"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/09/2021

Jurisprudência 2021 (46)


Execução;
legitimidade passiva; garantia real


1. O sumário de RL 25/2/2021 (8263/19.1 T8SNT-A.L1-8) é o seguinte:

I - A aquisição da nua propriedade de um prédio, em processo de insolvência, não podia ter como consequência - como, por lapso, teve - o cancelamento da hipoteca, na sua plenitude.

II - Nos termos do disposto no artº 824º, nº 2 do CC, aplicável às insolvências por efeito do artº 165º do CIRE, com a venda no processo de insolvência ao credor reclamante o que se extingue é a hipoteca incidente sobre o bem adquirido, in casu, a nua propriedade, subsistindo a hipoteca sobre o usufruto. Não podia, pois, a hipoteca sobre o usufruto extinguir-se, uma vez que não foi objeto de apreensão e venda no processo de insolvência e, consequentemente, foi incorretamente lavrado o cancelamento (oficioso) da hipoteca registada sob a Ap. 76 de 10/02/2006 (sublinhe-se, sobre a propriedade plena).

III - Em resultado da referida venda a hipoteca registada sobre a propriedade plena ficou automaticamente limitada, no que se refere ao seu objeto, ao direito de usufruto, por força da compressão decorrente da caducidade do direito real de garantia sobre a nua propriedade.

IV - Mantendo-se o registo de hipoteca sobre o usufruto há que concluir que a executada/embargante continua a ter legitimidade (passiva) para ser demandada pelo exequente, no que respeita à hipoteca que tem por objeto o usufruto, nos termos do disposto no artº 54º, nº 2 do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A única questão a decidir é verificar se a embargante tem legitimidade passiva para o prosseguimento da execução.

A apelante pugna pela revogação e substituição da sentença recorrida por decisão que julgue os embargos improcedentes por não se encontrar demonstrada a ilegitimidade passiva da executada.

A sentença recorrida concluiu pela impossibilidade superveniente de o exequente demandar a executada, em virtude de ter deixado de possuir título material de constituição da garantia no património daquela, por efeito do cancelamento do registo da hipoteca.

As partes não discutem a existência do direito de crédito na titularidade da exequente sobre a sociedade Frutas S. S.A., por força de sucessivas cessões, nem que esse crédito foi garantido por hipoteca sobre o prédio misto, sito em G., Rua …, descrito na CRP de M. sob o n.º 423 e inscrito na matriz urbana sob o art.º 1786 (antigo 686) e na matriz rústica sob o art.º 30, Secção nº 1A., constituída por A.F., com autorização expressa do seu marido J.S., registada em 10/02/2006.

A.F. e J.S. celebraram com Ana S. uma escritura de doação de usufruto vitalício do referido imóvel (escritura de 15/05/2013), registado em 27/05/2013.

A devedora Frutas S. S.A. veio a ser declarada insolvente, tendo sido encerrado o processo por insuficiência da massa. A.F. e J.S. foram declarados insolventes, por sentença de 15/12/2015 (proc. nº 1111). Nos referidos processos foi reconhecido o direito de crédito da ora exequente.

No processo de insolvência nº 1111 veio a ser apreendida, em 24/05/2016, a favor da massa insolvente, a nua propriedade do mencionado prédio.
 
À data da instauração da execução – 18/05/2019 – mantinha-se a situação fática descrita, mormente o registo da hipoteca sobre o imóvel.
 
A hipoteca é a garantia que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, pelo valor de certas coisas imóveis ou a elas equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros (artº 686º do CC). A hipoteca carece de ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes (artº 687º CC).

”(…) encontrando-se os bens hipotecados na posse de terceiro (seja por ter sido ele quem constituiu a hipoteca, seja por ter sido ele quem adquiriu da mão de terceiros ou do devedor a coisa hipotecada), o possuidor tem legitimidade (passiva) para ser executado na execução hipotecária, apesar de não ser devedor do exequente.” [Antunes Varela, Das Obrigações em Geral,  vol. II, pág. 535]

É a exceção à regra da legitimidade consagrada no atual artº 54º, nº 2 do CPC, que dispõe que “a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.”

A hipoteca, enquanto direito real de garantia, goza do direito de sequela sobre a coisa.

O princípio da indivisibilidade da hipoteca consagrado no artº 696º do CC significa, nas palavras de Antunes Varela,[Ob. citada, pág. 539-540] que “se a hipoteca recair sobre dois ou mais prédios homogéneos, a garantia recai por inteiro sobre cada um deles e não apenas parcelarmente, ou fragmentariamente, em proporção ao valor de cada um deles (…) E o mesmo regime se aplica à hipótese de o prédio onerado com a hipoteca vir a ser dividido em dois ou mais prédios distintos. Sobre cada uma das partes do imóvel dividido ou fraccionado recai, por inteiro, o encargo da dívida assegurada.” Com este princípio “estabelece-se, supletivamente, que a garantia conserva o seu objeto originário, ainda que se verifique divisão da coisa ou do crédito, ou este se encontre em parte extinto, assim como, sendo oneradas várias coisas, cada uma delas responde pela dívida inteira” [Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 802)]

À data da instauração da execução é inquestionável que se mostravam verificados os requisitos exigidos pelo artº 54º, nº 2 do CPC para que a executada fosse demandada com vista ao pagamento da quantia exequenda, pois apesar de ser terceira face à dívida exequenda, não tinha essa posição em relação ao processo executivo.

Posteriormente à instauração da execução ocorreu o seguinte:

- no âmbito do processo de insolvência nº 1111 foi adjudicado ao credor reclamante, ora exequente, a nua propriedade do imóvel, aquisição formalizada mediante escritura de compra e venda outorgada em 08/07/2019, e registada em 02/09/2019 (Ap. 314);

- a Conservatória do Registo Predial, oficiosamente, em 02/09/2019, lavrou averbamento à Ap. 314, de cancelamento do registo da hipoteca (Ap. 76 de 10/02/2006);

- a CRP lavrou averbamento de retificação à Ap. 314 – de cancelamento da Ap. 76 de 10/02/2006 – inscrevendo o cancelamento do averbamento oficioso anteriormente efetuado à Ap. 314 e inscrevendo quanto à Ap. 76 “cancelada quanto à nua propriedade”.

Verifica-se, assim, que decorrente da retificação efetuada se mantém o registo da hipoteca sobre o usufruto. E de outro modo não poderia ser, pois a aquisição da nua propriedade, no processo de insolvência, não podia ter como consequência, como, por lapso, teve, o cancelamento da hipoteca, na sua plenitude. Da constituição do usufruto e respetivo registo em data posterior ao registo da hipoteca não pode resultar perda de garantia para o credor hipotecário, que foi constituída sobre a propriedade plena, atentos os princípios da indivisibilidade da hipoteca (artº 686º do CC.) e da anterioridade do registo (artº 6º, nº 1 do CRP).

É que ao invés do defendido pela apelada na petição de embargos e nas contra-alegações, o que se extingue com a venda em execução, por força do disposto no artº 824º, nº 2 do CC, aplicável às insolvências por efeito do artº 165º do CIRE, é a hipoteca incidente sobre o bem adquirido. E dúvidas não existem de que, tendo sido apreendida na insolvência apenas a nua propriedade, apenas esta foi adquirida pelo ali credor reclamante e aqui exequente. Com a venda da nua propriedade no processo de insolvência ao credor reclamante extinguiu-se a hipoteca incidente sobre a parte do objeto da venda – a nua propriedade – isto é, subsiste a hipoteca sobre o usufruto. Não podia, pois, a hipoteca sobre o usufruto extinguir-se, uma vez que não foi objeto de apreensão e venda no processo de insolvência e, consequentemente, foi incorretamente lavrado o cancelamento (oficioso) da hipoteca registada sob a Ap. 76 de 10/02/2006 (sublinhe-se, sobre a propriedade plena).

