"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/01/2024

Jurisprudência 2023 (98)


Reconvenção;
admissibilidade


1. O sumário de RL 16/5/2023 (1535/20.4T8AMD.L1-7) é o seguinte:

Numa acção em que a Autora invoca o direito legal de preferência, que exerceu junto do Réu e que por este não foi cumprido, tendo-lhe assim conferido o direito da execução específica relativo à compra do imóvel (na sua versão), não é legalmente admissível o pedido reconvencional estribado num (alegado) incumprimento de um acordo celebrado entre Autora e Réu num anterior processo judicial (em que ficou acordado que o imóvel seria vendido a terceiro), com pretensão de que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Autora e que, por via disso, decrete a transferência da propriedade do imóvel para terceiro à acção – artigo 266º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O Réu deduziu reconvenção, peticionando: “seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Autora faltosa e que, por via disso, decrete a transferência, pelo preço de €52.000,00 (cinquenta e dois mil euros) para S..., da propriedade e da posse do prédio situado em Sete Castelos, Espargal, Rua de ..., Oeiras, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o art. ... (…)”.

A decisão recorrida concluiu que a reconvenção não é admissível porque os respectivos fundamentos não integram a “previsão de qualquer das alíneas do n.º 2 do artigo 266.º do CPC.”

O apelante discorda deste entendimento, considerando que se mostram verificados os pressupostos consagrados na al. a) do nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil

Apreciemos.

Estabelece o art. 266º, nº 1 do Cód. Proc. Civil que “o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor”. [...]

Porém, a admissibilidade da reconvenção depende da verificação dos requisitos substantivos e processuais explicitados nos nºs 2 a 5 do mencionado art. 266º do Cód. Proc. Civil.

O nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil dispõe – para o que aqui interessa:

“2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;”.

Interpretando a al. a) desta norma, escrevem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado Parte Geral e Processo de Declaração”, Vol. I, Almedina, 2019, p. 302: “O facto jurídico que serve de fundamento à ação (al. a)) constitui o ato ou relação jurídica cuja invocação sustenta o pedido formulado, como ocorre com a invocação de um direito emergente de um contrato, o qual também pode ser invocado pelo réu para sustentar uma diversa pretensão dirigida contra o autor. O facto jurídico que serve de sustentação à defesa envolve essencialmente a matéria de exceção, mas poderá igualmente assentar em factos que integrem a impugnação especificada dos fundamentos da ação. Nestes casos, o réu aproveita a defesa não apenas para se defender da pretensão do autor, mas ainda para sustentar nos mesmos factos uma pretensão autónoma contra aquele. Mariana França Gouveia, in “A causa de pedir na acção declarativa”, p. 270, afirma que “... a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as contra pretensões", ou seja, que "os factos alegados devem ser selecionados através das normas jurídicas alegadas, assim se determinando quais são os principais. Estabelecidos estes, se um deles for principal para a ação e para a reconvenção, haverá identidade de causa de pedir e, logo, estará preenchido o requisito do art. 274º, nº 2, al. a)”. Assim, se autor e réu alegam o mesmo contrato como facto constitutivo das suas pretensões, verificada esta coincidência, entende-se que a causa de pedir da ação e da reconvenção é a mesma (p. 269)”.

Como se escreve a este propósito no Acórdão do TRG de 28/06/2018, relator José Alberto Moreira Dias, acessível em www.dgsi.pt: “É pacifico na doutrina e na jurisprudência que a expressão «quando o pedido do réu emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa» é o mesmo que causa de pedir, isto é, de acordo com a primeira parte da enunciada previsão legal, admite-se a reconvenção quando o pedido reconvencional tem a mesma causa de pedir da ação, isto é, o mesmo facto jurídico (real, concreto) em que o autor fundamenta o direito que invoca. Já a segunda parte desse normativo tem o sentido de que ela só é admissível quando o réu invoque como meio de defesa, qualquer ato ou facto jurídico que, a verificar-se, tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor, ou seja, embora o pedido reconvencional não se enquadre estritamente na causa de pedir da ação, aquele emerge de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, no sentido de que resulta dos factos com os quais indiretamente se impugna os alegados na petição inicial”.

O pedido reconvencional emerge do mesmo facto jurídico quando tem a mesma causa de pedir que baseia o pedido da acção ou emerge do acto ou facto jurídico que serve de fundamento à defesa, pretendendo-se, contudo, neste caso, obter um efeito diferente desse acto ou facto, reduzindo, modificando ou extinguindo o pedido do autor.

“Quer dizer: no caso de a factualidade invocada pelo réu-reconvinte se enquadrar na causa de pedir que serve de fundamento à defesa, não basta que o réu alegue qualquer acto ou facto jurídico para que dele se possa extrair um outro efeito jurídico de que se pretenda fazer valer através do pedido reconvencional. É necessário um plus: que o facto alegado, a provar-se, produza o desejado efeito útil defensivo, isto é, tenha a virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido formulado pelo autor.” – cfr. Marco António de Aço e Borges, in [“A Demanda Reconvencional”, Quid Juris, 2008,] p. 42.

Por sua vez, Jacinto Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, 2000, p. 32, refere, quanto à reconvenção reportada a factos que servem de fundamento à defesa, que é necessário que o facto invocado, a verificar-se, produza efeito útil, ou seja, tenha virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.

José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, p. 517-518, esclarecem que a referência a facto jurídico que serve de fundamento à defesa deve entender-se como reportada às excepções peremptórias, ou seja, aos factos jurídicos susceptíveis de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (cfr. art. 576º, nº 3 do Cód. Proc. Civil), ainda que a coincidência seja parcial.

Cfr., no mesmo sentido, Acórdão do TRG de 23/03/2017, relator Francisca Vieira; e do TRP de 01/07/2010, relator Amaral Ferreira, ambos acessíveis em www.dgsi.pt; salientando-se neste último Acórdão: “desde que se verifique uma coincidência parcial entre os factos que o R., ao contestar a tese do A., invocou para justificar os fundamentos da sua própria defesa, mantendo, todavia, outros que exorbitam estritamente dessa defesa uma conexão com eles, tanto basta para que a reconvenção seja admissível”.

Descendo ao caso dos autos, vemos que:

a) na petição inicial, a Autora invoca como causa de pedir o direito legal de preferência de que alega ser titular, em virtude de ser comproprietária do imóvel em causa nos autos, direito esse, que, na sua versão, uma vez exercido junto do Réu e não cumprido por este, lhe conferiu o direito da execução específica relativo à compra daquele imóvel;

b) na contestação, o Réu invoca, como excepção, a extinção do direito de preferência da Autora enquanto comproprietária, quer (i) por caducidade, por a Autora não ter procedido ao depósito do preço devido nos termos do art. 1410º, nº 1 do Cód. Civil; quer (ii) por a Autora ter renunciado a tal direito (de preferência) ao celebrar o acordo, homologado por sentença, no processo nº 1927/2001 do Tribunal de Oeiras, em que ficou estabelecida a venda do imóvel a terceiro;

c) na reconvenção, o Réu alega que as partes se obrigaram, no acordo homologado por sentença no processo nº 1927/2001 do Tribunal de Oeiras, a vender o imóvel a terceiro por preço superior a € 25.000,00; a Autora aceita nos presentes autos o preço de € 50.000,00 para venda do imóvel; um terceiro dispôs-se a comprar o imóvel pelo valor de € 52.000,00; por isto, em face do incumprimento da Autora em vender o imóvel ao terceiro, pretende o Réu, nesta acção, obter a condenação da Autora a vender o imóvel pelo preço de € 52.000,00 ao mencionado terceiro, o que peticiona em sede de reconvenção.

