das alegações orais e já não que a parte esteja em condições de depor de imediato”. [...]

A lei não é clara quanto ao momento em que devam ser produzidas as declarações de parte.

O artigo 604º, nº 3, do CPC regula os actos a praticar na audiência de Julgamento. 

Todavia, o preceito legal não faz qualquer referência às declarações de parte.

Na falta de norma legal quanto à ordem de produção de prova, parece que ao Juiz competirá determinar qual o momento mais adequado, ao abrigo do dever de adequação e gestão processual.

A utilização deste meio de prova tem especial relevo nas relações em que apenas as partes conhecem, intervém e têm conhecimento direto dos factos.

É o caso dos presentes autos em que se discute uma relação laboral.

Tendo a respectiva prova produzida em Audiência de Julgamento sido constituída pelo Depoimento de Parte da R. e a inquirição de 7 testemunhas – 6 delas funcionários da Entidade Empregadora.

O nº 2 do art. 466º do CPC determina que às declarações de parte se aplica o disposto no art. 417º do CPC.

As declarações de parte estão sujeitas ao dever geral de cooperação para a descoberta da verdade.

Também o Tribunal a quo está obrigado a cooperar com as próprias partes para se obter a justa composição do litígio.

O sucesso da Reforma do Novo Código de Processo Civil, no que a este novo meio de prova diz respeito, depende da mudança de mentalidade dos operadores da justiça.

Com este novo meio de prova visou o Legislador (re)equacionar da intervenção das partes em termos probatórios.

Consideração que o Tribunal a quo não levou em conta.

O A./Apelante deu cumprimento aos pressupostos de que dependem a admissibilidade das declarações de partes: por um lado, o pressuposto temporal e, por outro lado, a indicação discriminada dos factos.

Encontrando-se a falta do A./Apelante devidamente comprovada por atestado médico nos autos e justificada pela Mma. Juiz.

Por seu lado, sustenta a recorrida que:

(...) a prova por declarações de parte trata-se de um meio de prova a apresentar pela parte (requerente), pelo que, sendo a mesma requerida em sede de audiência final, como foi, o então A., aqui Recorrente, deveria estar em condições de a produzir de imediato, o que, conforme se referiu, não aconteceu.

Com efeito, e seguindo a linha de entendimento de PAULO RAMOS FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, em anotação ao artigo 466º do Código de Processo Civil, “[a prova por declarações de parte] é um meio a apresentar pela requerente, pelo que, sendo requerido no decurso da audiência final, deve a parte estar em condições de o produzir de imediato. Não pode o mandatário requerer a prestação de declarações do seu constituinte, não presente, solicitando a suspensão dos trabalhados e a designação de nova sessão da audiência final, para assim conseguir a sua comparência”. [FARIA, Paulo Ramos de, LOUREIRO, Ana Luísa, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil – os artigos da reforma, Volume I, Almedina, Coimbra, 2013, página 365] negrito e sublinhado nossos.

Neste mesmo sentido, entende ABÍLIO NETO que “(...) para que [o requerimento de prova por declarações de parte] possa ser feito deve a parte em apreço encontrar-se presente, quer para o mandatário se assegurar da sua anuência prévia, quer em obediência ao princípio da inadiabilidade da audiência (...)” [NETO, Abílio, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª edição revista e ampliada, Ediforum, Lisboa, 2014, página 535].

Por tudo o quanto foi exposto, cremos que o douto despacho recorrido não padece de quaisquer vícios ou error in iudicando, não merecendo, por esse motivo, qualquer juízo de censura, devendo concluir-se pela integral manutenção do mesmo.

No seu parecer considerou o Ilustre Magistrado do Ministério Público: “embora os argumentos sustentados pelo Mmo. Juiz “a quo” não sejam do nosso acolhimento, uma vez que têm uma sustentação meramente literal, estribados nos pareceres invocados, não tendo em conta a realidade que o “Direito” sempre terá de acolher e a que cabe enquadrar, entendemos que no caso concreto em análise, não se justifica a suspensão da audiência a fim de se tomarem declarações de parte ao autor. Por um lado, o mesmo não apresenta uma justificação convincente para a sua impossibilidade de comparecer á audiência de julgamento, cingindo se a uma simples declaração de ITA, por parte da seguradora – fls. 5, e, por outro lado sempre teria de, logo nesse requerimento, face á tramitação concreta dos autos, ter solicitado tal audição, o que não fez.”

Dispõe-se no art. 466º, nº 1, do CPC, que as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em primeira instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo.