Sob a epígrafe “venda em execução” estabelece o artº 824º do CC que “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo (nº 2). Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens” (nº 3).

“(…) há que distinguir duas espécies de direitos que incidam sobre os bens vendidos. Os de garantia caducam todos; os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias.” [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol II, pág. 87]

Assim, com a venda em processo de insolvência da nua propriedade do prédio a hipoteca sobre a nua propriedade caducou, mas a que incide sobre o direito de usufruto mantém-se.

Tal assim ocorre in casu uma vez que na insolvência apenas foi apreendida a nua propriedade do imóvel. Todavia, nada impedia que a apreensão e subsequente venda tivesse incidido sobre a propriedade plena, uma vez que esta constituía o objeto da hipoteca, registada em data anterior ao direito real de gozo, o usufruto, e como tal sendo este ineficaz em relação ao credor hipotecário, por força da natureza erga omnes e da sequela, características da hipoteca. Nesta situação caducaria o usufruto (artº 824º, nº 2 CC) e o direito da executada transferir-se-ia para o produto da venda (nº 3).[...]

“Em qualquer destas hipóteses, a lei determina que os bens se transmitem livres do direito real do terceiro, o que é o mesmo que dizer que se transmite a propriedade plena e não apenas o direito real menor de gozo do executado (no nosso exemplo: a propriedade de raiz, direito de propriedade limitado pelo usufruto).”[Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, pág. 391]

“Tendo a hipoteca, a favor do credor reclamante, sido registada em data anterior à do registo de usufruto que foi objecto de penhora, tal garantia hipotecária também incide sobre o usufruto, razão pela qual, em face dessa garantia, tem esse credor reclamante o direito de ver reconhecido o seu crédito e de ser pago em primeiro lugar, à frente do exequente, pelo produto da venda do usufruto, que foi objecto de penhora;

Isto porque, por força da prioridade do registo, e em face do disposto no art. 696º do C. Civil, a hipoteca incide sobre a propriedade plena, propriedade essa que, atento o seu conteúdo, definido no art. 1305º do C. Civil, inclui os poderes de uso e fruição que, nos termos do disposto no art. 1439º do mesmo diploma, são conferidos ao usufrutuário.” [Acórdão da Relação de Évora de 28/05/2015, disponível em www.dgsi.pt]

Não foi este o caminho percorrido no processo de insolvência, mas nem por isso o direito do credor hipotecário fica beliscado.

A vingar a tese da apelada – extinção da hipoteca, tal como constituída, sobre a propriedade plena, ou seja, abrangendo o usufruto, passando o ora exequente a gozar de preferência sobre o produto da venda – sairia este lesado no seu direito, uma vez que o produto daquela venda incidiu apenas sobre a nua propriedade, ficando assim impossibilitado de exercer o seu direito na sua plenitude. Esta tese atenta manifestamente contra o princípio da prioridade do registo consagrado no artº 6º, nº 1 do Código de Registo Predial e o princípio da indivisibilidade da hipoteca.

Só por lapso da Conservatória do Registo Predial foi efetuado averbamento oficioso de cancelamento da hipoteca (sem distinção) – lapso que foi determinante na prolação da decisão recorrida e que veio a ser corrigido. Retificação esta permitida pelo artº 121º do C.R.P., que se impunha pela transparência e verdade material, e que não contende com o princípio da segurança jurídica, ao invés do defendido pela apelada. Saliente-se que, diversamente do teor da conclusão 1ª das contra-alegações, à data da instauração da execução a exequente dispunha de título, como acima vimos.

Acresce que não está em causa a existência de duas hipotecas (uma sobre a nua propriedade e outra sobre o usufruto) ou a violação do princípio da indivisibilidade.

A hipoteca registada em 10/02/2006 abrangeu a propriedade plena do prédio. Por força da venda da nua propriedade em processo de insolvência a hipoteca registada sob a Ap. 76 ficou automaticamente limitada, no que se refere ao seu objeto, ao direito de usufruto, por força da compressão decorrente da caducidade do direito real de garantia sobre a nua propriedade.

Mantendo-se o registo de hipoteca sobre o usufruto (o cancelamento da hipoteca incide inequivocamente apenas sobre a nua propriedade), há que concluir que a executada/embargante continua a ter legitimidade (passiva) para ser demandada pelo exequente, no que respeita à hipoteca que tem por objeto o usufruto, nos termos do disposto no artº 54º, nº 2 do CPC.

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e, consequentemente, julgam-se improcedentes os embargos."

[MTS]


29/09/2021

Jurisprudência 2021 (45)


Mandato judicial;
renúncia; efeitos


1. O sumário de RC 23/2/2021 (5403/18.1T8VIS.C1) é o seguinte:

a) O art. 47º, nº 3 CPC deve ser interpretado no sentido de que, nas ações em que é obrigatório o patrocínio, havendo o mandatário renunciado ao mandato sem que a parte, notificada pessoalmente, tenha constituído entretanto advogado, a renúncia ao mandato só produz efeitos após o decurso do prazo de vinte dias legalmente estabelecido para o mandante constituir novo mandatário, significando que durante esse período se mantém o mandato inicial.

b) O prazo de 20 dias, legalmente fixado, não suspende ou interrompe o prazo processual em curso.

c) A norma do art. 47º, nº 3 do CPC, assim interpretada, não é materialmente inconstitucional, por violação do art. 20º da CRP.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"5.1.- O despacho de não conhecimento do recurso, por preclusão do direito de recorrer, contém a seguinte fundamentação:

“2.Cumpre decidir:

Consta do processo que:

A sentença foi proferida em 29/11/2019

A sentença foi notificada em 4/12/2019

O senhor advogado, mandatário do Réu, renunciou ao mandato.

O Réu foi pessoalmente notificado da renúncia em 21/1/2020.

O recurso, com impugnação de facto e reapreciação da prova gravada, foi interposto em 24/2/2020.

O recurso foi admitido por despacho de 18/9/2020.

Dispõe o art. 638º, nº 1 CPC que o prazo para a interposição de recurso é de 30 dias, contados da notificação da decisão. Estabelece o nº 7 do mesmo preceito legal um acréscimo de 10 dias se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada.

O prazo judicial ou processual é um período de tempo fixado para se produzir um determinado efeito processual, sendo estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz. O prazo para apresentação das alegações é de natureza processual, imposto por lei, peremptório, contínuo.

Notificadas as partes da sentença em 4/12/2019, presumindo-se feita a notificação em 9/12/2019, e suspendendo-se o prazo nas férias judiciais, entre 22/12/2019 e 3/1/2020, o prazo de interposição de 40 dias (30+10) terminou em 31/1/2021.

Resta saber se a renúncia ao mandato teve qualquer repercussão na contagem do prazo, nomeadamente se é causa de suspensão.

No despacho que determinou a notificação do Recorrente para pagar a multa prevista no art.139º, nº 5, b) e 6 CPC, considerou-se que o prazo do recurso terminou em 20/2/2020, com o argumento de que o prazo de interposição do recurso suspendeu-se por vinte dias a partir do dia 21/1/2020 (data da notificação pessoal da renúncia), por imperativo do art.47º, nº 3 CPC. Foi, de resto, neste pressuposto e com o pagamento da multa que o recurso foi recebido por despacho de 18/9/2020.

Contudo, o despacho de recebimento do recurso não vincula o tribunal superior (art. 641º, nº 5 CPC).