Perante este circunstancialismo, é cristalino que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, uma vez que este fundamento se consubstancia, como se viu, na não observância pelo Réu do direito de preferência legal da Autora como comproprietária, sendo certo que o Réu alega, na contestação, a inexistência desse direito de preferência e não é nessa inexistência que fundamenta o pedido reconvencional.

Por outro lado, perante o descrito circunstancialismo, é também evidente que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, uma vez que o Réu invoca, como defesa, a inexistência, por extinção, do direito de preferência da Autora e não estriba o pedido reconvencional nessa inexistência, mas, antes e de per si, no incumprimento pela Autora do acordo celebrado no processo nº 1927/2001 do Tribunal de Oeiras e aí homologado por sentença.

Nesta conformidade, concluímos que não se mostra verificado o requisito de admissibilidade substantiva consagrado na al. a) do nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil relativamente ao pedido reconvencional – sendo manifesto que, no caso, também as demais alíneas daquele preceito legal não se mostram preenchidas, nem tal foi, sequer, invocado pelo Réu/apelante."

MTS


30/01/2024

Algumas conclusões sobre os "factos conclusivos"


1. O acórdão da RP 12/7/2023 (797/19.4T8VCD-E.P1) ocupa-se, uma vez mais, dos chamados "factos conclusivos". O acórdão constrói os "factos conclusivos" da seguinte maneira:

É matéria conclusiva toda aquela que não consiste na perceção de uma ocorrência da vida real, trate-se de um facto externo ou interno, mas antes constitui um juízo acerca de certa realidade factual, devendo distinguir-se dentro desta matéria conclusiva os juízos de facto periciais, dos juízos de facto comuns passíveis de serem emitidos por qualquer pessoa com base nos seus conhecimentos.

O problema não reside na construção dos "factos conclusivos", mas antes na censura que a RP faz à utilização dos "factos conclusivos" pela 1.ª instância. O acórdão fornece a oportunidade para, mais uma vez, reflectir sobre essa figura misteriosa que são os "factos conclusivos". As reflexões contêm uma crítica interna ao acórdão e uma crítica externa à negação dos "factos conclusivos" como algo inerente à aplicação do direito a casos concretos.


2. 
Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A recorrente pede nas conclusões das suas alegações a reapreciação dos pontos 14 e 15 dos factos provados, pugnando por que tal matéria seja julgada não provada.

Em síntese, a recorrente alicerça as suas pretensões no seguinte:

- quanto ao ponto 14 dos factos provados, refere que a sua primeira parte é conclusiva e, de todo o modo, nenhuma prova desta matéria foi produzida na audiência final;
 
- quanto ao ponto 15 dos factos provados, a recorrente afirma que a prova produzida na audiência final é de todo insuficiente para permitir a formação de uma convicção positiva quanto à realidade de tal factualidade.

Os pontos de facto cuja reapreciação é requerida pela recorrente têm o seguinte teor:

- A requerida está a prejudicar o crescimento e bem-estar da filha, causando ao progenitor tristeza e revolta (ponto 14 dos factos provados);

- A requerida diz ao requerente que ele só verá a filha “para o ano”, “quando ela quiser”, dizendo ao requerente, que o “regime de visitas caducou”, “que o seu mandatário diz que não há visitas agora”, “que não pode ver a filha”, “agora só para o ano”, provocando no requerente um sentimento de revolta e tristeza (ponto 15 dos factos provados)."
 
O acórdão considerou que a primeira parte da afirmação "A requerida está a prejudicar o crescimento e bem-estar da filha, causando ao progenitor tristeza e revolta" enuncia um "facto conclusivo". O que é interessante é que o mesmo acórdão, na reapreciação da matéria de facto e depois de alterar o facto provado no ponto 14, considera não conter nenhum "facto conclusivo" a afirmação de que "O requerente sente revolta e tristeza por não poder visitar sua filha CC".

Não se consegue vislumbrar a razão para a diferenciação. Ambas as afirmações possuem carácter valorativo e, por isso, necessariamente conclusivo e ambas são inferências (ou conclusões) retiradas de factos que foram provados em juízo.


3. O anátema que recai sobre os "factos conclusivos" esquece o carácter inferencial da prova. Dos factos que são provados em juízo o juiz vai inferir os factos que integram as previsões das regras jurídicas, ou seja, os factos jurídicos. Por exemplo: da circunstância de ter ficado demonstrado que o progenitor se ausentou da casa de morada de família e não mais procurou estabelecer contacto com o filho pode inferir-se que esse progenitor não se preocupa com "o desenvolvimento físico, intelectual e moral" do filho (art. 1885.º, n.º 1, CC).

Não há nenhum problema em que o tema da prova seja o de saber se a conduta do progenitor afectou ou está a afectar "o desenvolvimento físico, intelectual e moral" do filho, porque seria verdadeiramente estranho que o que se pretende saber e o que deve ser esclarecido através da produção da prova fosse exactamente o que não poderia ser enunciado como tema da prova. Dito isto, é claro que a testemunha não é chamada a pronunciar-se sobre como qualifica a conduta do progenitor, mas antes a referir factos das quais se possa inferir que o progenitor está a afectar "o desenvolvimento físico, intelectual e moral" do filho. Este é o tema da prova e o que o tribunal (não, evidentemente, a testemunha) deve dar como provado ou não provado.


4. a) Sem se admitir que dos factos provados possam ser inferidos os factos jurídicos nunca se pode chegar à aplicação do direito a um caso concreto.  A razão é simples: os chamados "factos conclusivos" não são mais que os factos que integram a previsão de uma regra jurídica, ou seja, os factos jurídicos; ora, se não for possível operar com os "factos conclusivos", está a negar-se a existência dos factos jurídicos e a impossibilitar o preenchimento da previsão de qualquer regra jurídica.

Dito de outro modo: o juiz do processo vai ter necessariamente de recorrer à figura dos "factos conclusivos", dado que em algum momento ele vai ter de verificar se a previsão de uma regra jurídica está preenchida ou não preenchida. Portanto, o que se impõe não é combater os "factos conclusivos", mas antes concluir que esses factos são inerentes à aplicação do direito a um caso concreto. Sem "factos conclusivos" não há a conclusão de nenhum processo.

b) Também quanto a este aspecto o acórdão da RP constitui um excelente exemplo. Aproveitando o facto referido no ponto 14 dos factos provados, suponha-se que uma regra jurídica tem a seguinte previsão: "Se algum dos progenitores estivar a prejudicar o crescimento e o bem-estar de algum filho. [...]". Torna-se claro que, sem o juiz do processo ter inferido dos factos provados que "A requerida está a prejudicar o crescimento e bem-estar da filha" (precisamente a afirmação que a RP qualificou como um inaceitável "facto conclusivo"), nunca se conseguiria aplicar aquela regra.