Entende o recorrente que esse requerimento pode ser formulado pelo mandatário da parte, ainda que a própria parte não esteja presente, suspendendo-se para o efeito a audiência de julgamento, sobretudo no caso de a parte justificar a sua ausência, como ocorreu no caso dos autos. Para sustentar a sua posição invoca o recorrente João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, em Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, 2013, págs. 57-58, os quais referem “o direito à prova e o interesse da descoberta da verdade material impõem que a única condição seja a formulação do requerimento antes do início das alegações orais e já não que a parte esteja em condições de depor de imediato”.

Já a recorrida, em defesa do despacho sob recurso invoca Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil – os artigos da reforma, Volume I, 2013, pág. 365, em anotação ao artigo 466º do CPC, citados no despacho recorrido, e Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª edição revista e ampliada, 2014, página 535.

Efectivamente, refere Abílio Neto na aludida obra, nota 4 ao art. 466º: “O requerimento para declarações de parte será naturalmente formulado pelo mandatário quando, face à prova produzida, tenha fundadas dúvidas acerca da convicção do juiz, surgindo, assim, como uma última chance de inverter um resultado que prefigura desfavorável para o seu constituinte, não obstante a aleatoriedade de tal prova, uma vez que esta pode conduzir a confissão (de factos desfavoráveis). Para que esse requerimento possa ser feito deve a parte em apreço encontrar-se presente, quer para o mandatário se assegurar da sua anuência prévia, quer em obediência ao princípio da inadiabilidade da audiência, a qual sempre decorrerá se a parte contrária, no exercício do contraditório, também, ela própria, requerer declarações de parte.”

Já Paulo Pimenta, em Processo civil declarativo, 2014, pág. 358, vem defender uma terceira via consistente em admitir o adiamento da audiência nas situações que o juiz, “consciencializando-se do eventual relevo das declarações da parte não presente na audiência, deverá admitir que o requerimento seja formulado pelo mandatário e a parte ouvida, entretanto.”

Sobre o assunto refere Ruy Drummond Smith, em A prova por declarações da parte, Universidade Autónoma de Lisboa, 2017, págs. 49-50, “se as partes têm ciência do seu ônus probatório e do momento processual oportuno para a produção de tal prova, entendemos que a ausência da parte requerente na audiência final (art. 456/1 do CPC Português) importa na renúncia tácita a tal prerrogativa. Assim, advogamos que, nessa hipótese, o requerimento deverá ser indeferido (…)”. Acrescentando, porém, que “Tal não deverá ocorrer, todavia, se a ausência for devidamente justificada (art. 140º do CPC Português).”

Afigura-se correcta a posição perfilhada na decisão recorrida.

Conforme refere Mariana Fidalgo, em A Instrução no novo Código de Processo Civil – A Prova por Declarações de Parte, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2015, pág. 84, “Não se alvitre, porém, que o requerimento poderá ser temporaneamente feito pelo mandatário presente em sua representação, pois que é nosso entendimento que o limite temporal estabelecido tem por fito a prestação dessas declarações nesse mesmo ato processual em que são requeridas; e não o seu requerimento formal para, contudo, só poderem ser prestadas obrigatoriamente mediante a marcação de nova data.”

No mesmo sentido se pronuncia Carolina Braga da Costa Henriques Martins, em Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, pág. 37, referindo: “A parte requerente deve estar presente, não só para manifestar a sua concordância para que o mandatário proceda ao pedido, como para atender ao princípio da inadiabilidade da audiência prestando as suas declarações assim que deferido o requerimento.” Parece igualmente ser este o entendimento de Catarina Gomes Pedra, em A prova por declarações das partes no Novo Código de Processo Civil – Em busca da verdade material no Processo, Universidade do Minho, 2014, pág. 140.

As declarações de parte têm o mesmo regime, quanto a este aspecto, que a produção de prova por testemunhas a apresentar pela parte, ou seja, ainda que a falta seja devidamente justificada, a sua ausência não determina por si a suspensão da audiência para sua posterior inquirição.

Conforme a doutrina maioritária referida, este é o entendimento que melhor se coaduna com o regime deste novo meio de prova."

*3. [Comentário] Ainda que se adira à tese defendida no acórdão, parece demasiado pesado entender que, havendo justificação para a ausência da parte, a parte fique impossibilitada de prestar declarações. Salvo o devido respeito, a orientação defendida pela RP acaba por ignorar o regime do justo impedimento (art. 140.º CPC), tanto mais que, in casu, a ausência da parte estava comprovada por atestado médico nos autos e justificada pelo tribunal de 1.ª instância.

MTS