"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/06/2021

Jurisprudência 2020 (241)


Caso julgado;
requisitos


1. O sumário de STJ 16/12/2020 (141/15.0T8PST.L1.S1) é o seguinte:

I. Não sendo apreciada, na oposição à execução, a questão da existência ou inexistência da obrigação da ré de pagamento à autora da quantia inscrita em certos cheques, mas apenas a falta de um dos requisitos de que depende a exequibilidade dos cheques enquanto título executivo, a decisão aí proferida não forma caso julgado para efeitos de posterior acção declarativa visando a condenação da ré naquela obrigação.

II. O Supremo Tribunal de Justiça não tem o poder de sindicar a convicção atingida pelo Tribunal da Relação através de meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, mas apenas o poder de avaliar se, na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, este Tribunal incorreu em violação de alguma norma de Direito probatório material aplicável [cfr. artigos 674.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, e 682.º, n.º 3, do CPC].


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A 1.ª questão de que cumpre conhecer prende-se com a alegada ofensa de caso julgado (cfr. conclusões 4 e s.).

Segundo a recorrente, a sentença proferida na acção executiva que correu termos no Juízo de Competência Genérica de … sob o processo n.º 181/10.5…. e apenso A (oposição à execução), transitada em julgado, impediria o Tribunal recorrido de decidir como decidiu.

Compulsada a certidão junta aos autos (fls. 147 verso / 193), verifica-se que, no referido processo, a autora e aqui recorrida instaurou contra a ré e aqui recorrente uma acção executiva para pagamento de quantia certa no valor de € 30.000,00, sendo apresentados como títulos executivos os dois cheques em apreço na presente acção, alegando que, antes de falecer, a Sra. CC emitira os referidos cheques em seu nome, como reconhecimento e para pagamento dos seus serviços domésticos e cuidados de saúde, nunca tendo conseguido sacar os mencionados cheques junto da sucursal do Banco …, por a assinatura da falecida ter de ser reconhecida presencialmente. A ré deduziu oposição à execução, alegando desconhecer os motivos que a Sra. CC tinha para passar os referidos cheques a favor da autora, desconhecendo se as assinaturas daqueles cheques eram ou não verdadeiras.

Foi proferida sentença naqueles autos, a qual concluiu pela inexistência ou inexequibilidade dos títulos executivos, por a autora ali exequente e aqui recorrida não ter conseguido demonstrar a veracidade das assinaturas apostas nos mencionados cheques, encontrando-se os mesmos privados da respectiva exequibilidade. A autora recorreu e o Tribunal da Relação … confirmou a sentença, por a autora não ter título executivo exequível para o prosseguimento da execução.

Aprecie-se. [...]

Ora, pese embora poder entender-se que são as mesmas as partes naquele processo e nos presentes autos, já existem sérias reservas quanto a haver identidade do pedido e da causa de pedir. Se não veja-se.

No processo executivo, a autora tinha como fim único a obtenção do pagamento de certa quantia. Diversamente, nos presentes autos, não obstante reconhecer-se que, na prática, este será o seu fim último, o que a autora rigorosamente peticiona é que o tribunal declare que a ré tem o dever de lhe pagar determinada quantia. Não é visado, assim, rigorosamente, o mesmo efeito jurídico. Por isso é que, como bem se assinala no despacho saneador proferido em … .01.2019, “a Autora vem carrear diversos fundamentos de facto que não foram produzidos ou sequer alegados no processo anterior, nomeadamente, todos os circunstancialismos que antecederam e sucederam à data que se encontra aposta nos referidos cheques bancários”. Quer dizer: tão-pouco é exactamente a mesma a causa de pedir (a pretensão deduzida nas duas acções não procede do mesmo facto jurídico).

Mas, para além da excepção de caso julgado, há que considerar aquela “vertente positiva” do caso julgado – a autoridade de caso julgado –, que tem o efeito positivo de impor a decisão. Diversamente da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado pode funcionar independentemente da verificação daquela tríplice identidade. No entanto, não pode impedir que se volte a discutir e dirimir aquilo que ela mesma não definiu (cfr. artigos 91.º e 581.º do CPC).

Ora, é visível que a decisão proferida não aprecia nem decide a questão da existência ou inexistência da obrigação da ré no pagamento à autora da quantia inscrita nos cheques, mas apenas a falta de um dos requisitos de que depende a exequibilidade dos cheques enquanto título executivo e, consequentemente, a impossibilidade de prosseguimento da execução.

De tudo isto resulta, em suma, que a decisão proferida naquele processo não forma caso julgado com efeito nos presentes autos, não estando, pois, o Tribunal impedido de apreciar o mérito da causa (não há excepção de caso julgado) nem tão-pouco obrigado a decidir em sentido determinado (não há autoridade de caso julgado)."

[MTS]


29/06/2021

Jurisprudência 2020 (240)

Matéria de facto;
poderes da Relação; poderes do STJ


1. O sumário de STJ 16/12/2020 (4016/13.9TBVNG.P1.S3) é o seguinte:

I. A reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte da Relação, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica a reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de o tribunal de recurso formar a sua própria convicção em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.

.II. O exercício desse poder-dever cognitivo é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça em termos de verificar se foram observados os parâmetros formais ou balizadores da respetiva disciplina processual.

III. A análise crítica da prova exigida nos termos do n.º 4 do artigo 607.º do CPC não requer uma exposição exaustiva e de pormenor argumentativo probatório, mas tão só a especificação seletiva das razões que, por via dessa análise crítica, se revelem decisivas para a formação da convicção do tribunal.

IV. Nesse domínio, compete ao tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação observou o método de análise crítica da prova prescrito no n.º 4 do indicado artigo 607.º, mas já não imiscuir-se na valoração da prova feita segundo o critério da livre e prudente convicção do julgador, genericamente editado no n.º 5 do artigo 607.ºdo CPC.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 662.º. n.º 1, do CPC o seguinte:

A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Cabe assim ao Tribunal da Relação, ajuizar sobre o invocado erro de julgamento na valoração da prova livre sobre a matéria de facto que haja sido impugnada, em função da reapreciação dos meios probatórios convocados ou de que se mostrem relevantes.

E como é sabido, o exercício desse poder-dever cognitivo é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça em termos de verificar se foram observados os parâmetros formais ou balizadores da respetiva disciplina processual.

Assim, no que respeita à reapreciação da decisão de facto, compete ao tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação observou o método de análise crítica da prova prescrito no n.º 4 do indicado artigo 607.º, mas já não imiscuir-se na valoração da prova feita, segundo o critério da livre e prudente convicção do julgador, genericamente editado no n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

É hoje jurisprudência seguida por este Supremo que a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2.ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.

Importa, pois, no caso vertente, verificar se a Relação, na reapreciação feita sobre a impugnação deduzida pelo A./apelante mormente sobre o facto dado como provado no ponto 20 da sentença da 1.ª instância se pautou por tais diretrizes.

Debruçando-nos sobre a fundamentação do acórdão recorrido acima transcrita, dela se colhe que a Relação, tendo procedido à audição integral dos registos fonográficos, como ali se atesta, e ponderando a motivação dada pela 1.ª instância, formou a sua a própria convicção, ainda que condizente com aquela, mas alicerçada nos resultados dessa audição, salientando os aspetos específicos extraídos dos depoimentos prestados que se mostravam decisivos para uma tal convicção.

Ora, diversamente do que parece ser entendido pelo Recorrente, a análise crítica da prova exigida nos termos do n.º 4 do artigo 607.º do CPC não requer uma exposição exaustiva e de pormenor argumentativo probatório, mas tão só a especificação seletiva das razões que, por via dessa análise crítica, se revelem decisivas para a formação da convicção do tribunal.

Nesta linha de entendimento, afigura-se que o tribunal a quo procedeu dentro de tais parâmetros balizadores, mormente no âmbito do facto dado como provado no ponto 20.