Isto demonstra que, sem recorrer aos "factos conclusivos", nunca se conseguirá preencher a previsão de uma regra jurídica. Por exemplo: para aplicar a regra que consta do art. 483.º, n.º 1, CC será indispensável recorrer ao "facto conclusivo" de que o lesante actuou com negligência; sem esse "facto conclusivo" -- isto é, sem se concluir, em função dos factos provados, que o lesante actuou com negligência -- nunca se poderá aplicar aquela regra.


5. Por fim, cabe referir que a figura dos "factos conclusivos" foi construída (com ou se razão, isso não interessa agora apurar) quando no processo civil português havia uma estrita separação entre a decisão da matéria de facto pelo tribunal colectivo e a decisão da causa pelo juiz do processo. Terminada esta separação e decidindo o juiz da causa numa única sentença tanto a matéria de facto, como a matéria de direito, é absolutamente irrelevante se esse juiz se pronuncia sobre o preenchimento da previsão de uma regra jurídica umas linhas "abaixo" ou "acima". A verdade é que, em algum momento da sentença, o juiz tem de verificar se os factos provados são subsumíveis à previsão de uma regra jurídica.

Excluir da realidade processual os "factos conclusivos" é contrariar a solução que, de forma adequada, foi finalmente consagrada no regime processual civil português: a de que não há uma estrita separação entre a matéria de facto e a matéria de direito. Afinal, qualquer facto provado em processo só tem relevância se for um facto jurídico, ou seja, um facto que o acórdão qualifica como "facto conclusivo". Em direito, não há senão factos jurídicos, pelo que de duas, uma: 

-- Do facto que é provado em processo não se pode inferir nenhum facto jurídico, porque esse facto não é subsumível à previsão de nenhuma regra jurídica; esse facto é um facto juridicamente irrelevante e não justifica a aplicação de nenhuma regra jurídica;
 
-- Do facto que é provado em processo pode inferir-se um facto jurídico, ou seja, um facto que é subsumível à previsão de uma regra jurídica; o tribunal pode aplicar esta regra, isto é, pode aplicar ao caso concreto a estatuição dessa regra.
 

6. Em suma: em vez de serem combatidos, os "factos conclusivos" devem ser vistos como algo inerente ao carácter inferencial da prova e ao preenchimento das previsões das regras jurídicas; a única coisa que se impõe fazer é substituir a equivocada expressão "factos conclusivos" pela correcta expressão "factos jurídicos".


MTS


Jurisprudência 2023 (97)


Presunções judiciais;
noção; funcionamento*


1. O sumário de STJ 11/5/2023 (3154/18.6T8GDM.P1.S1) é o seguinte:

I - Sendo o pedido reconvencional em sentido processual autónomo do pedido do autor na ação em caso de recurso devem registar-se quanto a ele as exigências de alçada e sucumbência como requisitos de recorribilidade, razão para que se o valor do pedido reconvencional for inferior ao da alçada da Relação não é admissível recurso de revista.

II - A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da observância das regras de direito probatório material sindicando se a decisão recorrida se conformou, ou não, com as normas que regulam tal matéria (direito probatório), constitui matéria de direito, caindo, por isso, na esfera de competência própria e normal do Supremo Tribunal de Justiça.

III - No recurso de revista o conhecimento da decisão de facto em matéria de presunções judiciais é limitada, podendo admitir-se que o STJ apenas pode avaliar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.

IV - Sendo uma presunção judicial uma ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - art. 349 do CC – não constitui presunção a atividade de convicção que o julgador empreende quando na livre apreciação da prova, designadamente das declarações e testemunhos, fixa como provado um determinado facto. Neste caso, de elementos de prova produzida fixam-se como provados factos, na presunção não é de elementos de prova que se extraem ilações, mas sim de outros factos conhecidos, isto é, provados.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Não se insurgindo a recorrente contra a inobservância do disposto no art. 674 nº3 quanto às exigência por parte da lei certa espécie de prova para a fixação dos factos ou quanto à força probatória de determinado meio de prova, protesta antes quanto ao uso que afirma ter sido feito pela Relação na decisão de presunções que, como se sabe, não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo antes, como se alcança do art. 349 do Cód. Civil, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos). Efetivamente a presunção consiste num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência comum - cfr., sobre a noção de prova por presunção Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 214, e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, págs. 500 e 501 - sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351 do CPC). Daí que, face à competência alargada da Relação, em sede da impugnação da decisão de facto (art. 662 n.º 1, do CPC), possa a 2ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do art. 607, aplicável por via do art. 663º, n.º 2, ambos do C.PC. Porém, em sede de recurso de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é limitada, podendo admitir-se, e não sem controvérsia, que o STJ apenas poderá avaliar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados [...] - vide, entre outros, o acórdão do STJ, de 25/11/2014, proferido no processo n.º 6629/04. 0TBBRG.G1.S1, e o acórdão 24/11/2016, proferido no processo n.º 96/14.8TBSPS.C1.S1, ambos acessíveis dgsi. pt/stj.

No caso, foi julgado como provado na sentença que “16 - Os réus tomaram conhecimento deste contrato [de fornecimento] logo de seguida à outorga do mesmo, pelo menos em data anterior à outorga do contrato promessa.”, e tendo a recorrente impugnado através do recurso de apelação este facto, pretendendo-o fixado como não provado, a sua pretensão foi julgada improcedente mantendo-se inalterado.

Uma imediata observação conduz à conclusão de não se estar perante uma presunção em sentido técnico jurídico, mas sim perante um facto julgado como provado com base nos elementos de prova que foram avaliados mediante a livre apreciação do julgador. É evidente nas alegações/conclusões de revista que aquilo que o a recorrente questiona é a motivação que se sustentou a convicção do(s) julgador(es), bastando verificar que transcreve excertos dessa motivação para tentar justificar que dos elementos probatórios, designadamente das declarações e testemunhos ouvidos em primeira instância e reavaliados na Relação, nunca se poderia dar como provado aquele facto. Todavia, dizer-se que segundo as regras de experiência comum resulta das declarações e testemunhos produzidos em audiência um determinado facto não pode significar, nem significa, que esse mesmo facto assim fixado como provado tenha sido extraído por presunção. Por definição antes enunciada, a presunção identifica-se com ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - art. 349 do CC - não reportando à atividade de convicção que o julgador empreende quando na livre apreciação da prova, designadamente das declarações e testemunhos, fixa como provado um determinado facto. Contrariamente ao que neste caso se realiza e que é certificar factos e realidade de elementos de prova produzida, na presunção não é de elementos de prova que se extraem ilações, mas sim de outros factos conhecidos – no sentido de as presunções não serem meios de prova próprios, mas terem de resultar de factos provados conhecidos veja-se o ac. STJ de 11-4-2019 no proc. 8531/14.9T8LSB.L1.S1 e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora in Manual de Processo Civil, p. 500.

