Reconvenção;
admissibilidade
Numa acção em que a Autora invoca o direito legal de preferência, que exerceu junto do Réu e que por este não foi cumprido, tendo-lhe assim conferido o direito da execução específica relativo à compra do imóvel (na sua versão), não é legalmente admissível o pedido reconvencional estribado num (alegado) incumprimento de um acordo celebrado entre Autora e Réu num anterior processo judicial (em que ficou acordado que o imóvel seria vendido a terceiro), com pretensão de que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Autora e que, por via disso, decrete a transferência da propriedade do imóvel para terceiro à acção – artigo 266º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O Réu deduziu reconvenção, peticionando: “seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Autora faltosa e que, por via disso, decrete a transferência, pelo preço de €52.000,00 (cinquenta e dois mil euros) para S..., da propriedade e da posse do prédio situado em Sete Castelos, Espargal, Rua de ..., Oeiras, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o art. ... (…)”.
A decisão recorrida concluiu que a reconvenção não é admissível porque os respectivos fundamentos não integram a “previsão de qualquer das alíneas do n.º 2 do artigo 266.º do CPC.”
O apelante discorda deste entendimento, considerando que se mostram verificados os pressupostos consagrados na al. a) do nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil
Apreciemos.
Estabelece o art. 266º, nº 1 do Cód. Proc. Civil que “o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor”. [...]
Porém, a admissibilidade da reconvenção depende da verificação dos requisitos substantivos e processuais explicitados nos nºs 2 a 5 do mencionado art. 266º do Cód. Proc. Civil.
O nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil dispõe – para o que aqui interessa:
“2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;”.
Interpretando a al. a) desta norma, escrevem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado Parte Geral e Processo de Declaração”, Vol. I, Almedina, 2019, p. 302: “O facto jurídico que serve de fundamento à ação (al. a)) constitui o ato ou relação jurídica cuja invocação sustenta o pedido formulado, como ocorre com a invocação de um direito emergente de um contrato, o qual também pode ser invocado pelo réu para sustentar uma diversa pretensão dirigida contra o autor. O facto jurídico que serve de sustentação à defesa envolve essencialmente a matéria de exceção, mas poderá igualmente assentar em factos que integrem a impugnação especificada dos fundamentos da ação. Nestes casos, o réu aproveita a defesa não apenas para se defender da pretensão do autor, mas ainda para sustentar nos mesmos factos uma pretensão autónoma contra aquele. Mariana França Gouveia, in “A causa de pedir na acção declarativa”, p. 270, afirma que “... a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as contra pretensões", ou seja, que "os factos alegados devem ser selecionados através das normas jurídicas alegadas, assim se determinando quais são os principais. Estabelecidos estes, se um deles for principal para a ação e para a reconvenção, haverá identidade de causa de pedir e, logo, estará preenchido o requisito do art. 274º, nº 2, al. a)”. Assim, se autor e réu alegam o mesmo contrato como facto constitutivo das suas pretensões, verificada esta coincidência, entende-se que a causa de pedir da ação e da reconvenção é a mesma (p. 269)”.
Como se escreve a este propósito no Acórdão do TRG de 28/06/2018, relator José Alberto Moreira Dias, acessível em www.dgsi.pt: “É pacifico na doutrina e na jurisprudência que a expressão «quando o pedido do réu emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa» é o mesmo que causa de pedir, isto é, de acordo com a primeira parte da enunciada previsão legal, admite-se a reconvenção quando o pedido reconvencional tem a mesma causa de pedir da ação, isto é, o mesmo facto jurídico (real, concreto) em que o autor fundamenta o direito que invoca. Já a segunda parte desse normativo tem o sentido de que ela só é admissível quando o réu invoque como meio de defesa, qualquer ato ou facto jurídico que, a verificar-se, tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor, ou seja, embora o pedido reconvencional não se enquadre estritamente na causa de pedir da ação, aquele emerge de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, no sentido de que resulta dos factos com os quais indiretamente se impugna os alegados na petição inicial”.
O pedido reconvencional emerge do mesmo facto jurídico quando tem a mesma causa de pedir que baseia o pedido da acção ou emerge do acto ou facto jurídico que serve de fundamento à defesa, pretendendo-se, contudo, neste caso, obter um efeito diferente desse acto ou facto, reduzindo, modificando ou extinguindo o pedido do autor.