O regime da renúncia ao mandato está regulado no art. 47º do CPC, estabelecendo a lei ( nº 2) que a renúncia produz efeitos a partir da notificação pessoal ao mandante, “sem prejuízo do disposto nos números seguintes”.

Estatui o nº 3: “Nos casos em que seja obrigatória a constituição de advogado, se a parte, depois de notificada da renúncia, não constituir novo mandatário no prazo de 20 dias:

a) Suspende-se a instância, se a falta for do autor ou do exequente;

b) O processos segue os seus termos, se a falta for do réu, do executado ou do requerido, aproveitando-se os actos anteriormente praticados;”

A questão que se coloca é a de saber se o art. 47º, nº 3 CPC postula a interpretação no sentido de que a renúncia produz efeitos com a notificação pessoal, ou seja, se cessa o mandato com a notificação, suspendendo-se o prazo processual por 20 dias a partir daí (como entendeu o tribunal) ou se o prazo de vinte dias está estabelecido para o mandante constituir novo mandatário significando que durante esse período (20 dias) se mantém o mandato inicial (entendimento da Apelada).

O art. 47º do CPC não prevê expressamente a suspensão do prazo em curso a partir da declaração de renúncia, nem da notificação desta ao mandante.

Apesar disso, uma tese minoritária defende a suspensão do prazo a partir da notificação da renúncia, com o argumento da quebra da relação de confiança e do princípio da proibição a indefesa, significando que os efeitos da renúncia operam com a referida notificação pessoal ao mandante, cessando desde logo o mandato. Ao fim e ao cabo, esse período para o mandante constituir novo mandatário, agora positivado legislativamente em 20 dias, implicaria a suspensão da instância por “motivo justificado” e, por via dela, a suspensão do prazo em curso ( cf., por ex., Ac RE de 4/10/2007 ( proc. nº 2167/07), em www dgsi.pt).

Não parece ser esta a melhor interpretação, aderindo-se aqui à orientação dominante, no sentido de que os efeitos da renúncia só operam decorrido o prazo de vinte dias sem que o mandante tenha constituído mandatário.

O primeiro argumento é de natureza literal, visto que a norma refere expressamente que os efeitos “produzem-se a partir da notificação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes (…)”, o que significa que a eficácia extintiva não se dá de imediato com a notificação. O “sem prejuízo” revela que que a lei difere os efeitos da renúncia ao mandato para o termo do prazo de vinte dias.

A evolução histórica aponta também neste sentido. Na redacção do art. 39º CPC, anterior ao DL nº 329-A/95, previa-se expressamente que, sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato apenas produzia efeito depois de constituído novo mandatário. Mas como a lei não fixava prazo, o mandatário renunciante teria que o requerer e só decorrido o mesmo é que se considerava extinto o mandato.

A alteração legislativa (reforma de 1995/1996) e a positivação de um prazo para o mandante constituir novo mandatário) não teve por objectivo a suspensão da instância ou do prazo, mas apenas a de “não deixar o mandatário-renunciante ad eternum no exercício do mandato, já que na primitiva redacção do preceito inexistia previsto o prazo razoável de 20 dias para o mandante constituir novo advogado, o que redundava em severa sanção para quem desejava retirar-se do patrocínio forense” (cf. Ac STJ de 12/11/2009 ( proc. nº 2822/06), em www dgsi.pt).

Interpretando a nova redacção do art. 39º CPC, escreve Lopes do Rego – “os nºs 2 e 5 do artigo 39.º reformularam substancialmente o regime da renúncia ao mandato nas causas em que é obrigatório o patrocínio, por se haver considerado desproporcionado o sistema que, como regra, impunha ao mandatário renunciante a continuação do patrocínio até que a parte constituísse novo mandatário, como acontecia antes da reforma do processo civil ocorrida em 1995/1996 (operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12, e pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25/09). Assim, a) A renúncia começa por ser notificada às partes, por força do n.º 1, devendo a notificação ao mandante ser pessoal, nos termos do disposto no artigo 256.º, e conter a advertência dos efeitos cominados no n.º 3, dispondo de um prazo que se considere razoável para constituir novo mandatário (20 dias), dispensando-se, deste modo a intervenção do juiz, a requerimento do mandatário renunciante, para fixar o concreto prazo judicial para tal constituição, nos termos que decorriam do preceituado no n.º 3 deste artigo 39º, na redacção anterior à reforma; b) Findos esses 20 dias, contados da notificação, para a parte constituir novo mandatário, produzem-se de pleno os efeitos típicos da renúncia ao mandato e da extinção deste: suspende-se a instância, se a falta de constituição de novo mandatário for imputável ao autor; e se for ao réu, o processo segue os seus termos, aproveitando-se os actos praticados pelo mandatário renunciante (tais efeitos correspondem, aliás, aos que já decorriam do preceituado na parte final deste artigo, na redacção anterior à reforma)” (Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª edição, volume I, pág. 77).

De igual modo, também Lebre de Freitas: “Estabeleceu-se um prazo legal de vinte dias para o mandante constituir novo mandatário, durante o qual se mantém o patrocínio inicial (embora a lei tenha deixado de o dizer expressamente, tal resulta do prosseguimento do processo até ao termo do prazo). Simplificou-se assim o regime anterior, segundo o qual o estabelecimento do prazo (judicial) estava na disponibilidade do mandatário renunciante. Logo que, dentro do prazo, a parte constitua novo advogado, a renúncia produz os seus efeitos, o mesmo acontecendo no termo do prazo, se não o constituir. Neste caso, deixando a parte de ter mandatário, dá-se a suspensão da instância no caso de faltar advogado ao autor, mas prossegue o processo, por não poder ser penalizado o autor, no caso de faltar advogado ao réu” ( Código de Processo Civil Anotado, Vol.1º, pág. 80).

No actual art. 47º CPC (corresponde redacção à do DL nº 329-A/95) o legislador fixou, desde logo, um prazo ( vinte dias ), mas com esta alteração o que apenas se pretendeu foi clarificar o regime da renúncia ao mandato, em que é obrigatória a constituição de advogado, no sentido de que os efeitos da renúncia se produzem decorrido o prazo legalmente fixado para a parte constituir novo mandatário, sem necessidade de prévio requerimento, e não a suspensão ou interrupção dos prazos.

Neste sentido e no plano jurisprudencial, por ex., Ac RC de 3/7/2002 (proc.1439/2002), Ac RC de 29/11/2011 (proc. nº 2191/2003), Ac RC de 24/1/2017 ( proc. nº 412/2009 ), disponíveis em www dgsi.pt.

Neste contexto, tem razão a Apelada, pois o prazo para a interposição do recurso terminou em 31/1/2020 ( e não em 20/2/2020) e como o decurso do prazo extingue o direito de praticar o acto (art.139º, nº 3 CPC), significa haver precludido o direito de recorrer, o que implica o não conhecimento do recurso (arts.652º, nº 1, b) e 655º CPC), procedendo a questão prévia da inadmissibilidade do recurso”.

[MTS]


28/09/2021

Jurisprudência 2021 (44)


Declarações de parte;
apreciação


1. O sumário de RP 22/2/2021 (1303/16.8T8PNF.P1) é o seguinte:

Face ao disposto no art. 466º do CPC/201 as declarações de parte são um meio de prova válido, estando sujeitos, tal como a prova testemunhal, à livre convicção do julgador [na medida em que não consubstanciem confissão], tudo se reconduzindo à avaliação e ponderação que haja de ser feita, sem prejuízo porém dessa avaliação dever ser feita com a necessária cautela.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.2. A Recorrente, para além da alegação de que a A. não se recordaria da data do acidente, no mais sustenta essencialmente a impugnação na indevida valorização das declarações prestadas pela Autora em audiência de discussão e julgamento que não seriam corroboradas por outros meios de prova.