A lei acolhe nesta matéria o carácter dedutivo da presunção, a dependência das máximas da experiência admitindo um certo facto por outro, como se tratasse de um só ou de um único o que torna exigível ter de existir um facto conhecimento concreto e provado sem presunção de onde se extrai um facto desconhecido provável através de uma conexão natural e lógica entre o primeiro e o segundo. A obtenção do segundo facto (o provável) e não do primeiro que tem de ser conhecido, evidencia um raciocínio necessariamente lógico, razoável e seguro em que a presunção funciona como a explicação conclusiva de forma a que se afigure como consistente dizer-se que, se este facto está provado deveremos na extensão dos fundamentos que detém concluir que também, se deve julgar provado este outro que está no desenvolvimento (lógico, razoável e seguro) do evidente, não podendo porém esquecer-se nunca que o facto que serve de ponto de partida é já um facto conhecido ou provado, em que apenas se pretende alcançar um facto desconhecido – vd. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora in Manual de Processo Civil, p. 501e Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 215. Também Hélder Martins Leitão considera que as presunções são o resultado da aplicabilidade de máximas da experiência, visto que o julgador, ao partir de um facto provado ou conhecido e ao aplicar as máximas da experiência, conclui a existência de um outro facto, que poderá ser uma mera consequência do facto que serve de base à presunção – in Da Instrução em Processo Civil: das Provas. 4ª edição. Ecla Editora, 1991, p.45. Se as presunções judiciais em que a Relação sustente a sua convicção são extraídas das regras da experiência comum a verdade é que estas regras têm de incidir, sempre, sobre algum ou alguns factos que estejam acessíveis nos que venham a ser julgados provados. Quando não, qualquer facto julgado como provado que para assim ter sido julgado comportasse uma observação das regras de experiência comum sobre as próprias declarações e testemunhos prestados teria sempre de se considerado uma presunção.

Pode argumentar-se que são as regras de experiência comum quando acionadas que identificam o que é ou não é uma presunção e não que essas regras tenham de ser obtidas a partir de factos provados, não podendo retirar-se de elementos de prova de livre apreciação como o são os depoimentos ou testemunhos. Todavia tal argumento soçobra se tivermos presente que impugnar a matéria de facto com base na deficiente convicção do julgador em 1ª instância não é o mesmo que pretender que seja sindicado se o uso de determinada presunção judicial extraída na decisão recorrida ofende qualquer norma legal, se padece de evidente ilogicidade ou se foi extraída de factos não provados. [...] Se não houvesse esta distinção não haveria diferença alguma entre factos provados e presunções e estaria encontrada a possibilidade de ser sempre admitido recurso para o STJ desde que se alegasse (como a recorrente alega) que determinado facto fixado como provado foi obtido com base nas declarações de testemunhas e depoentes e que para o julgador formar a sua convicção se socorreu das regras lógicas de experiência comum. Em verdade nenhum facto que seja julgado provado e resulte de elementos de prova de livre apreciação se obtém a não ser através do socorro das regras da lógica e experiência pois a inexistência de prova plena implica precisamente um juízo de convicção não absoluto que só aquelas regras tornam minimamente lógico, razoável e seguro. Deve perguntar-se até que diferença haveria entre presunções e erro de convicção se ambas significassem o mesmo. É evidente que uma exigência como aquela que decorre da interpretação feita do art. 349 do CC reduz a aplicação da previsão do art. 674 nº3 do CPC para abrigar os recurso com base no protestado erro sobre a presunção extraída pela decisão recorrida, mas isso é precisamente o que corresponde ao sentido dessa previsão quando se afastou o âmbito da presunção como matéria de facto e o configurou como matéria de direito, o que só se respeitará na medida em que o STJ nesse segmento recursivo não seja chamado a apreciar convicções, mas sim juízos lógicos e normativos sobre factos. [...]

Nesta conformidade, porque no caso presente a decisão recorrida não extraiu por presunção qualquer facto provado (de outros provados) devem ser julgadas improcedentes as conclusões de recurso dirigidas quanto ao pedido da autora."


*[Comentário] Salvo o devido respeito, o acórdão -- que tem de se admitir que, quanto à decisão do caso concreto, esteja certo -- não prima pela clareza quanto às presunções judiciais.

Afirma-se no acórdão o seguinte:

"[...] dizer-se que segundo as regras de experiência comum resulta das declarações e testemunhos produzidos em audiência um determinado facto não pode significar, nem significa, que esse mesmo facto assim fixado como provado tenha sido extraído por presunção".

A verdade é que, se se afirma que foram utilizadas regras de experiência, o mais correcto na linguagem técnica é considerar que o facto foi julgado provado através de uma presunção judicial, ou seja, através da sua inferência de um facto provado. Se, por exemplo, uma testemunha afirmar que viu o carro, sem qualquer passageiro a bordo, resvalar pela ribanceira (facto probatório) e se o tribunal concluir que o automóvel não estava devidamente travado (facto probando), pode certamente "dizer-se que, segundo as regras de experiência comum, resulta das declarações e testemunhos produzidos em audiência [...] que esse mesmo facto assim fixado como provado [foi] extraído por presunção".

Também não é muito claro o que, no contexto do acórdão, se pretende significar com a expressão "elementos de prova". De um meio de prova resultam factos provados ou não provados (ou, pelo menos, princípios de prova ou verosimilhanças de factos), não "elementos de prova".

MTS

29/01/2024

Jurisprudência europeia (TJ) (297)


Reenvio prejudicial — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Artigo 3.°, n.° 1 — Artigo 6.°, n.° 1 — Artigo 7.°, n.° 1 — Artigo 8.° — Título executivo com força de caso julgado — Poder do juiz de examinar oficiosamente o caráter eventualmente abusivo de uma cláusula no âmbito da fiscalização de um processo de execução — Registo nacional das cláusulas de condições gerais declaradas ilícitas — Cláusulas diferentes das que figuram nesse registo devido à sua redação, mas que têm o mesmo alcance e produzem os mesmos efeitos


TJ 18/1/2024 (C‑531/22, Getin Noble Bank et al./TL) concluiu o seguinte:

1)      O artigo 6.°, n.° 1, e o artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores,

devem ser interpretados no sentido de que:

se opõem a uma legislação nacional que prevê que um órgão jurisdicional nacional não pode proceder oficiosamente a uma análise do caráter eventualmente abusivo das cláusulas constantes de um contrato e daí retirar as consequências, quando fiscaliza um processo de execução que assenta numa decisão que decreta uma injunção de pagamento definitiva revestida da autoridade de caso julgado:

–       se essa legislação não previr essa análise na fase da emissão da injunção de pagamento, ou

–       quando essa análise só esteja prevista na fase da oposição deduzida contra a injunção de pagamento em questão, se existir um risco não negligenciável de o consumidor em causa não deduzir a oposição exigida porque devido ao prazo particularmente curto previsto para o efeito, porque à luz das custas que uma ação judicial implica em relação ao montante da dívida contestada ou porque a legislação nacional não prevê a obrigação de comunicar a este consumidor todas as informações necessárias para lhe permitir determinar o âmbito dos seus direitos.

2)      O artigo 3.°, n.° 1, o artigo 6.°, n.° 1, o artigo 7.°, n.° 1, e o artigo 8.° da Diretiva 93/13,

devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem a uma jurisprudência nacional segundo a qual a inscrição de uma cláusula de um contrato no registo nacional das cláusulas ilícitas tem por efeito que essa cláusula seja considerada abusiva em qualquer processo que envolva um consumidor, incluindo em relação a um profissional diferente daquele contra o qual foi iniciado o processo de inscrição da referida cláusula nesse registo nacional e quando essa mesma cláusula não apresente uma redação idêntica à da cláusula registada, mas tenha o mesmo alcance e produza os mesmos efeitos para o consumidor em questão.