“Quer dizer: no caso de a factualidade invocada pelo réu-reconvinte se enquadrar na causa de pedir que serve de fundamento à defesa, não basta que o réu alegue qualquer acto ou facto jurídico para que dele se possa extrair um outro efeito jurídico de que se pretenda fazer valer através do pedido reconvencional. É necessário um plus: que o facto alegado, a provar-se, produza o desejado efeito útil defensivo, isto é, tenha a virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido formulado pelo autor.” – cfr. Marco António de Aço e Borges, in [“A Demanda Reconvencional”, Quid Juris, 2008,] p. 42.
Por sua vez, Jacinto Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, 2000, p. 32, refere, quanto à reconvenção reportada a factos que servem de fundamento à defesa, que é necessário que o facto invocado, a verificar-se, produza efeito útil, ou seja, tenha virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, p. 517-518, esclarecem que a referência a facto jurídico que serve de fundamento à defesa deve entender-se como reportada às excepções peremptórias, ou seja, aos factos jurídicos susceptíveis de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (cfr. art. 576º, nº 3 do Cód. Proc. Civil), ainda que a coincidência seja parcial.
Cfr., no mesmo sentido, Acórdão do TRG de 23/03/2017, relator Francisca Vieira; e do TRP de 01/07/2010, relator Amaral Ferreira, ambos acessíveis em www.dgsi.pt; salientando-se neste último Acórdão: “desde que se verifique uma coincidência parcial entre os factos que o R., ao contestar a tese do A., invocou para justificar os fundamentos da sua própria defesa, mantendo, todavia, outros que exorbitam estritamente dessa defesa uma conexão com eles, tanto basta para que a reconvenção seja admissível”.
Descendo ao caso dos autos, vemos que:
a) na petição inicial, a Autora invoca como causa de pedir o direito legal de preferência de que alega ser titular, em virtude de ser comproprietária do imóvel em causa nos autos, direito esse, que, na sua versão, uma vez exercido junto do Réu e não cumprido por este, lhe conferiu o direito da execução específica relativo à compra daquele imóvel;
b) na contestação, o Réu invoca, como excepção, a extinção do direito de preferência da Autora enquanto comproprietária, quer (i) por caducidade, por a Autora não ter procedido ao depósito do preço devido nos termos do art. 1410º, nº 1 do Cód. Civil; quer (ii) por a Autora ter renunciado a tal direito (de preferência) ao celebrar o acordo, homologado por sentença, no processo nº 1927/2001 do Tribunal de Oeiras, em que ficou estabelecida a venda do imóvel a terceiro;
c) na reconvenção, o Réu alega que as partes se obrigaram, no acordo homologado por sentença no processo nº 1927/2001 do Tribunal de Oeiras, a vender o imóvel a terceiro por preço superior a € 25.000,00; a Autora aceita nos presentes autos o preço de € 50.000,00 para venda do imóvel; um terceiro dispôs-se a comprar o imóvel pelo valor de € 52.000,00; por isto, em face do incumprimento da Autora em vender o imóvel ao terceiro, pretende o Réu, nesta acção, obter a condenação da Autora a vender o imóvel pelo preço de € 52.000,00 ao mencionado terceiro, o que peticiona em sede de reconvenção.
Perante este circunstancialismo, é cristalino que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, uma vez que este fundamento se consubstancia, como se viu, na não observância pelo Réu do direito de preferência legal da Autora como comproprietária, sendo certo que o Réu alega, na contestação, a inexistência desse direito de preferência e não é nessa inexistência que fundamenta o pedido reconvencional.
Por outro lado, perante o descrito circunstancialismo, é também evidente que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, uma vez que o Réu invoca, como defesa, a inexistência, por extinção, do direito de preferência da Autora e não estriba o pedido reconvencional nessa inexistência, mas, antes e de per si, no incumprimento pela Autora do acordo celebrado no processo nº 1927/2001 do Tribunal de Oeiras e aí homologado por sentença.
Nesta conformidade, concluímos que não se mostra verificado o requisito de admissibilidade substantiva consagrado na al. a) do nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil relativamente ao pedido reconvencional – sendo manifesto que, no caso, também as demais alíneas daquele preceito legal não se mostram preenchidas, nem tal foi, sequer, invocado pelo Réu/apelante."
MTS