É legítimo ao Recorrente discordar da apreciação feita, mas, salvo o devido respeito, o que não se descortina é a existência de qualquer ilogicidade manifesta no quadro dessa apreciação nem de preterição do método utilizado nas suas linhas fundamentais, que cumpra aqui censurar, não cabendo a este tribunal de revista imiscuir-se na valoração dessa prova.

E quanto ao invocado erro de valoração das declarações confessórias, com fundamento em pretensa violação do artigo 358.º do CC, há que ter em conta que a respetiva eficácia probatória plena da confissão judicial só releva quando tal confissão se encontre reduzida a escrito, pois, não o sendo, é de livre apreciação pelo tribunal como decorre do disposto no n.º 4 daquele artigo.

De qualquer modo, a preterição dessa eficácia probatória plena, como erro de direito que é, só será de apreciar no caso de haver lugar a revista excecional mediante o levantamento do impedimento resultante da dupla conformidade decisória."

[MTS]




28/06/2021

Jurisprudência 2020 (239)


Penhora posterior; sustação da execução;
penhora insuficiente


1. O sumário de RP 17/12/2020 (2498/03.6TTPRT-D.P1) é o seguinte:

I. – Um dos fundamentos de oposição à penhora é o bem penhorado ser de valor excessivo em relação ao crédito do exequente ou conduzir a um duplo pagamento.

II. – O n.º 1 do artigo 794.º do CPC não obriga a uma sustação integral da execução, mas apenas em relação aos bens cuja penhora anterior tenha ocorrido noutro processo, com a finalidade de evitar diligências de venda (ou outras) sobre os mesmos bens.

III. - Daqui decorre que o seu n.º 3 não deva ser interpretado no sentido de que apenas possam ser penhorados novos bens, se o exequente desistir da penhora sobre o bem que motivou a sustação da execução.

IV. - Essa desistência apenas se justifica no caso de a nova penhora satisfizer, integralmente, o pagamento do crédito em execução. Caso contrário, beneficiaria, injustificadamente, o devedor, pois, conduziria à diminuição ou eliminação da garantia processual do exequente, ao arrepio do princípio da efectividade, constitucionalmente consagrado.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O artigo 794.º - Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens – do CPC, prescreve:

“1 - Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga.
3 - Na execução sustada, pode o exequente desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e indicar outros em sua substituição.
4 - A sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 850.º.”.
 
O n.º 5 do artigo 850.º prevê a renovação da execução extinta - “O exequente pode ainda requerer a renovação da execução extinta nos termos das alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo anterior, quando indique os concretos bens a penhorar, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no número anterior -”. A alínea e) do n.º 1 do artigo 849.º reporta ao caso referido no n.º 4 do artigo 794.º.

A redacção do citado artigo 794.º é similar à do artigo 871.º do anterior CPC, cuja epígrafe é: “Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens”.

Em anotação ao artigo 871.º do anterior CPC, pode ler-se em José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, pág. 287: este preceito “não se inspira em razões de economia processual, visto que não se manda atender ao estado em que se encontram os processos; susta-se o processo em que a penhora se efectuou em segundo lugar, ainda que a execução respectiva tenha começado primeiro e ainda que esteja mais adiantada do que aquela em que precedeu a penhora. O que a lei não quer é que em processo diferente se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem que ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar.”. (negrito nosso).

Assim, no dizer de Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 16.ª Edição Actualizada, pág. 1254, “Logo que tenha conhecimento de os bens já terem sido penhorados noutro processo, deve o juiz, oficiosamente ou a requerimento de exequente ou executado, proferir despacho a mandar sustar a execução em relação aos bens duplamente penhorados, a qual prossegue, no entanto, relativamente aos outros bens.” [...]

Decorre da citada doutrina que a presente acção executiva, apesar de sustada quanto ao bem imóvel penhorado, em primeiro lugar, no processo n.º 1527/03.8TTVNG, pode prosseguir quanto a outros bens que já estivessem penhorados nos autos, ou quanto a bens que, entretanto, foram penhorados com a autorização do tribunal, neste caso, o depósito bancário no valor de €12.405,05 – cf. pontos 3) e 15) dos factos provados.

Dito de outro modo: o n.º 1 do citado artigo 794.º não obriga a uma sustação integral da execução, mas apenas em relação aos bens cuja penhora anterior tenha ocorrido noutro processo – como o caso do imóvel identificado no ponto 1) dos factos provados -, com a finalidade de evitar diligências de venda (ou outras) sobre os mesmos bens.

Daqui decorre que o n.º 3 do artigo 794.º não deva ser interpretado no sentido de que apenas possam ser penhorados novos bens, se o exequente desistir da penhora sobre o bem que motivou a sustação da execução.

O que, verdadeiramente, o regime executivo impede ao exequente é o uso de um mecanismo processual que conduza a uma penhora excessiva em relação ao valor da dívida ou a um duplo pagamento e não o prosseguimento da execução sustada, com a penhora de outros bens do devedor, que garantam o total pagamento do seu crédito.

De outro modo, não faria sentido o disposto no n.º 4 do artigo 794.º, ao estatuir que a sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 850.º, ou seja, de o exequente poder vir a requerer a renovação da execução extinta, indicando novos bens à penhora. Quem pode o mais - renovar a execução extinta -, pode o menos – não desistir de bem penhorado -.

No caso dos autos, sustada a execução quanto ao bem imóvel penhorado no processo n.º 1527/03.8TTVNG, nada impede que a mesma prossiga quanto ao depósito bancário no valor de €12.405,05, tanto mais que este montante é insuficiente para garantir o pagamento da dívida exequenda, no montante de € 16.508,48, mais as custas processuais, e eventuais juros de mora de 17 anos!

Assim, dar provimento à pretensão do executado e ordenar o levantamento da penhora do depósito bancário, seria diminuir ou eliminar de vez (o dinheiro é um bem facilmente dissipável) a garantia do pagamento (parcial, diga-se) mais sólida e eficaz que o exequente tem nesta fase processual da execução, dado que a dívida inicial se mantém há 17 anos! [muito perto da prescrição dos vinte anos – cf. artigo 20.º do Código Civil] e sem solução, à vista, quanto à venda do imóvel penhorado.

Diferente seria se o novo bem penhorado fosse de valor excessivo em relação ao crédito do exequente ou conduzisse a um duplo pagamento.

Sendo de valor inferior, a interpretação do n.º 3 do artigo 794.º, no sentido pretendido pelo executado, violaria, além do mais, o disposto no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

No dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 2007, em anotação ao artigo 20.º, pág. 416, “Na epígrafe e no n.º 5 a Constituição alude expressis verbis ao direito à tutela jurisdicional efectiva (epígrafe) ou ao direito à tutela efectiva (nº 5). Não é suficiente garantia o direito de acesso aos tribunais ou o direito de acção. A tutela através dos tribunais deve ser efectiva. O princípio da efectividade articula-se, assim com uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais é organização e processo de protecção e garantia. Não obstante reconhecer o direito à protecção de direitos e interesses, não é suficiente garantia o direito de acção para se lograr uma tutela efectiva. O princípio da efectividade postula, desde logo, a existência de tipos de acções ou recursos adequados (cfr. Cód. Proc. Civil, art. 2.º-2), tipos de sentenças apropriados às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão (cfr. as formas de processo hoje consagradas no Cód. Proc. Trib. Admin., arts. 35º e ss.).”.

Dito em linguagem simplificada: salvo o disposto no artigo 784.º, n.º 1 do CPC, que protege o devedor de qualquer acto processual do credor que conduza à penhora de valor excessivo ou a um duplo pagamento, todas as demais normas da acção executiva devem ser interpretadas no sentido que conduzam ao pagamento efectivo do crédito do exequente, em prazo razoável, e não no sentido de proteger o devedor relapso.