Jurisprudência 2023 (96)


Impugnação da matéria de facto;
alegações; conclusões*


1. O sumário de STJ 27/4/2023 (4696/15.0T8BRG.G1.S1) é o seguinte:

A não indicação nas conclusões das alegações do recurso de apelação dos concretos pontos da matéria de facto que se pretende impugnar permite a rejeição imediata do recurso nessa parte.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:

Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A Requerida, no recurso de apelação que interpôs para o Tribunal da Relação, pretendeu impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1.ª instância.

Para tal indicou no corpo das alegações os concretos pontos da matéria de facto que pretendia impugnar mas, nas conclusões desse recurso, limitou-se a fazer uma referência genérica à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

A decisão recorrida efetuou o seguinte raciocínio:

... são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, em consonância com a regra geral que se extrai do artigo 635º do CPC, pelo que a enunciação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente tem de ser feita nas conclusões.

Essa especificação é indispensável, na medida em que as conclusões circunscrevem a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação. Não sendo, manifestamente, uma questão de conhecimento oficioso, a circunstância de não se especificarem os concretos pontos de facto incorretamente julgados consubstancia, desde logo, uma falta de indicação do seu objeto.

Com efeito, as conclusões exercem a importante função de delimitação do objeto do recurso, através da identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende impugnar na decisão recorrida e sobre o qual se pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação. O tribunal superior só aprecia o objeto definido pelas conclusões e, por isso, não tem de conhecer de uma questão, seja ela factual ou de direito, que não consta das conclusões, a não ser que se trate de matéria de conhecimento oficioso. O que não consta das conclusões não é objeto de conhecimento. E formular conclusões não é remeter para a motivação. A exigência de formulação de conclusões não é suprível por mera remissão.

Além de habilitar a um adequado exercício do contraditório pelo recorrido, a necessidade dessa especificação está também intimamente ligada às duas regras impostas no artigo 608º, nº 2, do CPC, onde se estabelece que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».

Em conformidade com o disposto no artigo 635º do CPC, uma questão considera-se integrada no recurso se constar das conclusões; se assim suceder, o tribunal de recurso tem de resolver a questão que foi submetida à sua apreciação. Pelo contrário, se determinada questão não for indicada nas conclusões o tribunal não pode ocupar-se dela, ou seja, não pode dela conhecer, exceto se lhe for imposto o conhecimento oficioso.

Sendo assim, num recurso em matéria de facto, se o tribunal de recurso não aborda um ponto de facto que o recorrente identifica como incorretamente julgado, verifica-se uma nulidade por omissão de pronúncia (artigos 666º, nº 1, e 615º, nº 1-d, 1ª parte, do CPC); se decide relativamente a um ponto de facto que o recorrente não identificou como incorretamente julgado, em princípio, comete uma nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1-d, 2ª parte, do CPC).

Vejamos agora qual é a consequência da falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto incorretamente julgados.

Por um lado, exceto em matéria de que lhe cumpre apreciar oficiosamente, é inequívoco que o tribunal superior não pode conhecer de uma questão que não foi enunciada nas conclusões.

Por outro lado, a lei expressamente impõe a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto quando o recorrente não especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC. Estabelecendo um paralelismo com a petição inicial, tal como esta está ferida de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as conclusões num recurso em matéria de facto em que não se indicam os concretos pontos de facto incorretamente julgados são “ineptas”.

E não se justifica sequer a prolação de qualquer despacho de convite à sua indicação. Foi propósito deliberado de o legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento das alegações a dirigir ao apelante. Por um lado, a lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de cumprimento pelo recorrente do referido ónus processual. Por outro lado, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento das conclusões, uma vez que o artigo 652º, nº 1, al. a), do CPC apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento das «conclusões das respetivas alegações, nos termos do nº 3 do artigo 639º», ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto.

Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, um dos requisitos a que obedece a impugnação da matéria de facto é o da indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, uma vez que só essa indicação permitirá quer à contraparte, quer ao tribunal saber quais os juízos probatórios que o recorrente pretende pôr em causa com a interposição do recurso.

A Requerida, no requerimento de interposição de recurso de apelação, indicou os concretos pontos de facto que pretendia ver alterados, mas efetuou essa indicação no corpo das alegações e não nas suas conclusões, onde se limitou a efetuar uma referência genérica reveladora que tinha deduzido uma impugnação à decisão sobre a matéria de facto.

Como bem se refere na fundamentação do acórdão recorrido, as conclusões de um recurso exercem a importante função de delimitação do objeto do seu objeto, através da identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende impugnar na decisão recorrida e sobre o qual se pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação. O tribunal superior só aprecia o objeto definido pelas conclusões e, por isso, não tem de conhecer de uma questão, seja ela factual ou de direito, que não consta das conclusões, a não ser que se trate de matéria de conhecimento oficioso.  E essa identificação não pode ser efetuada apenas por uma simples e genérica remissão para o corpo das alegações, uma vez que ela não define, com certeza qual o âmbito do recurso interposto, não cumprindo os objetivos visados com a exigência da existência de conclusões nas alegações de recurso.

Resta saber se este incumprimento tem como consequência a rejeição imediata da impugnação da decisão sobre a matéria de facto ou se, ao invés, deve ser proferido um despacho que convide o Recorrente a aperfeiçoar as conclusões apresentadas.

O artigo 640.º do Código de Processo Civil, impõe a rejeição imediata da impugnação relativa à matéria de facto no recurso de apelação quando não se proceda às especificações que constam das três alíneas do seu n.º 1, onde se inclui, na sua alínea a), a indicação dos concretos pontos de facto  que se consideram incorretamente julgados.

Ora, quando esta omissão ocorre apenas na parte conclusiva do recurso, como sucede no caso presente, o que se verifica é um deficiente cumprimento do ónus de formular as conclusões do recurso, uma vez que a especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados foi feita no corpo das alegações, mas a sua referência nas conclusões foi deficiente, uma vez que o Recorrente limitou-se a fazer uma referência genérica a essa alegação, sem que aí tenha indicado os concretos pontos de facto impugnados.

Poder-se-ia, pois, pensar que a consequência para essa deficiência não deve ser a mesma que está prevista para a total falta de especificação daqueles pontos – a rejeição imediata da impugnação – devendo antes ser dirigido um convite à correção da redação das conclusões, nos termos do artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Não tem sido esse, no entanto, o mais recente entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [V.g. os acórdãos de 25.05.2018, Proc. nº 4386/07 (Rel. Fernanda Isabel Pereira), de 09.02.2021, Proc. nº 16926/04 (Rel. Jorge Dias), de 18.02.2021, Proc. nº 20592/16 (Rel. Nuno Pinto de Oliveira), de 09.06.2021, Proc. nº 10.300/18 (Rel. Ricardo Costa), de 07.07.2021, Proc. nº 682/19 (Rel. Barateiro Martins), de 09.12.2021, Proc. nº 9296/18 (Rel. Rijo Ferreira), de 02.02.2022, Proc. 1786/17 (Rel. Fernando Samões), de 14.02.2023, Proc. nº 1680/19 (Rel. Jorge Dias), e de 14.02.2023, Proc. nº 82/20 (Rel. Pedro Lima Gonçalves).], na leitura do disposto no artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, considerando-se que o disposto neste número não é aplicável à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, reportando-se essa possibilidade às situações previstas no número anterior, ou seja quando o recurso versa sobre matéria de direito e não sobre matéria de facto [Essa parece ser também a opinião de ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, 2020, p. 639-640.].