No Acórdão desta Relação de 13.03.2017, Proc. nº 407/15.9T8AVR.P1 [...], referiu-se o seguinte:

“Desde já se afirma que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não tem propriamente a ver com o teor das declarações/depoimentos das testemunhas mas antes com a indevida valorização das declarações prestadas pelo Autor em audiência de discussão e julgamento e que se mostram espelhadas na fundamentação da decisão quanto à matéria de facto.

Consideramos oportuno aqui transcrever as considerações feitas pelo Juiz de Direito Luís Filipe Pires de Sousa [em as «Malquistas declarações de parte»] defendendo este Magistrado: (…) “(i) as declarações de parte integram um testemunho de parte; (ii) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (iii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”.

Igualmente o Conselheiro António Abrantes Geraldes refere, acerca da declarações de parte, “admite-se a prestação de declarações de parte, por sua própria iniciativa, opção que encontra especial justificação nos casos em que, por não ser admissível a confissão de factos (designadamente quanto estejam em causa direitos indisponíveis), está vedada prestação de depoimento com tal objectivo especifico” (…) “admite-se, assim, que a parte enfrente o juiz que aprecia a causa, possibilitando que na formação da convicção este pondere o teor das declarações emitidas, ainda que sem natureza confessória, passo essencial para que se reduza o recurso, frequentemente abusivo ou desviante a depoimentos de testemunhas que não tiveram conhecimento directo, e atenuando o relevo excessivo que pelas partes ou pelos tribunais vem sendo atribuído aos depoimentos testemunhais” (…) – Revista Julgar, nº16, Temas da nova Reforma do Processo Civil, páginas 75/76.

Nos termos do artigo 466º, nº1 do CPC “As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo”, sendo que “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão” [nº3 do mesmo artigo].

Perante as declarações de parte o Juiz valoriza, ou não, as mesmas, em conjugação com os demais elementos de prova, nomeadamente recorrendo às regras da experiência e às presunções judiciais, assim formando a sua livre convicção, nada impedindo que essa mesma convicção seja favorável ao próprio declarante/parte.

Posto isto, passemos ao caso concreto.

Relativamente aos quesitos 1 e 3 o Mmº. Juiz a quo alicerçou a sua convicção nas declarações do Autor conjugadas com os depoimentos das testemunhas J… e K…, vizinhas do Autor. Ou seja, a convicção do Tribunal não se alicerçou única e exclusivamente nas declarações do Autor.

Argumenta a apelante que os depoimentos das referidas testemunhas não poderiam ser tomados em conta pois elas não presenciaram o acidente. Tudo leva a crer que assim seja, que elas não presenciaram o acidente. Mas o Mmº. Juiz a quo considerou relevante o facto das vizinhas do Autor sempre o terem visto a usar óculos e após o acidente deixaram de o ver com óculos. Tal significa que, com recurso às regras da experiência, e tendo em conta as declarações do Autor e das testemunhas, suas vizinhas, o Tribunal a quo formou livre convicção de que o Autor usava óculos no dia do acidente e que estes se destruíram pois as suas vizinhas deixaram de o ver, a partir daí, com óculos.

Salvo o devido respeito, não vemos como «anular» a convicção do Mmº. Juiz a quo neste particular inexistindo fundamento legal para afirmar que os referidos elementos de prova – as declarações do sinistrado e das suas vizinhas – não podem ser valorados só pelo facto de as vizinhas do Autor não terem presenciado o acidente.

Na verdade, os argumentos da apelante vão contra o preceituado no artigo 607º, nº4 do CPC que dispõe: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção” (…).

Como refere Marta João Dias – em “A fundamentação do juízo probatório – Breves considerações, Revista Julgar, nº13, página 188 – “Considerando ter a prova uma função cognoscitiva da verdade intersubjectivamente partilhada, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova só pode ser concebida com uma discricionariedade vinculada a critérios racionais e orientada para a descoberta daquela verdade prática. Assim sendo, compreende-se o imperativo de a decisão ser acompanhada por um discurso justificante a certificar que ela é fruto de critérios racionais e não de quaisquer palpites, intuições ou arbítrios”.

Não encontrámos na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto qualquer sinal no sentido de que a convicção formada constituiu, em face dos elementos de prova indicados, erro notório na apreciação da prova.

Afigura-se-nos antes que a apelante não está de acordo com a convicção formada pelo Mmº. Juiz a quo, o que não constitui fundamento para alteração da decisão quanto à matéria de facto.”

E, no mesmo sentido, se pronunciou o referido colectivo no Acórdão de 06.04.2017, proferido no Proc. nº 2367/15.7T8MTS.P1 [...], pronunciando-se ainda o Acórdão desta Relação de 07.11.2016[3], www.dgsi.pt., em cujo sumário de refere que: “I - Em face do disposto no art.º 466.º do NCPC, actualmente é inequívoco que as declarações de parte sobre factos que lhe sejam favoráveis devem ser apreciadas pelo tribunal, sendo valoradas segundo o princípio da livre apreciação da prova, nomeadamente, a prova testemunhal, consagrado nos artigos 396.º do Código Civil e 607.º n.º 5, do CPC. II - Não merece qualquer censura a decisão recorrida ao ter entendido valorar as declarações feitas pelo autor ao prestar o depoimento de parte requerido pela Ré, relativamente a factos que lhe são favoráveis, conjugando-as com outros meios de prova. (…)”."


[MTS]


27/09/2021

Imunidade de jurisdição do Conselho da Europa; custas do recurso

 

[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]



Jurisprudência 2021 (43)


Casa de morada da família;
penhora


I. O sumário de RE 25/2/2021 (302/07.5TBFAR-E.E1) é o seguinte:

1. Não integrando a casa de morada de família a lista de bens absoluta ou totalmente impenhoráveis, a penhora pode iniciar-se por esse bem se foi dado em garantia real (hipoteca) do mútuo concedido ao executado, em especial quando esse mútuo se destinou à aquisição desse mesmo bem.

2. O direito à habitação, consagrado no artigo 65.º, n.º 1, da Constituição, não se confunde com o direito à propriedade de casa própria.

3. Cabe ao Estado assegurar a protecção do direito constitucional à habitação, e não ao credor que concedeu o empréstimo destinado à aquisição desse bem.~

4. A simples penhora não afecta, em termos imediatos, a possibilidade do executado continuar a residir no imóvel, na sua qualidade de depositário do mesmo, pelo que esse acto não ofende o princípio da dignidade da pessoa humana.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Argumentam os exequentes que, constituindo o imóvel a sua casa de morada de família, é totalmente impenhorável.

A casa de morada de família não integra a lista de bens absoluta ou totalmente impenhoráveis constante do artigo 736.º do Código de Processo Civil. Apesar disso, este diploma estipula algumas regras relativas à ordem da penhora da habitação permanente do executado, contidas no artigo 751.º, n.º 4, estabelecendo só ser possível a penhora desse bem quando a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de trinta meses, no caso de a dívida não exceder o dobro do valor da alçada do tribunal de primeira instância, e de doze meses excedendo a dívida esse valor.

No entanto, o imóvel é o bem que foi dado em garantia real (hipoteca) dos mútuos concedidos aos executados, pelo que era por este que se deveria iniciar a penhora, nos termos do artigo 752.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Poderiam os executados argumentar que o direito à habitação, para si e para a sua família, consagrado no artigo 65.º, n.º 1, da Constituição, seria impeditivo da penhora da casa de morada de família.