Assim, a desistência prevista no n.º 3 do artigo 794.º apenas se justifica no caso de a nova penhora satisfizer, integralmente, o pagamento do crédito em execução. Caso contrário, beneficiará, injustificadamente, o devedor.

Neste sentido, a manutenção da penhora sobre o bem imóvel é, aparentemente, a única garantia que o exequente continua a ter para o pagamento integral do seu crédito, isto é, para o pagamento efectivo da diferença entre o valor do depósito bancário penhorado e a totalidade da dívida.

Diferente interpretação do n.º 3 do artigo 794.º conduziria à diminuição ou eliminação dessa garantia processual do exequente, ao arrepio do princípio da efectividade, constitucionalmente consagrado."


`*3. [Comentário] Se bem se interpreta o sentido do acórdão, entende-se nele que, independentemente de o exequente desistir da penhora dos bens que já se encontravam penhorados numa outra execução, esse exequente pode, na execução parcialmente sustada, nomear novos bens à penhora. 

Trata-se de uma solução dificilmente compatível com o disposto no art. 751.º, n.º 5, al. e), CPC, que, explicitamente, só admite a nomeação de novos bens se o executado desistir da penhora dos bens que justificam, nessa parte, a sustação da execução. Quer dizer: se dúvidas havia sobre a interpretação do disposto no art. 794.º, n.º 3, CPC, essas mesmas dúvidas são desfeitas pelo estabelecido no art. 751.º, n.º 5, al. e), CPC.

O que talvez se possa dizer é que, independentemente de toda a problemática relacionada com a segunda penhora e com a sustação da execução, é sempre possível reforçar a penhora nas condições referidas no art. 751.º, n.º 1, al. b), CPC (manifesta insuficiência dos bens penhorados).


[MTS]



25/06/2021

Jurisprudência 2021 (2)


Direito de acção;
justificação judicial*


I. O sumário de RL 5/1/2021 (10486/18.1T8LRS.L1-7) é o seguinte:

1. O DL nº 273/2001, de 13.10, foi o primeiro diploma a instituir a transferência dos tribunais para as conservatórias das competências relativas aos processos de carácter eminentemente registral.

2. Essa transferência de competências não afasta a possibilidade de nos tribunais judiciais correr a referida ação de justificação judicial, quer quando o requerente preveja que o requerido se vai opor à sua pretensão, quer quando o pedido, ponderada a causa de pedir, extravasa a mera ação registral.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O tribunal recorrido indeferiu liminarmente a presente ação por entender que a mesma configurava a ação especial de justificação de reatamento de trato sucessivo prevista no art. 116º do CRPredial que se inicia na respetiva Conservatória do Registo Predial, sendo, pois, o juízo central cível absolutamente incompetente para dela conhecer.

Sustentam os apelantes que, não obstante na sua formulação a ação em causa seja da competência da CRP, tal competência não é exclusiva desta, não estando vedada a intervenção do tribunal, nomeadamente, tendo em atenção os pedidos formulados, como acontece no presente caso, em que o peticionado extravasa a competência da CRP.

Apreciemos.

Dispõe o art. 116º do CRP (aprovado pelo DL. nº 224/84, de 6.07, na redação introduzida pelo DL. 273/2001, de 13.10), que “1 - O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. 2 - Caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, a falta de intervenção do respetivo titular, exigida pela regra do nº 2 do artigo 34º, pode ser suprida mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. 3 - Na hipótese prevista no número anterior, a usucapião implica novo trato sucessivo a partir do titular do direito assim justificado”.

Foi com a Lei nº 2049, de 6 de Agosto de 1951, que se iniciou uma viragem quanto à procura de um meio adequado de fazer corresponder a situação real da titularidade dos direitos de propriedade sobre os imóveis com a respetiva situação registral através do mecanismo da obrigatoriedade do registo predial [...].

A Lei nº 2049 criou novos expedientes extrajudiciais de suprimento da falta de determinados documentos exigidos para os casos de registo obrigatório (posteriormente tornados extensivos ao próprio registo facultativo pelo DL nº 40.603, de 18.5.1956), sob a forma de escritura de justificação notarial.

O CRP de 1959 veio prever a possibilidade de justificar direitos sobre imóveis mediante o recurso a dois meios alternativos: extrajudicial, mediante a celebração de escritura pública, e judicial, mediante ação especial de justificação judicial, nele especialmente regulada (arts. 199º e ss.), sistema que se manteve, no essencial no CRP de 1967 (aprovado pelo DL nº 47.611, de 28.3.1967), no qual a justificação judicial ficou regulada nos (arts. 205º e ss.).
Não obstante se tratar de um processo especial, a justificação judicial nunca foi regulada no CPC.

No CRP aprovado pelo DL nº 224/84, de 6-07, o legislador optou por deixá-lo de fora, considerando que ele deveria ser inserido no local próprio do CPC, mas, como não terá, então, sido considerado oportuno alterar este diploma, foi publicado um diploma autónomo, o DL nº 284/84, de 22.08, de carácter considerado de transitório, sem grandes alterações no regime que até então era consagrado.

O DL nº 312/90, de 2.10, regulou o processo especial de suprimento, criando, pela primeira vez, um procedimento especial a correr pelas conservatórias do registo predial com vista ao suprimento da falta de títulos necessários ao registo, a que os interessados poderiam recorrer em alternativa ao processo judicial e à escritura de justificação notarial [...].

O atual processo de justificação a correr pelos serviços de registo predial foi instituído pelo DL nº 273/2001, de 13.10.

E foi este, de facto, o primeiro diploma a instituir a transferência dos tribunais para as conservatórias das competências relativas aos processos de carácter eminentemente registral.

Consta do respetivo preâmbulo que “O presente diploma opera a transferência de competências em processos de carácter eminentemente registral dos tribunais judiciais para os próprios conservadores de registo, inserindo-se numa estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam verdadeiro litígio. Trata-se de uma iniciativa que se enquadra num plano de desburocratização e simplificação processual, de aproveitamento de atos e de proximidade da decisão, na medida em que a maioria dos processos em causa eram já instruídos pelas entidades que ora adquirem competência para os decidir, garantindo-se, em todos os casos, a possibilidade de recurso. … No âmbito do registo predial, comercial e, por remissão, automóvel, o processo de justificação, anteriormente efetuado notarial ou judicialmente ou pelo conservador, passa a ser, em regra, decidido pelo próprio conservador, mantendo-se paralelamente o processo de justificação notarial previsto na lei do emparcelamento e o processo de justificação administrativa para inscrição de direitos sobre imóveis a favor do Estado.”.

A questão que se coloca é a de saber se essa transferência de competências afasta, de todo, a possibilidade de nos tribunais judiciais correr a referida ação de justificação judicial.

Afigura-se-nos que não.

Vicente J. Monteiro, em Desjudicialização da Justificação de Direitos sobre Imóveis, disponível no sítio do “CENoR”, www.fd.uc.pt/cenor, págs. 14/15, escreve que “…, as dúvidas começaram a surgir após a publicação do referido Decreto-Lei nº 273/2001, porquanto, além de outras normas legais, incluindo o citado Decreto-Lei nº 312/90, foi revogado o Decreto-Lei nº 284/84, de 22 de agosto, que era, como vimos o diploma que regulava o processo especial de justificação judicial. … Contudo, é de questionar se, no caso de o interessado que pretende justificar o seu direito contra determinado titular inscrito, que já sabe que se vai opor à sua pretensão, eventualmente por questões de animosidade pessoal, pode ou não instaurar ação declarativa, nomeadamente de reivindicação, invocando a usucapião. É que, se ele começar por instaurar um processo de justificação no registo predial, já se sabe que é necessário proceder à notificação do titular inscrito, e se este se opuser o conservador deve declarar o processo por findo, nos termos do nº 2 do art. 117º-H, restando-lhe o recurso aos meios judiciais. Por isso, entendo que a invocada incompetência dos tribunais deve ser avaliada com a devida parcimónia, devendo evitar-se atos e procedimentos inúteis no registo, quando já se sabe que vai haver algum tipo de oposição, devendo, nesse caso, instaurar-se desde logo a competente ação declarativa, revelando o interessado na petição os factos em que assenta o seu direito e pedindo que o réu seja notificado para contestar”.