Quando essa deficiência ocorre nos requisitos da impugnação da matéria de facto a sanção é aquela que está prevista no artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – rejeição imediata do recurso, sem hipóteses de correção.

Esta solução não infringe qualquer princípio constitucional, designadamente a exigência de um processo equitativo, uma vez que este modelo processual não impõe que em qualquer situação de omissão de cumprimento de determinados requisitos formais legalmente previstos não possa ser determinada a perda de um direito processual sem que seja concedida à parte uma oportunidade de suprir essa omissão, conforme tem sido entendimento reiterado do Tribunal Constitucional.

Na verdade, na definição da tramitação do processo civil, vigora uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu incumprimento, desde que não sejam surpreendentes, sejam funcionalmente adequadas aos fins do processo e que as preclusões que decorram do seu incumprimento não se revelam totalmente desproporcionadas à gravidade e relevân­cia da falta.

Estamos perante um ónus de alegação previsto na lei, de fácil cumprimento, com a cominação de rejeição também expressamente prevista na lei, e em que a imposição de um convite à correção resultaria desrazoavelmente em mais um acréscimo de um prazo para impugnação da matéria de facto que já se encontra legalmente acrescido."


*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não parece ser convincente que o que vale para a matéria de direito -- o convite ao aperfeiçoamento (ou ao "completamento") das conclusões das alegações de recurso (art. 639.º, n.º 3, CPC -- não deva valer igualmente para a matéria de facto.

Com isto não se quer dizer que a solução do acórdão não possa resultar da lei. O que se quer dizer é que essa solução não tem de resultar da lei, dado que o vício é em ambas as situações o mesmo: o carácter incompleto das conclusões em relação ao que consta do corpo das alegações. Para a mesma situação não deve haver soluções distintas.

MTS


26/01/2024

Jurisprudência constitucional (224)


Processo constitucional;
recurso de revisão

-- O sumário de TC 30/3/2023 (172/2023) é o seguinte:

Não conhece do objeto do recurso extraordinário de revisão de decisão do Tribunal Constitucional - que confirmou juízo de não admissão de recurso de ilegalidade, por inobservância dos pressupostos processuais necessários ao respetivo conhecimento -, interposto com base em acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenatório do Estado Português, por violação da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.


Notários;
tabela de honorários e encargos

-- O sumário de TC 7/12/2023 (841/2023) é o seguinte:

Não julga inconstitucionais as normas constantes do artigo 16.º, n.º 1, da Portaria n.º 385/2004, de 16 de abril, quando estabelece o dever de cada notário «por sua conta [entregar] ao Ministério da Justiça: a) Por cada escritura - (euro) 10; b) Por cada um dos demais atos que pratica - (euro) 3», valores que, segundo a norma em causa, têm como (suposta) contrapartida o «acesso aos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça», a «utilização do Arquivo Público» e o «Serviços de Auditoria e inspeção»


Incompetência absoluta;
conhecimento

-- TC 18/1/2024 (54/24) decidiu

[...] Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 97.º do Código de Processo Civil segundo a qual a incompetência absoluta do tribunal pode ser arguida pelas partes, e conhecida pelo tribunal, após prolação de sentença sobre o mérito da causa; [...]

 

Bibliografia (1106)


-- Barbieri, S., Il rinvio pregiudiziale tra giudici ordinari e Corte costituzionale. / La ragione del conflitto. (Jovene: Napoli 2023)


-- Pinto Monteiro, A. P., O Third Party Funding e o dever de independência e imparcialidade dos árbitros: breves notas, in Lex Mercatoria - Estudos em Homenagem ao Professor Augusto Teixeira Garcia (Almedina: Coimbra 2023), 85 [OA]


Jurisprudência 2023 (95)


Matéria de facto; 
conceitos jurídicos; "angariador"*


1. O sumário de RE 20//4/2023 (390/20.9T8SSB.E1) é o seguinte:

I – O despacho que rejeita a junção de um documento aos autos é autonomamente recorrível, ao abrigo do disposto no artigo 644.º, n.º 2, alínea d) do CPC, de acordo com cuja estatuição cabe recurso de apelação autónoma do despacho de rejeição de algum meio de prova.

II – Não tendo sido interposto recurso, tal despacho transitou em julgado, estando coberto pelo caso julgado formal e tendo força obrigatória dentro do processo, tal como previsto no artigo 620.º, n.º 1, do CPC, autoridade essa que vincula este tribunal, que não pode reapreciar a decisão da matéria de facto com fundamento em tal documento.

III – A qualidade de “angariador” de um imóvel é um conceito jurídico, que depende da prova da prática dos atos previstos no regime jurídico a que fica sujeita a atividade de mediação imobiliária, que exige ainda que essa menção conste obrigatoriamente do contrato de mediação.

IV – A apreciação da matéria de facto não pode dissociar-se da qualificação jurídica dos atos praticados, que determina a base factual, impondo-se nesse caso, a modificação da matéria de facto, com a eliminação desse segmento do ponto de facto provado.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dissente a autora do segmento da decisão recorrida que considera que a angariação do imóvel da Lagoa de Albufeira, foi efetuada por BB, apenas sendo devido à autora metade do valor que lhe cabia da comissão.

Defendendo ter sido ela quem angariou o imóvel da Lagoa da Albufeira, que BB somente lhe referenciou, circunscreve a sua impugnação da decisão de facto da sentença recorrida, ao segmento final do ponto 13, mais concretamente onde consta que foi BB quem na prática angariou esta moradia para a Chave Certa, ponto este da decisão da matéria de facto, que determinou a absolvição parcial da Ré do pedido, que foi decidida na sentença recorrida, e que a Apelante pretende seja revogada nessa parte.

Tendo a apelante cumprido os ónus que sobre si impendem, cumpre apreciar se a prova produzida, impõe ou não decisão diversa da recorrida, à luz das sobreditas considerações genéricas.

In casu, para fundamentar a sua decisão quanto ao indicado ponto da matéria de facto, a Senhora Juíza ponderou que:

«CC afirmou, no essencial, que AA e BB estavam como angariadoras e vendedoras de imóveis na loja da Ré localizada em Sesimbra, e no início de 2019 começaram a trabalhar juntas, tendo a segunda transmitido o contacto e o imóvel da cliente P... sito na Lagoa da Albufeira para mediação da venda.

A A., AA acompanhou clientes compradores ao imóvel, que era uma moradia. O contrato de promessa de compra e venda foi celebrado na loja de Lisboa, da Ré, e estiveram presentes AA, BB e a própria testemunha, CC. O sinal foi recebido.

A proprietária da casa, P..., que depôs como testemunha, confirmou que efetivamente foi a BB que indicou o seu imóvel para mediação da venda na Chave Certa, mas que foi AA que posteriormente a esse momento inicial tratou de tudo.

O contrato de mediação imobiliária junto com a p.i., correspondente a tal negócio, é confirmativo de tal sendo que no mesmo se encontra aposta a assinatura de AA e da cliente.

O negócio foi todo realizado por AA, mas como BB referenciou a cliente e o imóvel àquela, ou seja, fez a angariação, tem direito a metade da comissão a pagar pela Chave Certa.

No processo há também uma ficha de visita ao imóvel da Lagoa de Albufeira, assinada pela Autora e pela proprietária P... comprovativa das mencionadas visitas por clientes compradores da Chave Certa.