Porém, o direito à habitação não se confunde com o direito à propriedade de casa própria. Como se afirmou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2019, «tal direito não se identifica nem se confunde com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação. Daí que não se possa configurar como constitucionalmente imposto, enquanto exigência decorrente da protecção do direito à habitação, uma solução no sentido de, nas relações entre particulares, consagrar um regime de impenhorabilidade da casa de morada de família.»

Para além de se notar que os executados não teriam sequer a propriedade do imóvel sem os mútuos que lhes foram concedidos pela exequente, assim se justificando a prioridade estabelecida no artigo 752.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a simples penhora não afecta, em termos imediatos, a possibilidade de continuarem a residir no imóvel, na sua qualidade de depositários do mesmo – artigo 756.º, n.º l, alínea a), do Código de Processo Civil.

Acresce que, realizada a venda executiva, poderá ter lugar a suspensão da entrega ao adquirente ou em caso de se suscitarem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução deverá comunicar antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes – artigos 828.º, 861.º, n.º 6 e 863.º, n.ºs 3 a 5, todos do Código de Processo Civil.

Daí que, como igualmente se afirma no supramencionado aresto do Tribunal Constitucional, «não obstante o reconhecimento, por este Tribunal, da função social da propriedade, sobretudo em sede de arrendamento, que poderá justificar a imposição de restrições aos direitos do proprietário privado (…), daí não decorre que seja exigível impor aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de protecção do direito à habitação (…). Por isso, havendo a possibilidade de o executado, em consequência de uma execução, ser privado da sua casa de habitação, em última análise, será ao Estado, caso tal se mostre necessário, que caberá assegurar a protecção do direito constitucional à habitação (cfr., a este respeito, em matéria de arrendamento, os Acórdãos n.ºs 151/92 e 465/2001), podendo a sua intervenção, no âmbito do processo de execução ser desencadeada através dos mecanismos acima referidos.»

Concorda-se com este raciocínio. Ao Estado cabe assegurar a protecção do direito constitucional à habitação, e não ao credor que concedeu o empréstimo destinado à aquisição desse bem. Note-se que o mercado do crédito à aquisição de habitação, tal como está construído, baseia-se no pressuposto do regular cumprimento por parte daqueles que procuram um empréstimo para adquirir uma casa própria. Por ora, não está previsto um sistema de garantia pública de tais empréstimos, pelo que os credores continuarão a dispor dos mecanismos executivos normais em caso de incumprimento por parte dos mutuários, sob pena dos próprios credores, não dispondo de mecanismos eficazes de recuperação do crédito concedido, se verem obrigados a retirar-se deste mercado.

Argumentam, ainda, os Recorrentes que o estado de saúde do executado marido obsta à realização da penhora.

Sem prejuízo de se reconhecer a gravidade desse estado – os relatórios médicos juntos aos autos são claramente demonstrativos dessa realidade, que não se refuta –, certo é que o princípio da dignidade da pessoa humana não obsta à realização da penhora. Os executados poderão continuar a residir no imóvel até à venda executiva, na sua qualidade de depositários, pelo que o acto de penhora não se apresenta como ofensivo do seu direito de habitação.

Acresce que – por força dos artigos 861.º, n.º 6 e 863.º, n.ºs 3 a 5, do Código de Processo Civil – tratando-se da habitação dos executados, o agente de execução deverá suspender as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.

A questão é que as doenças que afectam o executado marido não são agudas, são crónicas. Tratam-se de doenças de longa evolução, que se prolongam há vários anos, sem cura ou desfecho previsível a curto prazo, e não está sequer demonstrado qual “o prazo durante o qual se deve suspender a execução” para prevenir o risco de vida do executado, pelo que não estão preenchidos os requisitos que permitem a aplicação da regra contida no artigo 863.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Sem prejuízo de se reconhecer que as doenças crónicas do executado poderão ser exacerbadas pela entrega do imóvel ao respectivo adquirente, a questão que se coloca neste momento é saber se a penhora deve ser levantada, por inadmissibilidade desse acto. E a resposta é negativa, pois o simples acto de penhora, constituindo necessariamente os executados em depositários do imóvel, não os impede de nele continuarem a habitar.

Realizada a venda executiva e colocando-se a hipótese de entrega do imóvel ao adquirente, ponderar-se-á, então, a aplicação das regras contidas nos artigos 861.º, n.º 6 e 863.º, n.ºs 3 a 5, do Código de Processo Civil.

Por ora, essa discussão é prematura."


[MTS]


24/09/2021

Jurisprudência 2021 (42)


Erro na forma do processo;
convolação; excepção dilatória


1. O sumário de RE 25/2/2021 (52149/19.0YIPRT.E1é o seguinte:

I.- A pretensão que pode ser exercida no processo de injunção é apenas aquela que se baseia em relações contratuais, cujo objeto da prestação seja diretamente referido a uma determinada quantidade monetária, ou seja, obrigações pecuniárias que tenham como fonte direta um contrato e não obrigações que tenham como origem outra fonte, nomeadamente, dívida derivada de responsabilidade civil.

II.- Dito de outro modo, o pedido processualmente admissível será a prestação contratual estabelecida entre as partes cujo objeto seja em si mesmo uma soma de dinheiro e não um valor representado em dinheiro.

III.- O princípio da adequação formal previsto no artigo 547.º do CPC visa a realização da justiça em prazo razoável, cumprindo o comando constitucional do artigo 20º/4, mediante um procedimento equitativo, mas que garanta também a efetivação dos princípios da segurança jurídica, da aquisição processual dos factos e do dispositivo.

IV.- Se a convolação do processo especial para processo declarativo comum redunda em diminuição do prazo para a defesa do Réu, não está garantida a efetivação do princípio do processo equitativo e da segurança jurídica, mediante os quais o tribunal está obrigado a garantir às partes um estatuto de igualdade substancial no uso de meios de defesa, como o preconiza o artigo 4.º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.- Resta saber se foi violado o princípio da adequação formal, previsto no artigo 547.º do CPC.

Este princípio obriga o juiz a adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.

E é uma emanação do dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º do mesmo diploma, que autoriza a realização ou a dispensa de certo atos processuais.

Institutos que configuram uma cedência do direito continental (civil law) ao direito do common law, onde tem grande tradição a procura da resolução dos conflitos utilizando para isso instrumentos de grande abertura e pragmatismo, em detrimento de um excessivo formalismo que enforma o direto continental o que o impede, amiúde, de encontrar a justa composição material dos litígios bastando-se com decisões apenas formalmente justas (Em Inglaterra a Rule 1.1 (c)e (d) do Code of Procedural Rules e, nos EUA, o § 473º (a) (1) do Title 28 USC).

A adequação formal visa, em suma, a realização da justiça em prazo razoável, cumprindo o comando constitucional do artigo 20.º, mas mediante um procedimento equitativo, que garanta também a efetivação dos princípios da segurança jurídica, da aquisição processual dos factos e do dispositivo – neste sentido, Rui Pinto, CPC Anotado, Vol. II, 2018, pág. 12 a 19 e Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Vol. I, 219, pág. 88.

Como escreveu Cardona Ferreira no Ac. STJ de 18-11-1997, Procº 97A726 relativamente ao artigo 265.º-A do anterior CPC, onde se previa o mesmo princípio, “o princípio da adequação formal deve ser aplicado casuisticamente e com cuidado, sob pena de indisciplina e de insegurança”.

Argumenta a recorrente que, no caso dos autos, deveria o tribunal a quo convolar a injunção para ação declarativa comum, ou convidar as partes ao aperfeiçoamento com vista a permitir uma solução justa do litígio evitando-se a instauração de outra ação, pelo que foi violado o que dispõe o artigo 547.º do CPC.