Ou seja, prevendo o requerente que o(s) requerido(s) se vai opor à sua pretensão, nada obstará a que lance logo mão da respetiva ação judicial.

Não será a situação em causa, uma vez que os apelantes alegam na PI que estão na posse dos imóveis desde 12.7.2002 de forma pública e pacifica, portanto, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos requeridos.

Também no Ac. da RC. de 7.9.2010 (Virgílio Mateus), em www.dgsi.pt, se sumariou que: “1. - Em virtude do direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo o direito corresponder a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, segue-se que a competência material do tribunal judicial para reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância de os AA. terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs.) para efeitos de registo. 2. É da competência material dos Tribunais, e não da Conservatória do Registo Predial, uma ação em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, e cumulativamente o pedido de reconhecimento de que o prédio comprado é diverso daquele em relação ao qual obtiveram a inscrição de aquisição”.

Os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, conforme dispõe o art. 211º, nº 1 da Constituição.

A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo A. na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e, também, o pedido formulado, não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas do autor, como resulta do art. 5º, nº 3 do CPC [Neste sentido cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 14.05.2009, P. 09S0232 (Sousa Peixoto), in www.dgsi.pt].

Referia o Prof. Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91 que “a competência do tribunal – ensina Redenti – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objetivos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” [...].

Ora, ponderando o que supra se deixou escrito, os pedidos formulados pelos Requerentes, nomeadamente, o expresso em último lugar [...], tendo em conta a factualidade alegada, afigura-se-nos estarmos perante uma situação em que àqueles será lícito recorrer aos tribunais judiciais para definir o seu alegado direito, com força de caso julgado.

Em conclusão, procede a apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida, declarando-se competente o juízo central cível para conhecer a presente ação, que deverá prosseguir os seus termos".


*3. [Comentário] A situação analisada no acórdão respeita ao direito de acção dos demandantes. No direito português, pode ser vista pela perspectiva do disposto no art. 535.º, n.º 1, CPC: se o réu não contestar, a custas ficam a cargo do autor vencedor. Noutros ambientes legislativos, a questão seria apreciada pela óptica do interesse processual.

Menos feliz é misturar a questão com a da competência do tribunal.

MTS 


24/06/2021

Legislação (208)


Administradores judiciais;
bases de dados, acesso
 
-- P 126/2021, de 24/6: Regulamenta a consulta direta, pelos administradores judiciais, às bases de dados da administração tributária, da segurança social, da Caixa Geral de Aposentações, do Fundo de Garantia Salarial, do registo predial, do registo comercial, do registo automóvel, do registo civil e de outros registos ou arquivos semelhantes




Jurisprudência 2021 (1)


Execução: apoio judiciário;
custas; honorários*


I. O sumário de RE 14/1/2021 (2004/16.2T8LLE-C.E1) é o seguinte:

1 - Na execução em que é realizado o montante da quantia exequenda à custa do produto de uma penhora, as custas, onde se incluem os honorários e as despesas suportadas pelo agente de execução, saem precípuas desse produto, ainda que o executado beneficie de apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

2 – Idêntica solução se impõe quando a quantia exequenda é satisfeita com o valor da caução prestada em substituição de uma penhora, isto é, com vista ao levantamento da mesma.


II . Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"De acordo com o disposto no artigo 529.º, n.º 1, do CPC, as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte. Por sua vez, dispõe o n.º 3 do art. 529.º que as custas de parte compreendem o que cada parte haja despendido com o processo e tenha direito a ser compensada em virtude da condenação da parte contrária, nos termos do Regulamento das Custas Processuais.

O art. 533.º, n.º 1 do mesmo diploma normativo dispõe que «Sem prejuízo do disposto no n.º 4, as custas da parte vencedora são suportadas pela parte vencida, na proporção do seu decaimento e nos termos previstos no Regulamento das Custas Judiciais»[1]. Este normativo remete para o disposto nos arts. 25.º e 26.º do Regulamento das Custas Judicias.

O art. 25.º, n.ºs 1 e 4 do RCJ, inserido no capítulo Custas de Parte e sob a epígrafe Nota justificativa, dispõe o seguinte:

«1 – Até 10 dias após o trânsito em julgado ou após a notificação de que foi obtida a totalidade do pagamento ou do produto da penhora, consoante os casos, as partes que tenham direito a custas de parte remetem para o tribunal, para a parte vencida e para o agente de execução, quando aplicável, a respetiva nota discriminativa e justificativa, sem prejuízo de esta poder vir a ser retificada para todos os efeitos legais até 10 dias após a notificação da conta de custas.
2 – (…)
3 – (…)
4 – Na ação executiva, a liquidação da responsabilidade do executado compreende as quantias indicadas na nota discriminativa, nos termos do número anterior».

Em face do disposto no art. 25.º, n.º 4, a responsabilidade do executado a liquidar abrange a quantia paga pelo exequente a título de encargos, de taxa de justiça, de despesas previamente suportadas pelo agente de execução, os honorários deste e os do mandatário.

No nº 2 do art. 533.º estão elencadas, a título meramente exemplificativo, as despesas compreendidas nas custas de parte, entre elas, os encargos efetivamente suportados pela parte e as remunerações pagas ao agente de execução e as despesas por este efetuadas.

Sobre a garantia de pagamento de custas, prevê o art. 541.º do CPC que:

«As custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução, apensos e respetiva ação declarativa saem precípuas do produto dos bens penhorados».

No normativo citado está assim consagrado o princípio da precipuidade, o qual significa que, penhorados bens ao executado, sai do seu produto, em primeiro lugar, o valor necessário ao pagamento das custas relativas à execução. Ou seja, o património do executado garante em primeiro lugar, o crédito do Estado – custas processuais - e da parte com direito a reembolso de custas de parte. O que constitui um verdadeiro privilégio creditório – neste sentido, vd. Ac. RP de 11.05.2020, processo n.º 2835/13.5TBGDM-D.P1 [...].

Por sua vez, dispõe o art. 721.º, n.º 1, do CPC que:

«Os honorários devidos ao agente de execução e o reembolso das despesas por ele efetuadas, bem como os débitos a terceiros que a venda executiva dê origem, são suportados pelo exequente, podendo este reclamar o seu reembolso ao executado nos casos em que não seja possível aplicar o disposto no art. 541.º».

 Também o artigo 45º, nº 2, da Portaria 282/2013, de 29 de agosto – diploma que regulamenta vários aspetos das ações executivas cíveis - dispõe que:

«Nos casos em que o pagamento das quantias devidas a título de honorários e despesas do agente de execução não possa ser satisfeito através do produto dos bens penhorados ou pelos valores depositados à ordem do agente de execução decorrentes do pagamento voluntário, integral ou em prestações, realizados através do agente de execução, os honorários devidos ao agente de execução e o reembolso das despesas por ele efetuadas, bem como os débitos a terceiros a que a venda executiva dê origem, são suportados pelo autor ou exequente, podendo este reclamar o seu reembolso ao réu ou executado».

Resulta assim do cotejo das normas supra citadas que no pagamento dos honorários e despesas ao agente de execução a primeira regra é a da sua precipuidade (art. 541º) e no caso de aqueles encargos não puderem ser satisfeitos com o produto dos bens penhorados ou com os valores depositados decorrentes do pagamento voluntário, serão suportados pelo exequente (o qual, refira-se tem sempre de adiantar aqueles valores sob pena de a exceição não prosseguir), podendo este reclamá-los do executado.