Existem emails trocados entre AA e a cliente proprietária confirmativos de que a A. esteve à frente desta mediação imobiliária, em nome da Ré.

Os documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial contribuíram para provar a relação de colaboração imobiliária, na angariação e venda de imóveis, entre a Autora e a Ré, os quais constituem publicidade à Chave Certa nas quais está escrito o nome de AA, o endereço eletrónico e o telefone da mesma como contactos da empresa Ré (assim como estão os contactos de BB para o mesmo fim), sendo que no documento 2. AA está denominada como Consultora Imobiliária da Chave Certa, na loja de Sesimbra.

A compradora da moradia sita na Lagoa de Albufeira foi inquirida como testemunha, de seu nome DD, tendo confirmado que, com efeito, na celebração do contrato de promessa de compra e venda estavam presentes quer BB quer a Autora, mas que foi a A. que acompanhou todo o assunto da compra do princípio ao fim tendo estado presente inclusivamente na escritura pública de compra e venda».

Invoca a Apelante que “se é certo que o imóvel da Lagoa da Albufeira não adveio de cliente direto da A., a vendedora também não era cliente de BB pois esta tinha abandonado o processo há anos, limitando-se, à data dos factos, a transmitir o contacto da proprietária, sua antiga cliente, P..., à recorrente. Tratou-se de uma mera referenciação do cliente, de uma dica dada à A., o que aliás é admitido pelo Tribunal. «(…) BB referenciou a cliente (…) àquela (…)» que, todavia, e de forma incorreta, iguala essa referenciação a uma angariação e, por isso, salvo o devido respeito, erradamente conclui que esta «(…) fez a angariação, tem direito a metade da comissão a pagar pela Chave Certa.»

Por seu turno, a Apelada, transcreve excertos do depoimento da testemunha P..., onde consta que a BB também esteve presente no primeiro dia em que a autora e a vendedora do imóvel se encontraram, e também esteve presente na escritura.

É certo que a testemunha BB foi quem facultou à autora o contacto da vendedora, P..., que reuniram no primeiro dia as 3, na reunião em que se estabeleceram as condições do negócio, preço da venda, percentagem da Agência, que a mesma acompanhou o processo pelo menos na fase da celebração do contrato-promessa, e que esteve presente na escritura de compra e venda.

Porém, não cremos que tal imponha a conclusão que foi a BB quem “angariou” o cliente.

Vejamos.

Começando pela prova documental.

O contrato de mediação imobiliária referente ao imóvel em questão, consta a fls. 13 e v.º, como tendo sido celebrado em regime de exclusividade, estando datado de 06.04.2019 e subscrito pela vendedora, a testemunha P..., e pela autora. O mesmo acontece com o relatório de visita ao imóvel, nesse mesmo dia, que faz fls. 14.

Seguidamente, temos uma troca de correspondência eletrónica, de fls, 15 a 29, entre a autora e a vendedora, entre a autora e a compradora, a testemunha DD, agilizando encontros e prestando informações diversas, entre a autora e MM, a respeito do certificado energético, entre a autora e a testemunha CC, e desta para a vendedora, prestando informação sobre o estado das diligências de avaliação bancária, neste caso, com conhecimento apenas para a autora, sem incluir a BB.

A fls. 34v.º consta um email dirigido unicamente à autora, remetido pela compradora do imóvel, a agradecer a diligência daquela, e mencionando apenas a ajuda da CC com os bancos.

Do negócio de Fernão Ferro, sobre o qual a autora apenas pediu o valor da venda, não está junto o contrato de mediação, mas apenas uma ficha de visita ao imóvel (fls. 37 v.º), o que indicia a existência de uma situação diversa entre um e outro caso, como, aliás, a autora mencionou nas suas declarações de parte quando afirmou que quando referindo-se a que tinha dois processos pendentes (quando cessou a colaboração com a ré), afirmando “o de Fernão Ferro era só venda. A angariação é da BB. A Lagoa de Albufeira era angariação e venda”.

Por seu lado, com a contestação, a Ré juntou também um conjunto de emails enviados por CC em que a BB é incluída em conhecimento juntamente com a autora. Mas, se bem atentarmos, os mesmos respeitam já à fase do contrato-promessa de compra e venda (cfr. fls. 69 a 72), constando até um email dirigido pela vendedora para a CC a respeito do NIB para pagamento da comissão à agência, onde refere “a BB já me tinha enviado, mas eu não encontro o email dela”. Com efeito, o único email da testemunha é dirigido à CC, em 22.04.2019, tem como assunto “Comissão Lagoa de Albufeira” e menciona que “derivado a estarmos pendentes de avaliação de imóvel para concluirmos o processo, só pretendo receber a comissão na totalidade, após a escritura do mesmo”.

Vejamos, então, como se processou a angariação da cliente, ou seja, como se fechou o acordo que levou à celebração do contrato de mediação imobiliária a que aludimos.

Disse a testemunha CC – que, tal como o tribunal a quo, se nos afigurou ter sido credível e imparcial –, que surgiu um cliente, a testemunha DD, que pretendia comprar um imóvel na zona da Lagoa, e então a autora começou a fazer a prospeção. “Prospeção é bater de porta em porta ou deixar flyers a dizer que eu tenho um cliente comprador para esta zona, quer vender o seu imóvel? É um bocado assim”. Explicou que a D. AA esteve lá vários dias e porque estava na loja de Sesimbra com a D. BB, esta teve conhecimento e disse: “em tempos eu tive uma senhora na empresa anterior em que eu trabalhei havia uma senhora que queria vender a casa na Lagoa, eu não vou fazer a angariação, mas se quiseres eu dou-te o contacto da senhora.” E assim foi.

Perguntada sobre a razão porque é que ela não fez a angariação, a testemunha respondeu, sem certezas, ter a ideia que alguma coisa tinha corrido mal na outra imobiliária, mas que não entrou em pormenores.

Ora, a verdade, é que esta é a primeira dúvida que afronta as regras da experiência comum para concluirmos que a angariação foi da testemunha e só a venda da autora. Se era a BB quem tinha o contacto da Prof.ª P..., que veio a ser a vendedora, porque razão não lhe ligou diretamente e deu o contacto à autora para ela ligar? Se depois esteve com a autora na casa da testemunha, estiveram as três à mesa, a conversar, e, como esta referiu, falaram dos pormenores do contrato, porque razão, se fosse a BB a angariadora, foi a autora quem subscreveu o contrato de mediação celebrado com a vendedora, e não aquela?

Cremos que a resposta se apresenta natural, e, ao contrário do referido pelo tribunal a quo, foi dada pela própria testemunha CC quando perguntada sobre quem fez o trabalho a partir daquela indicação (dita referenciação, pela testemunha), que respondeu: “tem de ser a AA, não é, que foi o angariador. A D. AA fez a angariação, tirou as fotografias, até tratou do certificado energético na altura e depois vai mostrar ao cliente, e fecha o negócio”. E mais adiante, já concretamente a respeito da percentagem da comissão, respondeu que “neste caso, como tinha a angariação e a venda estamos a falar de 50%, pois os outros 50% é para a empresa”, confirmando quando o Ilustre mandatário questionou se, portanto, “a D. AA teria de receber 50% deste valor (25% da angariação + 25% da venda).