Nesta sede, o tribunal a quo ponderou o prazo de defesa de 15 dias no processo declarativo especial e o de 30 dias no processo comum, concluindo que a forma processual escolhida pela autora é insuscetível de sanação porquanto a forma escolhida implicou sensível diminuição dos meios de defesa da Ré considerando o prazo de contestação inferior àquele que se prevê no processo comum.

O que equivale por dizer que, a convolação do processo especial para processo declarativo comum, redundaria numa clara diminuição do prazo para a defesa do Réu, o que não garantiria a efetivação do princípio do processo equitativo e da necessária segurança jurídica, mediante os quais o tribunal está obrigado a garantir às partes um estatuto de igualdade substancial no uso de meios de defesa, como o preconiza também o artigo 4.º do CPC.

Tudo porque o princípio da adequação formal não vive sozinho no mundo processual, para operar tem que ser integrado sistematicamente com outros princípios de igual ou superior valia, cedendo quando estes se sobreponham, como é o caso dos autos.

No mesmo sentido, cfr. Ac. TRC de 14-10-2014, Carvalho Martins, Procº 507/10.1T2AVR-C.C1:

1.- O principio da adequação formal, consagrado no art. 547.º CPC, não transforma o juiz em legislador, ou seja, o ritualismo processual não é apenas aplicável quando aquele não decida, a seu belo prazer, adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais, sob a invocação de, desse modo, assegurar um processo equitativo.

2.- Os juízes continuam obrigados a julgar segundo a lei vigente e a respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art. 4.º-2 da Lei n.º 21/85, de 30-7), e, daí, que o poder-dever que lhes confere o preceito em causa deva ser usado tão somente quando o modelo legal se mostre de todo inadequado às especificidades da causa, e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo. Trata-se de uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica.

Assim sendo, bem andou o tribunal a quo ao não convolar o processo, o que significa que improcede a apelação na sua totalidade."


[MTS]


23/09/2021

Jurisprudência 2021 (41)


Restituição provisória da posse;
requisitos; oposição


1. O sumário de RG 25/2/2021 (321/19.9T8PRG.G1) é o seguinte:

I- Na oposição a uma providência cautelar, para obtenção de uma revisão dos fundamentos fácticos de tal decisão favorável ao requerido/impugnante, necessário se torna que os novos meios de prova produzidos (ou, segundo uma interpretação extensiva, a nova instância das testemunhas ou declarantes anteriormente ouvidos) e por aquele indicados nas suas alegações imponham uma decisão diversa sobre os pontos fácticos impugnados, sob pena de se manter o inicialmente considerado provado, certo, para além do mais, que não se exige ao juiz, na reapreciação da medida anteriormente decretada, a utilização de um critério mais rigoroso do empregue na primeira decisão;

II- Assim sendo, no recurso da decisão proferida após a oposição, terão também que ser estes “novos meios de prova” (com a amplitude que acima se deu a este conceito) a sustentar a pretensão de alteração da decisão relativa à matéria de facto, por imporem decisão diversa da firmada pela primeira instância;

III- Para efeito da restituição provisória de posse, “é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador”;

IV- A colocação de um portão, fechado à chave, que impede o exercício da posse deve ser considerada como esbulho violento por via da subsunção de tal comportamento ao conceito de “coação física”, no sentido de que um portão assim fechado, “como um obstáculo que constrange, de forma reiterada a posse dos requerentes, impedindo-os de a exercitar como anteriormente faziam”, corresponde a uma força (uma barreira física) que impossibilita, obstrui, o exercício da posse sobre a coisa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Para ser decretada a providência é necessário que haja probabilidade séria da existência do direito (artigo 368º, nº 1, CPC), o mesmo é dizer, como refere Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª Edição, pág. 37, que a prova em causa “basta ser sumária ou constituir uma simples justificação (Vaz Serra, Provas, BMJ, 110, p. 79) ou um juízo de verosimilhança (Abrantes Geraldes, Temas cit. III, p. 90); é a summaria cognitio do antigo direito, designação que os autores italianos continuam ainda a usar, todas estas designações inculcando a ideia de que o procedimento cautelar, porque urgente e conducente a uma providência provisória, não se compadece com as indagações probatórias próprias do processo principal, contentando-se, quanto ao direito ou interesse do requerente, com a constatação objetiva da grande probabilidade de que exista…”

É, pois, em princípio, bastante um juízo de verosimilhança sobre os factos que “supera os meros indícios”, mas “longe do que se revela necessário para o reconhecimento do direito na ação principal.” (Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, pág. 429).

Todavia, para decretar a inversão do contencioso – como foi o caso – é já superior o nível de convicção necessário: na verdade, a exigência de uma convicção segura acerca do direito, consagrada no art. 369º, nº 1, do CPC, ultrapassa os limites do fumus boni iuris do art. 368º, nº 1, do mesmo código, representando, na prática, um nível de segurança próximo daquele que se mostraria necessário para a apreciação e reconhecimento do mesmo direito na ação principal, caso esta tivesse sido instaurada.

Por outro lado, interessa não perder de vista que estamos a tratar de um incidente de oposição a uma providência cautelar já decretada, meio previsto no art. 372º, nº1, al. b), do C. P. Civil.

Como salienta António Santos Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, Almedina, 1998, pág. 160, “a observância do contraditório mesmo em sede dos procedimentos cautelares não deixa de constituir um elemento que potencia o melhor esclarecimento da questão litigiosa e permite maior certeza e segurança na decisão, uma vez que, como é natural, a parcialidade do requerente pode conduzir a que alegue apenas os factos que beneficiam a sua posição, carregando o quadro com as cores luminosas do seu alegado direito e com as cores negras do periculum in mora.

A sua posição de parte interessada potencia a indicação de meios de prova que lhe são favoráveis e a ocultação dos restantes, com isso influenciando o julgador que, alheio ao litígio, e confrontado apenas com uma das versões, pode ser induzido, erroneamente, a decretar uma medida cautelar injusta, sem correspondência com a verdade material escondida por detrás de manobras maliciosas ou tendenciosas do requerente”.

Daí que, quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, lhe seja lícito, em alternativa, na sequência da notificação prevista no nº 6 do artigo 366º:

a) Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida;

b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 367º e 368º. (art. 372º, nº 1 do CPC).

O requerido terá, pois, de optar entre um, ou outro, dos meios de reação à sua disposição: ou recorre da decisão de decretamento da providência cautelar, nomeadamente sindicando o julgamento feito da matéria de facto realizado, a suficiência dos factos apurados para o decretamento da providência, ou a seleção, interpretação e aplicação feita da lei; ou deduz oposição à mesma, visando então alegar novos factos que infirmem os fundamentos do seu decretamento, ou produzir novos meios de prova que abalem a credibilidade conferida aos inicialmente considerados. (Acórdão da Relação de Guimarães de 30.03.2017, Relatora – Maria João Marques)

Assim, “sem prejuízo de uma valoração global dos meios de prova produzidos na primeira fase (antes do decretamento da medida) e no âmbito da oposição, o certo é que o objectivo fundamental deste meio de defesa não é o de proceder à reponderação dos primeiros, actividade que mais se ajusta ao recurso da decisão em cujo âmbito se inscreva a reapreciação do julgamento sobre a matéria de facto” (Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. III, 1998, pág. 232).