Quid juris se o executado beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo? Deverá, ainda assim, o executado responder pela satisfação dos honorários e despesas do agente de execução através da afetação do produto da venda dos bens penhorados ao seu pagamento?

Essa é a questão que se coloca no presente recurso e cuja resposta não se mostra pacífica na jurisprudência.

A posição que julgamos ser maioritária e que se mostra expressa, designadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.11.2020 [Processo n.º 500/09.7TBSRT.1.C1 [...], entende que ao executado a quem foi concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e dos encargos do processo não terá de pagar custas, não lhe podendo ser cobradas as quantias devidas a título de honorários e despesas com o agente de execução, seja pela via do seu pagamento prioritário pelo produto dos bens penhorados (artigo 541.º CPC), seja por reclamação do exequente a título de custas de parte (artigo 721.º), não devendo ser incluídas na liquidação da responsabilidade do executado no caso de pagamento voluntário da quantia exequenda (artigo 847.º).

Já em outros arestos, designadamente no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.05.2020 supra referido se entendeu que numa execução em que é realizado o montante da quantia exequenda pelo produto dos bens penhorados ao executado, as custas, onde se incluem os honorário e as despesas suportadas pelo agente de execução, saem precípuas desse produto, ainda que o executado beneficie de apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Sufragamos esta última posição.

O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido por força da sua condição social ou cultural ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos (art.º 1 da Lei n.º 34/2004, de 29.07).

O apoio judiciário constitui uma das vertentes em que se desdobra a proteção jurídica – a qual visa precisamente a concretização do direito de acesso ao direito e aos tribunais o qual tem consagração constitucional; art. 12.º da CR -, abrangendo o patrocínio judiciário e a assistência judiciária. Esta última pode traduzir-se na dispensa de taxa de justiça de demais encargos com o processo.

O princípio da precipuidade previsto no art. 541.º do CPC em nada contende com o direito de acesso ao direito e aos tribunais. Com efeito, quando se chega à venda executiva é porque não houve oposição à execução ou esta foi julgada improcedente, pelo que nesta fase do processo executivo já se sabe que o executado é o responsável final pelas custas do processo, pelo que o seu direito a defender-se no processo não é afetado pelo facto de o seu património responder pelas custas do processo executivo. Por conseguinte, o direito de acesso ao direito e aos tribunais, que o apoio judiciário na modalidade de dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o processo visa garantir, já não será postergado pelo facto de se retirar do produto da venda dos bens penhorados os valores necessários ao pagamento das custas do processo.

Como se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto acima citado, «se o direito do credor comum é satisfeito sem que tal inculque a ideia de que o devedor fica afetado na satisfação das suas necessidades básicas – o que é obviado através da regra da impenhorabilidade – artigos 737.º e 738.º do CPCivil – não faria sentido que o crédito do Estado, contrapartida da prestação de um serviço comunitário essencial, eivado de cariz eminentemente social, qual seja a administração da justiça, ficasse por satisfazer.

É que o artigo 541.º do CPCivil acaba por ser um mero reflexo do disposto nos artigos 738.º, nº 1 e 746.º do C. Civil, que estabelecem um privilégio creditório por despesas de justiça feitas para conservação, execução ou liquidação desses bens diretamente no interesse comum dos credores, como aqui acontece, o qual tem preferência sobre os demais privilégios ou outras garantias que onerem esses bens».

Por conseguinte, mesmo que o executado beneficie de apoio judiciário na modalidade acima mencionada, o produto da venda dos bens que lhe foram penhorados no âmbito da execução não deixarão de responder pelas custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução.

O caso concreto tem uma variante: o valor depositado nos autos não resulta apenas da realização de uma penhora mas também de uma caução prestada pela executada através de depósito bancário à ordem do agente de execução em substituição da penhora sobre um imóvel, ao abrigo do disposto no art. 751.º, n.º 8, do CPC (com efeito, nos autos, encontra-se depositado o montante global de € 36.604,67, do qual € 1.231,37 é fruto de penhora e o remanescente é fruto da prestação de caução).

Ao depósito da quantia de € 35.373,30 (valor da caução prestada pela executada) há, todavia, que aplicar o regime previsto no artigo 541.º do CPC, na medida em que o mesmo se destinou a substituir a penhora de um imóvel da executada. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 650.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 733.º, n.º 6, do mesmo diploma normativo, a caução só pode ser libertada se o executado provar que pagou a obrigação exequenda, no prazo ali referido; não o provando, o montante prestado a título de caução é utilizado para satisfação da quantia exequenda. Quer isto dizer que o valor depositado a título de caução responde pela satisfação da quantia exequenda tal qual o valor resultante da venda do(s) bem penhorado que a caução visou substituir."


*III. [Comentário] Embora se trate de uma matéria sempre duvidosa, há que considerar, na apreciação do caso sub iudice, o disposto no art. 4.º, n.º 7, RCP, segundo o qual "com excepção dos casos de insuficiência económica, nos termos da lei de acesso ao direito e aos tribunais, a isenção de custas não abrange os reembolsos à parte vencedora a título de custas de parte, que, naqueles casos, as suportará". O preceito mostra que, tendo sido concedido apoio judiciário, o beneficiário goza de isenção do pagamento de custas de parte. É também este o sentido da pronúncia de TC 22/4/2020 (233/2020).

MTS

[Comentário actualizado em 25/6/2021]

23/06/2021

Jurisprudência 2020 (238)


Transacção;
interpretação


1. O sumário de RP 17/12/2020 (19355/19.7T8PRT.P1) é o seguinte:

I - A transacção está sujeita à disciplina dos contratos (arts. 405.º e segs) e ao regime geral dos negócios jurídicos (arts. 217.º e segs)”. A sua finalidade é “prevenir ou terminar um litígio”, admitindo a lei que a transacção possa ter lugar, não só estando a causa pendente, mas também antes da propositura da acção judicial, mas não dispensando “uma controvérsia entre as partes (cfr. n.º 2), como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro”.

II - Tendo por objecto “recíprocas concessões”, na transacção não há desistência plena, nem reconhecimento pleno do direito, nem o ânimo de fixar ou determinar a situação jurídica anterior das partes. As concessões recíprocas podem revelar-se sob dois aspectos: podem as partes transigir ou reduzir o direito controvertido, ou, podem, constituir, modificar ou extinguir um direito diverso do controvertido.

III - Para resolver as dúvidas que a interpretação das declarações de vontade expressas na transacção suscita, terá que atender-se aos critérios legais de interpretação dos negócios jurídicos estabelecidos no artigo 236.º, n.º1, do C.C., preceito que acolhe a denominada doutrina objectivista da “teoria da impressão do destinatário”, segundo a qual a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário.

IV - Na interpretação da declaração em causa a doutrina da impressão do destinatário reclama que se atendam a todas as circunstâncias relacionadas com os termos do negócio celebrado, ou seja, é necessário atender, na sua globalidade, ao contexto factual em que a mesma foi emitida.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 1248.º, do CC, o seguinte:

1. Transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.
2. As concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido

Servindo-nos do ensinamento de Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1986, p. 856] em anotação àquele artigo, elucidam os autores que “[C]onsiderada como contrato, a transacção está sujeita à disciplina dos contratos (arts. 405.º e segs) e ao regime geral dos negócios jurídicos (arts. 217.º e segs)”. A sua finalidade é “prevenir ou terminar um litígio”, admitindo a lei que a transacção possa ter lugar, não só estando a causa pendente, mas também antes da propositura da acção judicial, mas não dispensando “uma controvérsia entre as partes (cfr. n.º 2), como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro”. Tendo por objecto “recíprocas concessões”, na transacção não há desistência plena, nem reconhecimento pleno do direito, nem o ânimo de fixar ou determinar a situação jurídica anterior das partes: “a ideia básica dos contraentes é a de concederem mutuamente e não a de fixarem rigidamente os termos reais da situação controvertida (..)”. As concessões recíprocas podem revelar-se sob dois aspectos: podem as partes transigir ou reduzir o direito controvertido, ou, podem, constituir, modificar ou extinguir um direito diverso do controvertido.