Como se frisa no Acórdão desta Relação de Guimarães de 16.03.2017 (Relator - Pedro Alexandre Damião e Cunha), apoiando-se também no referido autor e obra, na oposição, “não se trata de facultar ao mesmo tribunal a reapreciação da decisão, a partir dos mesmos elementos, mas de conferir a possibilidade de revisão da convicção anteriormente formada, através de novos meios de prova ou de novos factos com que o tribunal não pode contar” (no mesmo sentido, ver ainda o Acórdão da Relação de Guimarães, de 11.01.2018, Relator – José Cravo), sem prejuízo de, entendemos nós, com base numa interpretação extensiva do art. 372º, nº 1, al. b) do C.P.C., se admitir que o requerido possa “querer exercer o direito a intervir que lhe é facultado pelo art. 517-2, sem pretender simultaneamente alegar novos factos ou produzir novos elementos de prova”, nomeadamente através da instância de testemunhas ou de declarantes já ouvidos (José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 46).

Daí que, apesar de, como se considerou no Acórdão do STJ, de 6 de Julho de 2004, do n.º 2 do artigo 388º do CPC (atual, art. 372º), decorrer que “a decisão inicialmente proferida no procedimento cautelar, sem contraditório do requerido, é uma mera “decisão provisória”, insusceptível de constituir caso julgado que impeça a ulterior apreciação jurisdicional da oposição deduzida, de uma forma superveniente, pelo requerido, constituindo a segunda decisão complemento ou parte integrante da primeira, pelo que – emitida esta – o procedimento passa a ter uma decisão unitária” e não obstante ser certo que, “sendo admissível recurso desta segunda decisão, proferida sobre a oposição, o seu objecto pode compreender a impugnação pelo requerido dos fundamentos da decisão inicial que decretou a providência”, não se deva esquecer que, para obtenção de uma, usando as palavras de Abrantes Geraldes, revisão dos fundamentos fácticos de tal decisão favorável ao requerido/impugnante, necessário se torna que os novos meios de prova produzidos (ou, segundo a interpretação extensiva acima referida, a nova instância das testemunhas ou declarantes anteriormente ouvidos) e por aquele indicados nas suas alegações imponham uma decisão diversa sobre os pontos fácticos impugnados, sob pena de se manter o inicialmente considerado provado, certo, para além do mais, que não se exige ao juiz, na reapreciação da medida anteriormente decretada, a utilização de um critério mais rigoroso do empregue na primeira decisão (cfr. obra e autor que temos vindo a citar, pág. 238, referindo em favor de tal posição a opinião de Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 233, segundo o qual, o juiz deve usar na apreciação dos novos meios de prova o mesmo critério de verosimilhança que utilizou no primeiro momento).

E, assim sendo, no recurso da decisão proferida após a oposição, terão também que ser estes “novos meios de prova” (com a amplitude que acima se deu a este conceito) a sustentar a pretensão de alteração da decisão relativa à matéria de facto, por imporem decisão diversa da firmada pela primeira instância."


[MTS]


22/09/2021

Bibliografia (Índices de revistas) (195)


Foro it.


Jurisprudência 2021 (40)


Sigilo bancário;
herdeiros


1. O sumário de RG 25/2/2021 (62/20.4T8VRL-B.G1) é o seguinte:

I- Para que haja necessidade de recorrer ao incidente de quebra de sigilo profissional necessário é que haja uma conflitualidade entre o dever de guardar segredo e o dever de informar ou, por outras palavras, o referido incidente pressupõe uma escusa legítima, fundada em sigilo efetivamente existente;

II- “Se não existir sigilo a recusa não só não é legítima, como também não é necessário que, para a remover, se quebre um segredo, o que conduz à conclusão de que, nessas circunstâncias, falta um dos pressupostos do incidente”;

III- O direito do titular de uma conta bancária à informação resulta diretamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta e, à morte daquele, deve considerar-se transmitido aos seus herdeiros;

IV- Estes, tendo sucedido na posição do titular ou do co-titular da conta, têm o “direito de partilhar o segredo”, como, mesmo no caso das contas co-tituladas, aquele o teria se vivo fosse, a tal “partilha de segredo” se tendo sujeitado quem aceitou proceder à abertura de uma conta com outrem, devendo, pois, a informação ser prestada não obstante a oposição de outros co-titulares ou co-herdeiros;

V- Inexistindo sigilo que aos herdeiros possa legitimamente ser oposto pela entidade bancária falha o pressuposto básico do incidente em causa.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na situação em apreço, da mera leitura da reclamação resulta que a Reclamante não pretende que seja julgado procedente o incidente de levantamento de sigilo suscitado pelo juiz do processo, apenas não concordando com os fundamentos da decisão singular proferida, requerendo por isso que sobre a questão suscitada recaia acórdão.

Não obstante, entende este coletivo que sobre o incidente em questão deverá efetivamente recair acórdão pela simples razão de que, nos termos do nº 3 do art. 652º do CPC, para que a parte possa requerê-lo basta que a mesma se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, não tendo, pois, ao contrário do que sucede com a questão de saber quem pode recorrer, que se verificar, para efeito da admissibilidade da reclamação, se a medida é ou não objetivamente desfavorável a quem reclama.

Passemos, então, a conhecer em coletivo do suscitado incidente de levantamento de sigilo.

O art. 417° do CPC consagra o dever de cooperação para a descoberta da verdade a que todos estão vinculados, sejam ou não partes no processo, visando a “realização da justiça material”, ou seja, uma composição do litígio que se mostre conforme aos factos tal qual os mesmos ocorreram.

De acordo com o art. 417º, nº 3, al. c), do CPC a recusa de colaboração para a descoberta da verdade é, porém, admitida se, para além do mais, aquela implicar violação do sigilo profissional.

O segredo bancário constitui uma das formas que pode revestir o “sigilo profissional”.

O n° 4 do aludido preceito prevê a hipótese da “dispensa do dever de sigilo”, mandando aplicar, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

E, a propósito do segredo profissional, estabelece o art. 135° do Código de Processo Penal:

1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos;
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento;
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional, sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

O “sigilo bancário”, tal como os demais casos de sigilo profissional, não constitui um valor absoluto, porquanto respeita a interesses privados, estando prevista a sua “dispensa” ou “quebra” quando estejam em causa valores de hierarquia superior, em consonância com o princípio da prevalência do interesse preponderante.

Mas, óbvio é que “os tribunais só intervêm quando existem conflitos de interesses a dirimir, ou quando, numa situação de ponderação de valores protegidos, haja necessidade de decidir qual o valor que deve prevalecer”. (Acórdão da Relação de Évora de 21.12.2013, Relatora – Isabel Silva)

Deste modo, para que haja necessidade de recorrer ao dito incidente necessário é que haja uma conflitualidade entre o dever de guardar segredo e o dever de informar. Quando assim sucede, casuisticamente há que determinar se prevalece o direito à prova ou as razões que justificam a invocação do sigilo.

“O incidente de quebra de sigilo profissional (art. 135º, nº 3, do CPP, pressupõe uma escusa legítima, fundada em sigilo efetivamente existente” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC Anotado, I, pág. 492).

Ou seja, como se enfatiza no Acórdão da Relação de Coimbra de 25.01.2011 (Relator – António Beça Pereira), “a procedência deste incidente pressupõe, para além do mais, que o acesso à informação pretendida está, de facto, protegida por sigilo, pois só nesse caso é que se coloca a questão de saber se ele deve, ou não, ser levantado, a qual constitui o núcleo do incidente. Na verdade, se não existir sigilo a recusa não só não é legítima, como também não é necessário que, para a remover, se quebre um segredo, o que conduz à conclusão de que, nessas circunstâncias, falta um dos pressupostos do incidente.” Em sentido idêntico, Acórdão desta Relação de 15.09.2014, do mesmo Relator.

Assim, “se a autoridade judiciária, após a necessária averiguação, concluir que não existe dever de segredo relativamente à informação em causa (v.g. verifica-se o consentimento do titular do segredo), considera a escusa ilegítima e ordena, ou requer ao tribunal que ordene, no caso em que a apreciação da legitimidade da escusa esteja a cargo do Ministério Público, a prestação da informação. Tendo a autoridade judiciária concluído pela ilegitimidade da escusa, e tendo sido ordenada a prestação da informação, caberá ao sujeito visado dar cumprimento a tal determinação judicial, prestando o depoimento ou entregando a documentação (cfr. o artigo 182.º do CPP).” (Joana Rodrigues, in “Segredo Bancário e Segredo de Supervisão” – artigo publicado no E-book de Direito Bancário de Fevereiro de 2015, da Coleção de Formação Contínua do CEJ, pág.´s 75 e 76).

Isso mesmo resulta do Acórdão do STJ de 2/2008 que fixou jurisprudência com o seguinte teor:

“1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário;

 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal;

 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.”

Como se explana na fundamentação do citado acórdão de fixação de jurisprudência, na situação de ilegitimidade da escusa, “não impõe a lei que se faça qualquer juízo de ponderação de interesses em ordem a determinar o que deverá prevalecer, nem o mesmo teria qualquer sentido, porque não existe segredo”. “Não estamos, nessa situação, perante uma quebra de segredo, simplesmente porque o facto não está legalmente coberto pelo segredo bancário, ou houve autorização do titular da conta.”

Na hipótese da legitimidade da escusa, então sim, “a obtenção do depoimento ou da informação escrita já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto (…)”, sendo “precisamente esse juízo que o n.º 3 do mesmo artigo 135.º prevê que seja assumido em incidente específico - incidente de quebra de segredo profissional - a ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido”.

Daí que, como se refere no primeiro dos citados acórdãos, “o tribunal da Relação, quando perante si for suscitado tal incidente, para o decidir não pode deixar de indagar se na situação que lhe é exposta há algum segredo, não estando, por isso, vinculado ao juízo formulado na 1.ª instância de que há um sigilo e de que a recusa em informar é legitima por nele radicar. A não ser assim o tribunal da Relação podia ver-se obrigado a ter que levantar um sigilo que, contrariamente ao entendido na 1.ª instância, considera não existir, o que seria verdadeiramente absurdo.”

Vejamos, pois, se, in casu, efetivamente existe um segredo a proteger que legitime a exigência de levantamento do dever de sigilo.

O segredo relaciona-se com um dever de non facere: a conduta proibida é a de revelar ou utilizar a informação por aquele abrangida.

Todavia, como se enfatiza no citado artigo do E-Book sobre Direito Bancário, pág. 64, citando ALBERTO LUÍS, “O segredo bancário em Portugal”, ob. cit., p. 466 e JOSÉ MARIA PIRES, “O dever de segredo na actividade bancária”, Lisboa, Rei dos Livros, 1998, pp. 53 e ss., “a doutrina refere-se a determinadas pessoas que têm o “direito de partilhar o segredo” ou que estão numa “esfera de descrição”, traduzindo a insusceptibilidade, dentro de certos pressupostos, de a elas ser oposto o segredo; de uma outra perspetiva, o ato de revelação do segredo não será, em relação a tais pessoas, ilícito”.

Em causa está, pois, saber se os herdeiros estão na referida "esfera de discrição" e se, cada um deles, ainda que desacompanhado dos demais, pode, por si só, exigir de instituição onde o de cujus detinha conta bancária informação relativa a tal conta.

No que releva para o caso em apreço, na jurisprudência vários são os acórdãos que respondem favoravelmente à referida questão fulcral dos autos (e também à sub-questão a ela associada), afirmando perentoriamente a ilegitimidade da escusa das instituições bancárias relativamente a herdeiro de um titular ou co-titular de uma conta bancária, sendo exemplos paradigmáticos da referida posição os acórdãos do STJ de 28.06.1994 (Relator – Miranda Gusmão) e de 07.10.2010 (Relator - Azevedo Ramos), o último dos quais contém o seguinte esclarecedor sumário:

“I- O titular de uma conta bancária, para aceder às informações sobre os seus movimentos ou obter um qualquer extracto bancário, não necessita, para além de comprovar que é titular da conta, de demonstrar um qualquer interesse concreto na obtenção de informações.

 II- O direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta.

 III- Tal direito deverá considerar-se transmitido aos herdeiros, uma vez que os depósitos, enquanto bens, fazem parte do acervo da herança aberta por morte do depositante.

 IV- Os herdeiros de um depositante bancário não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão por que não lhes pode ser oposto o segredo bancário.

 V- Os bancos réus não têm qualquer fundamento legal para recusarem a apresentação dos extractos bancários solicitados, designadamente quanto ao período decorrido desde a abertura das contas até à data do óbito da mãe da autora, na medida em que o acesso a tais documentos, sendo um direito de sua mãe, se transmitiu para a recorrente, sua herdeira, que assim legalmente o poderá exercer.

 VI- Por via hereditária, a autora ingressa na titularidade da situação jurídica pertencente a sua mãe, passando a assistir-lhe todos os direitos que àquela pertenciam, na medida do seu respectivo quinhão.”

No mesmo sentido, veja-se ainda o Acórdão da Relação de Guimarães de 15.11.2011 (Relator - Fernando F. Freitas): “Não oferece dúvidas que o segredo bancário não é oponível aos herdeiros de pessoa falecida, já que sendo eles chamados à titularidade das relações jurídicas patrimoniais desta – cfr. artº.s 2024º. e 2032º., ambos do Cód. Civil – passaram a dever ser considerados titulares da conta bancária”.

Acresce que o reconhecimento da inoponibilidade do sigilo bancário a herdeiros de um dos titulares de conta bancária deve efetuar-se não obstante a oposição de outros co-titulares ou co-herdeiros (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 09/11/1999 C. J., Ano XXIV – 1999, Tomo V, pág. 79; no mesmo sentido, Ac. da mesma Relação de 14/11/2000, in C. J., Ano XXV, Tomo V-2000, págs. 95 e 96, citados no referido acórdão desta Relação), conforme, aliás, indiretamente também resulta do já citado acórdão do STJ de 07.10.2010 (Relator - Azevedo Ramos).

Aqui chegados, cumpre apenas referir que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16 de dezembro de 2020, processo 20227/18.8YIPRT-A.P1, invocado pela Reclamante a pretexto do conflito entre o direito dos herdeiros e o direito dos co-titulares da conta bancária ou do direito à reserva do titular da informação, não trata de nenhuma questão com tal tema relacionado, certo que, como salientam os Requerentes do Inventário, na situação naquele acórdão tratado “não há herdeiros, nem sucessão hereditária, mas apenas uma relação jurídica de natureza comercial entre duas pessoas coletivas e em que se considera que o dever de sigilo sobre elementos da escrita comercial não deve ser dispensado quando os factos a apurar podem sê-lo por outro meio de prova”.

Face ao exposto, reafirma-se que deve “ter-se por pacífico que os herdeiros de um depositante não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão porque não lhes pode ser oposto o segredo bancário, pois, o direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta”, pelo que “tem a entidade bancária que lhes prestar todas as informações que prestaria a este se ele ainda fosse vivo, por, neste cenário, não existir sigilo bancário”. (citado Acórdão da Relação de Coimbra de 25.01.2011, Relator – António Beça Pereira)

Em conclusão, não podem as instituições bancárias em referência no caso em apreço escudar-se no sigilo bancário para não darem aos Requerentes do presente inventário, herdeiros do Inventariado, todas as informações que estes solicitarem, relativamente às contas que o falecido ali detinha, quer como único titular quer em co-titularidade com outros, inexistindo o segredo bancário que foi invocado."

[MTS]