Sendo efetuada em acta, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 291.º, CPC, cabe ao juiz verificar se a transação é válida pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, nesse caso limitando-se homologá-la por sentença, ditada para a acta, condenando nos respetivos termos. A função dessa sentença não é a de apreciar ou decidir as razões e argumentos das partes sobre a respetiva controvérsia substancial, mas apenas a de verificar/fiscalizar a regularidade e a validade do acordo, pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nele intervieram.

Daí que, como de resto resulta do n.º 1 do artigo 1248º do CC, se possa dizer que a fonte real da resolução do litígio não é nestes casos propriamente a sentença homologatória, mas o acto de vontade das partes, convergindo no sentido de celebrarem um contrato de transação, mediante recíprocas concessões.

Estando em causa uma transacção judicial homologada por decisão transitada em julgado, na sua interpretação, ou seja, na determinação do conteúdo das declarações de vontade das partes, importará atender ao disposto no art.º 238.º do C.C., dispondo o seguinte:

Artigo 238.º (Negócios formais)
1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.

Por outro lado, concomitantemente, com vista a resolver as dúvidas que a interpretação das declarações de vontade expressas na transacção suscita, terá que atender-se aos critérios legais de interpretação dos negócios jurídicos estabelecidos no artigo 236.º, n.º1, do C.C. nos termos do qual “[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante”, preceito que acolhe a denominada doutrina objectivista da “teoria da impressão do destinatário”, segundo a qual a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria, temperada pelo disposto no n.º 2, nos termos do qual, “[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida” [Cfr. Acórdão do STJ de 25-02-2009, n.º convencional 08P2057, Conselheiro Sousa Peixoto, disponível em www.dgsi.pt].
Importa ter presente que a transacção em causa foi celebrada no âmbito de um outro processo, nomeadamente, com o nº 7392/19.6T8VNG, que correu termos no mesmo Tribunal, no qual a Autora, aqui recorrente, demandou a Ré, em 27-09-2019, em ação declarativa comum emergente do contrato de trabalho, pedindo a condenação daquela no pagamento da quantia de €2.851,44 a título de créditos salariais: compensação pela caducidade do contrato, retribuição de férias, subsídio de férias e de Natal e retribuição pela formação profissional não ministrada.

As partes transigiram na audiência de partes desse processo, realizada em 14-11-2019, não sendo despiciendo assinalar que da respectiva acta - junta pela Ré a este processo e não impugnada - , resulta que a autora estava representada por mandatário forense constituído.

O conteúdo global da transacção é o que consta transcrito nos factos provados, estando em causa a interpretação da cláusula 3.ª, na qual as partes fizeram consignar o seguinte:

- “Com o pagamento integral da quantia mencionada em 1º), as partes declaram nada mais a haver ou reclamar uma da outra, por força do contrato de trabalho que constitui objeto dos presentes autos”.

Está em causa apreciar se o tribunal a quo decidiu correctamente ao interpretar esta cláusula no sentido de que “tem inequivocamente o significado de que nenhuma das partes, nomeadamente, a trabalhadora reclamará da outra qualquer outra quantia, além dos 650,00 acordados, por qualquer litígio emergente do contrato de trabalho, seja por créditos salariais, seja por qualquer dano, inclusive, não patrimonial emergente da relação laboral”.

Em conformidade com o que se deixou expendido, na interpretação da declaração em causa a doutrina da impressão do destinatário reclama que se atendam a todas as circunstâncias relacionadas com os termos do negócio celebrado, ou seja, é necessário atender, na sua globalidade, ao contexto factual em que a mesma foi emitida.

Nas elucidativas palavras de Mota Pinto [Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª edição, páginas 447/448], na interpretação da declaração negocial “releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer”.

Assinala o tribunal a quo, com pertinência, que “nada nos autos revela que a vontade das partes, nomeadamente da Autora, não foi livre e esclarecida”. De resto, nem tão pouco “é invocado qualquer vício da vontade, nomeadamente, o erro”.

Mencionámos, por também relevar para este ponto, que a autora estava patrocinada por mandatário judicial no acto em que transigiu, o que vale por dizer que estaria devidamente elucidada dos seus direitos e do sentido e alcance da declaração que emitiu ao aceitar transigir naqueles termos.

Para além dessa circunstância, como também bem refere o tribunal a quo, cabe também ter presente que a autora sabia bem que entretanto já tinha proposto a presente acção – em 01-10-2019 -, mas em contraponto a Ré ignorava-o, visto que só foi citada em 31-12-2019.

Argumenta a recorrente que “O objeto do presente litígio diverge completamente daquele que serviu por base à transação celebrada, não podendo qualquer cláusula da mesma justificar uma absolvição do pedido na presente ação”.

Mas o Tribunal a quo também não descurou isso, consignando na fundamentação o seguinte:

- «É certo que na ação em causa apenas foram reclamados créditos salariais - compensação pela caducidade do contrato, retribuição de férias, subsídio de férias e de natal e retribuição pela formação profissional não ministrada. (…). E evidentemente, esta ação embora tenha uma causa de pedir diversa da anterior, funda-se também ela na relação laboral/contrato de trabalho estabelecida entre as partes.».

Com efeito, os pedidos formulados nas duas acções são diferentes, mas no que concerne às causas de pedir a diferença é apenas parcial, pois em qualquer dos casos as acções partilham um facto fundamental, também ele integrante das respectivas causas de pedir, em concreto, a relação contratual de trabalho subordinada que vigorou entre as partes.

Ao convergir com a Ré, de modo a ficar expresso na cláusula 3.ª que “as partes declaram nada mais a haver ou reclamar uma da outra, por força do contrato de trabalho que constitui objeto dos presentes autos”, a autora bem sabia que tinha proposto a presente acção contra a Ré e não podia ignorar o sentido da declaração que estava a emitir. Na normalidade das coisas e para uma pessoa de normal diligência, ademais com o apoio técnico de profissional do foro, o sentido literal da declaração é inequívoco.

E, para além disso, note-se, essa interpretação é legítima e perfeitamente compreensível, pois como ficou acima dito pelas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, sendo a transacção um contrato, podem as partes livremente “constituir, modificar ou extinguir um direito diverso do controvertido”.

Justamente por isso, a A. não podia também ignorar, nem descurar, que a Ré estava a aceitar a celebração da transacção consigo, no pressuposto de que nada mais lhe seria reclamado por ela, fosse a que título fosse, com fundamento na relação de trabalho já cessada. No circunstancialismo descrito, qualquer declaratário normal, colocado na posição concreta da Ré, perante a declaração assumida pela autora na transacção, não deixaria de fazer aquela interpretação, isto é, assumindo que aquela estava expressa e inequivocamente a renunciar à reclamação de quaisquer eventuais direitos fundados no contrato de trabalho que porventura ainda entendesse subsistirem.

Dai que, com acerto, refere-se na fundamentação da decisão recorrida, o seguinte:

- «Um declaratório normal, colocado na posição da ré, interpretaria a referida cláusula contratual no sentido ora exposto, pois não só não foi ressalvado qualquer dano emergente (de qualquer natureza) da relação laboral sofrido pela Autora, nem salvaguardada a manutenção da ação em curso e que já havia sido instaurada, como não está demonstrado que a ré soubesse da existência da mesma, nomeadamente porque não havia ainda sido citado para aquela.

Assim, caso a Autora pretende-se no momento da transação ocorrida salvaguardar a ação pendente, deveria ter ressalvado tal situação na cláusula redigida. Desse modo, caso assim o entendesse e para ter a certeza que não poria fim ao litígio, que ainda não era do conhecimento da Ré, deveria ter expressamente exigido para a realização do acordo uma cláusula que salvaguardasse tal situação como seja “Com o pagamento integral da quantia mencionada em 1º), as partes declaram nada mais a haver ou reclamar uma da outra, por força do contrato de trabalho que constitui objeto dos presentes autos, sem prejuízo da resolução a alcançar na ação que corre termos sob o nº 19355/19.7T8PRT”.

Na verdade, não podendo a Autora deixar de estar ciente sobre o sentido que a ré atribuiria à sua declaração, na normalidade das coisas e para uma pessoa de normal diligência, caso quisesse salvaguardar o prosseguimento da presente acção, isto é, excluindo-a do âmbito daquela transacção, então deveria ter cuidado de ressalvar essa vontade, quer através de uma cláusula com redacção diversa, quer acrescentando uma outra cláusula, p. ex., como a sugerida pelo tribunal a quo.


[MTS]


22/06/2021

Jurisprudência constitucional (201)


Exoneração do passivo restante;
apoio judiciário


1. TC 15/6/2021 (418/2021) decidiu:

[...] declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.º 1 e 13.º, n.º 2 da Constituição, da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.




Jurisprudência europeia (TJ) (237)


Reenvio prejudicial – Cooperação judiciária em matéria civil – Reg. 1215/2012 – Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial – Artigo 7.°, ponto 2 – Competência especial em matéria extracontratual – Lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso – Pessoa que invoca a violação dos seus direitos de personalidade decorrente da publicação de um artigo na Internet – Lugar da materialização do dano – Centro de interesses desta pessoa


TC 17/6/2021 (C‑800/19, Mittelbayerischer Verlag/SM) decidiu o seguinte:

O artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que o tribunal do lugar onde se encontra o centro de interesses de uma pessoa que alega que os seus direitos de personalidade foram violados por um conteúdo colocado em linha num sítio Internet só é competente para conhecer, a título da totalidade do dano alegado, de uma ação de indemnização intentada por essa pessoa se esse conteúdo tiver elementos objetivos e verificáveis que permitam identificar, direta ou indiretamente, a referida pessoa enquanto indivíduo.


Jurisprudência 2020 (237)


Perícia particular;
valor probatório


1. O sumário de RL 15/12/2020 (7090/10.6TBSXL-B.L1-7) é, na parte agora relevante, o seguinte:

I- Constitui procedimento incorreto dar como provado facto que integra a reprodução textual do teor de relatório de avaliação psicológica feito a pedido da mãe porquanto: (i) os relatórios em causa têm a matriz e natureza substantiva de uma prova pericial particular, figura não reconhecida na nossa legislação; (ii) não foi observada a metodologia própria para a avaliação pericial no âmbito do exercício das responsabilidades parentais; (iii) a reprodução singela do teor dos relatórios como facto provado constitui uma forma de esquiva à formulação de um juízo crítico sobre os mesmos, constituindo uma fusão inadmissível entre o meio de prova e o facto provado a que aquele se dirige; (iv) tais relatórios estão desatualizados, reportando-se a um período superior a um ano antes do julgamento. [...].


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O tribunal a quo deu como provado sob 9 o teor de dois relatórios realizados por psicóloga clínica, na sequência de análise que tal psicóloga fez aos menores. A metodologia adotada, neste circunspecto, pelo tribunal a quo não é aceitável, quer por razões processuais quer por razões de fundo.

Em primeiro lugar, os relatórios em causa têm a matriz e natureza substantiva de uma prova pericial particular, figura não reconhecida na nossa legislação, ao contrário do que acontece, por exemplo, em Espanha. Ou seja, o que a mãe dos menores quis fazer – e fez – foi uma perícia particular aos menores, fora do quadro das perícias legalmente previstas para estes casos (cf. Artigos 42º, nº6, do RGPTC e 467º, nº3, do Código de Processo Civil).[«Pretendendo um dos progenitores infirmar as conclusões de relatório psicológico realizado por estabelecimento hospitalar, por determinação do juiz, caber-lhe-á reclamar daquele ou requerer segunda perícia, não podendo pura e simplesmente contraditá-lo, por via da junção aos autos de relatório psicológico elaborado por psicólogo que lhe presta serviços» - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.7.2017, Ezaguy Martins, 12010/14] Este processo foi instaurado em 12.11.2018 e a avaliação em causa decorreu entre dezembro de 2018 e janeiro de 2019 (fls. 33 v.).

Em segundo lugar, não foi observada a metodologia própria para a avaliação pericial no âmbito do exercício das responsabilidades parentais, a qual pressupõe «(…) a realização de entrevistas individuais e conjuntas com os pais, entrevistas individuais e conjuntas com a(s) criança(s), e a observação das interações entre os diversos membros do sistema familiar (…). O processo deve ainda ser complementado com a recolha de informação junto de fontes colaterais, da rede formal ou informal» - Rute Agulhas e Alexandra Anciães, “Avaliação pericial no âmbito do exercício das responsabilidades parentais. Que contribuição para a atribuição de residência alternada?”, in Sofia Marinho e Sónia Vladimira Correia, Uma Família Parental, Duas Casas, Edições Sílabo, 2017, p. 210. Ou seja, a psicóloga clínica não observou o protocolo necessário à realização de prova pericial neste âmbito, não constando do relatório a observação de interações da mãe com os menores, nem tendo sido entrevistado o pai, cuja ausência só ganharia relevância atendível no âmbito de uma perícia ordenada pelo tribunal.

Em terceiro lugar, no âmbito da valoração da prova, há que cindir entre fonte de prova, meio de prova (instrumento de que o juiz se serve para verificar as afirmações fácticas das partes), convicção firmada sobre o meio de prova e subsequente facto provado (cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2020, pp. 7-8, 55-63; Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Noções de Psicologia do Testemunho, 2ª ed., 2020, pp. 379-390). No caso, a fonte de prova foram os menores e o meio de prova –admitido pelo tribunal – foram os “relatórios de avaliação psicológica” dos menores elaborados pela psicóloga clínica. Tais relatórios, como qualquer meio de prova, devem ser objeto de um juízo crítico para apreciação do seu valor persuasivo quanto à ocorrência dos factos sob discussão nos autos, devendo o julgador exarar as razões pelas quais os relatórios devem, ou não, ser relevados. Após a formulação desse juízo crítico, o tribunal deve exarar quais os factos que considera provados com base no meio de prova, no caso, nos relatórios de avaliação psicológica. Todavia, os meios de prova não são factos, mas instrumentos processuais para a prova de factos, de modo que o que o tribunal deve considerar, ou não, como provados são factos autónomos e não a reprodução dos meios de prova. Vale isto por dizer que não constitui procedimento correto reproduzir, textualmente, o teor dos relatórios (=meio de prova), devendo, isso sim, enumerar-se factos provados, os quais poderão estar sustentados nesse meio de prova. Deste modo, não devia o tribunal a quo ter reproduzido, textualmente, os relatórios, mas sim ter enunciado factos provados com redação própria (por exemplo, o que foi feito no facto provado sob 11), atendendo ao teor dos relatórios, caso concluísse pela sua atendibilidade e relevância (cf. Artigo 986º, nº 2, do Código de Processo Civil). A reprodução singela do teor dos relatórios como facto provado constitui uma forma de esquiva à formulação de um juízo crítico sobre os mesmos, constituindo uma fusão inadmissível entre o meio de prova e o facto provado a que aquele se dirige.

Em quarto lugar, os relatórios em causa foram elaborados entre dezembro de 2018 e janeiro de 2009, tendo decorrido a sessão de julgamento em 4.2.2020 e datando a sentença de 30.3.2020. Existe um hiato temporal significativo entre a elaboração de tais relatórios e o julgamento, sendo que a própria psicóloga que elaborou os relatórios afirmou, no seu depoimento, que “um ano na vida das crianças é muito tempo”. Daqui também se infere que, mesmo a relevarem-se tais relatórios, os mesmos não estariam atualizados à data da sentença. Foi por esta mesma ordem de razões, que a própria psicóloga afirmou, no seu depoimento, que procedeu à reinquirição dos menores cerca de um mês antes do julgamento.

Por toda esta ordem de razões, entendemos que não pode ser dado como provado o facto 9, devendo o mesmo ser suprimido."


[MTS]


21/06/2021

Jurisprudência 2020 (236)


Acordo de honorários;
laudo de honorários


1. O sumário de RL 15/12/2020 (83436/18.3YIPRT-A.L1-7) é o seguinte:

Deve ser revogado o despacho que indeferiu a realização de laudo de honorários de advogado com fundamento no (alegado) facto das partes terem convencionado o valor/hora de honorários porquanto:

i. Não são pacíficos os termos da alegada convenção nem se pode ter por adquirida a prova de tal convenção de honorários na medida em que é defensável que o acordo prévio sobre honorários de advogado está sujeito à forma escrita, e a redução a escrito desse acordo constitui uma formalidade ad substantiam;

ii. A articulação interpretativa do artigo 100º, nºs 1 e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados [atual Artigo 105º do EOA aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9.9], concatenada com o Regulamento dos Laudos da Ordem dos Advogados, não exclui que um juiz possa solicitar a emissão de um laudo de honorários, mesmo estando em causa uma “convenção prévia” de honorários, referindo-se esse laudo à adequação pelos serviços efetivamente prestados, cobertos por essa convenção;

iii. «A credibilidade que merece o laudo de honorários, só deve ser posta em causa quando ocorram factos suficientemente fortes que abalem aquela credibilidade.»


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O despacho impugnado firmou-se na asserção de que as partes fizeram uma convenção sobre o valor dos honorários, razão pela qual é dispensável o laudo de honorários. Não subscrevemos o raciocínio do tribunal a quo por várias ordens de razões.

Em primeiro lugar, não são pacíficos os termos da convenção nem se pode ter por adquirida a prova de tal convenção de honorários. Atentas as alegações do autor e do requerido, tudo indica que tal convenção terá sido meramente verbal.

Ora, conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.6.2020, Diogo Ravara, 12197/18, o acordo prévio sobre honorários de advogado está sujeito à forma escrita, e a redução a escrito desse acordo constitui uma formalidade ad substantiam, razão pela qual o mesmo só pode provar-se por meio de documento ou por meio de prova de valor superior, nomeadamente confissão.

Mais aí se expende que:

«Quando a lei exige como forma de declaração negocial um documento escrito, este não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior – art. 364.º, n.º 1 do C.C..

Não resulta claramente do n.º 2 do art. 100-º do EOA, que o documento ali exigido é apenas para prova da declaração das partes, funcionando como exceção prevista no n.º 2 do citado art. 364.º. A determinação da exceção – resulta claramente da lei que o documento é exigido apenas para a prova da declaração –, conduz-nos à interpretação da lei (art. 9.º do C.C.).

O ajuste prévio escrito obriga as partes a refletir sobre o conteúdo do negócio e a consequência dos seus atos, defendendo-as contra a sua ligeireza ou precipitação, permitindo uma formulação precisa e completa da vontade das partes.

O advogado tem interesse em fixar previamente os seus honorários, para no futuro, cessada a prestação da sua atividade, não debater com o cliente o valor e o pagamento dos mesmos. Por sua vez, o cliente orçamenta a despesa e é nesse pressuposto que contrata o advogado.

Contrariamente ao defendido no douto acórdão em análise, entendemos que, salvo melhor opinião em contrário, a exigência legal de documento para a convenção prévia (art. 100.º, n.º 2 do EOA) constitui elemento do contrato, isto é, formalidade ad substantiam, nos termos do art.º 364.º, n.º 1, do Cód. Civil.”

Reportando-se também à exigência da forma escrita, em termos que implicitamente parecem apontar para a sua qualificação como formalidade ad substantiam, vd. igualmente ac. RP 10-11-2015 (Fernando Samões), p. 7302/08.6TBMTS.P1.

Havendo que tomar posição, aderimos resolutamente à ultima tese descrita.

Na verdade, quer a letra do preceito em apreço (nº 2 do art. 67º do EOA), quer o seu espírito sustentam a conclusão de que a referência a acordo escrito traduz uma exigência de forma especial da declaração que configura uma formalidade ad substantiam.

Uma tal interpretação apoia-se em duas circunstâncias:

- Por um lado, trata-se de uma matéria que importa rodear de particulares cautelas, até por necessidade de segurança e certeza.

- Por outro lado, a prova testemunhal sempre se revestiria de dificuldades especiais, na medida em que muito dificilmente tal acordo seria presenciado por terceiros.

Nesta conformidade concluímos que o acordo sobre honorários a que se reporta o art. 67º, nº 2 do EOA está sujeito a forma escrita, e que tal exigência corresponde a uma formalidade ad substantiam, razão pela qual não pode provar-se por testemunhas – arts. 219º, 2ª parte, 220º, e 393º, nº 1 do CC.»

Em segundo lugar, mesmo que se logre provar tal convenção de honorários, daí não resulta – sem mais – que seja impertinente a formulação de laudo de honorários.

Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7.2.2012, Teles Pereira, 897/07, a articulação interpretativa do artigo 100º, nºs 1 e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados [atual Artigo 105º do EOA aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9.9], concatenada com o Regulamento dos Laudos da Ordem dos Advogados, não exclui que um juiz possa solicitar a emissão de um laudo de honorários pela Ordem, mesmo estando em causa uma “convenção prévia” de honorários, referindo-se esse laudo à adequação pelos serviços efetivamente prestados, cobertos por essa convenção. Com efeito,

«Admitir o contrário corresponderia, em última análise, ao assumir da asserção de que a remuneração dos serviços de um advogado, os honorários deste, que o EOA diz deverem “corresponder a uma compensação económica adequada pelos serviços efetivamente prestados” (artigo 100º, nº 1 do EOA), poderiam, a coberto da “convenção prévia”, assumir, sem possibilidade de controlo técnico algum, carácter exorbitante, desproporcionado e sem qualquer correspondência nos serviços efetivamente prestados – não estamos, que isso fique bem claro, a formular qualquer juízo sobre os honorários aqui em causa, cujas incidências, por se referirem a outros processos, até desconhecemos.

Semelhante asserção interpretativa (a de que nunca seria possível controlar a adequação de honorários objeto de “convenção prévia”), sendo absurda – máxime, é absurdo dizer-se ou pretender-se que um advogado pode fixar previamente remunerações totalmente desadequadas aos serviços que virá a prestar [...] – damo-la por logicamente excluída, assente no que encaramos representar uma prova (se quisermos, um argumento interpretativo) por contradição ou assente na redução ao absurdo [...].»

Em terceiro lugar, nas expressivas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.4.2015, Oliveira Vasconcelos, 4538/09, «O laudo da Ordem dos Advogados está sujeito à livre apreciação do julgador. Para determinação do seu valor probatório não pode deixar de se tomar em conta que foi elaborado por profissionais do mesmo ramo de atividade, eleitos pela assembleia geral da mesma Ordem, o que faz pressupor que possuem elevados conhecimentos técnicos para aferir, sob o ponto de vista económico, sobre o montante dos honorários devidos. / A credibilidade que merece o laudo de honorários, só deve ser posta em causa quando ocorram factos suficientemente fortes que abalem aquela credibilidade» (bold nosso). No mesmo sentido, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.2.2020, Tomé Carvalho, 4495/15.

De tudo o que fica dito infere-se que a realização do laudo de honorários é inteiramente pertinente, razão da procedência do recurso."


[MTS]