Munidos desta informação sobre as concretas tarefas levadas a cabo pela autora (confirmadas também pelo teor dos depoimentos das testemunhas vendedora e compradora), confrontemos a questão de facto, com a qualificação jurídica dos atos praticados, que determina a base factual.

Com pertinência para o caso em presença, cumpre relembrar o ensinamento de A. CASTANHEIRA DAS NEVES quando sublinha que “«a questão–de-facto» e a «questão-de-direito» não são duas entidades em si, de todo autónomas e independentes, antes mutuamente se condicionam, além de também mutuamente se pressupõem e remetem uma para a outra”(…) [In Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano nº 129, página 166.]. “Para dizer a verdade, o puro facto e o puro direito não se encontram nunca na vida jurídica: o facto não tem existência senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação do direito, o direito não tem interesse senão no momento em que se trata de aplicar ao facto; pelo que quando o jurista pensa o facto, pensa-o como matéria de direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao facto.” [A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito, in DIGESTA, VOLUME I, Coimbra Editora, página 522.]

Ora, decorre dos artigos 23.º e 24.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, que estabelece o regime jurídico a que fica sujeita a atividade de mediação imobiliária, a definição dos “colaboradores de empresas de mediação imobiliária”.

Assim, nos termos do artigo 23.º, “são designados por técnicos de mediação imobiliária os colaboradores das empresas de mediação imobiliária que desempenham, em nome destas, as funções de mediação imobiliária referidas nos n.ºs 1, 2 e 4 do artigo 2.º”. Na definição do artigo 24.º, “são designados por angariadores imobiliários os colaboradores das empresas de mediação imobiliária que coadjuvam os técnicos referidos no artigo anterior, executando tarefas necessárias à preparação e ao cumprimento dos contratos de mediação imobiliária celebrados pela mesma”.

Por seu turno aqueles números do artigo 2.º, que densifica as definições, dizem-nos que:

“1 - A atividade de mediação imobiliária consiste na procura, por parte das empresas, em nome dos seus clientes, de destinatários para a realização de negócios que visem a constituição ou aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, bem como a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão de posições em contratos que tenham por objeto bens imóveis.
2 - A atividade de mediação imobiliária consubstancia-se também no desenvolvimento das seguintes ações:
a) Prospeção e recolha de informações que visem encontrar os bens imóveis pretendidos pelos clientes;
b) Promoção dos bens imóveis sobre os quais os clientes pretendam realizar negócios jurídicos, designadamente através da sua divulgação ou publicitação, ou da realização de leilões. (…)
4 - As empresas de mediação imobiliária podem ainda prestar serviços que não estejam legalmente atribuídos em exclusivo a outras profissões, de obtenção de documentação e de informação necessários à concretização dos negócios objeto dos contratos de mediação imobiliária que celebrem”.

Como é bom de ver, a atividade levada a cabo pela autora na situação em litígio, integra-se de pleno no desenvolvimento das atividades constantes dos n.ºs 1, 2 e 4, do artigo 2.º, e mostra-se já provada nos factos 12 a 18. Inversamente, relativamente a este contrato, não se mostra provada qualquer atividade desenvolvida pela D.ª BB, salvo a conclusão de que foi ela quem angariou o imóvel. Tratando-se, porém, de um conceito jurídico, não tem respaldo nos factos e é mesmo infirmado pela prova documental.

Com efeito, do artigo 16.º, n.º 1, do mesmo diploma, que rege sobre o contrato de mediação imobiliária, resulta que este documento é obrigatoriamente reduzido a escrito, acrescentando o n.º 2, que do mesmo constam obrigatoriamente os seguintes elementos: (…) e) “A identificação do angariador imobiliário que, eventualmente, tenha colaborado na preparação do contrato”.

In casu, como dito, neste contrato do imóvel da Lagoa apenas consta o nome da autora, identificada como “a mediadora”, não constando ali identificada como angariadora BB.

Assim, atenta a prova produzida e vistos os factos à luz das normas referidas não estando identificada BB como angariadora no contrato de mediação, não pode concluir-se que tenha tido tal qualidade na economia do contrato de mediação em causa, já que tal menção constitui obrigatoriamente elemento do contrato.

Consequentemente, impõe-se a modificação do ponto 13. da matéria de facto provada, eliminando-se a referência à angariação do imóvel por BB, e ficando com o seguinte teor:

«13. A Autora acompanhou o processo respeitante a esse imóvel desde o início até à assinatura do respetivo contrato de compra e venda, embora o mesmo lhe tenha sido referenciado por BB»."


*3. [Comentário] O principal interesse do acórdão reside em mostrar, com bastante clareza, que nada impede que nos temas da prova se utilizem conceitos de direito. O que, em matéria probatória, é essencial é que, como o acórdão também demonstra, os factos provados sejam subsumíveis a esse conceito.

MTS


25/01/2024

Bibliografia (1105)


-- Stein, A., Probabilism in Legal Interpretation, in Law in Times of Crisis: Festschrift for Yoram Danziger (Berlin 2024), 163-185 [OA]


Jurisprudência 2023 (94)


Processo de execução; procedimento de injunção;
aposição de fórmula executória; falta de legitimidade


1. O sumário de RE 20/4/2023 (1442/21.3T8ENT-B.E1) é o seguinte:

I – Estando em causa o cumprimento de uma obrigação pecuniária pelo fiador de uma transação comercial celebrada entre empresas, com valor não superior a 15.000,00€, não se verifica a utilização indevida do procedimento de injunção.

II – A mera afirmação da qualidade de executado de um determinado sujeito não basta para afirmar a legitimidade passiva em processo executivo, sendo necessário que a sua qualidade de devedor se surpreenda do exame do próprio título.

III – Não resultando do título executivo a qualidade de devedor do requerido, a aposição neste da fórmula executiva restringe-se à sociedade requerida, sendo o executado fiador parte ilegítima na execução.

IV – Existindo divergência entre a execução instaurada contra o executado e o que consta no título executivo, em cujo segmento certificativo da obrigação o mesmo não figura, uma vez que o pedido no processo de injunção não foi deduzido contra esse executado, nessa parte, a execução não encontra apoio no título, pelo que, a exequente não dispõe de título executivo contra o executado fiador.

V – A falta de título executivo contra este executado não é suprível, é manifesta, e seria motivo de indeferimento liminar parcial do requerimento executivo, nos termos previstos no artigo 726.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, do CPC.

VI – Consequentemente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, o juiz podia conhecer oficiosamente do vício, e determinar a extinção parcial da execução, ao abrigo do disposto no artigo 734.º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Defende a apelante, em apertada síntese, que não tendo havido oposição por parte dos executados, nem à injunção, nem à presente execução, nem à penhora nos autos realizada, o tribunal a quo não podia ter conhecido oficiosamente de uma suposta falta de título executivo, determinada pela ilegitimidade processual passiva do requerido no processo de injunção.

Vejamos.

Nos termos do disposto no artigo 734.º do CPC, “O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento.”

Por seu turno, decorre do preceituado no artigo 726.º, n.º 2, do CPC, na parte que importa considerar no caso em presença, que o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando: a) seja manifesta a falta ou insuficiência do título; acrescentando o n.º 3 que é admitido o indeferimento liminar parcial, designadamente quanto à parte do pedido que exceda os limites constantes do título executivo ou aos sujeitos que careçam de legitimidade para figurar como exequentes ou executados. [...]

In casu, o despacho recorrido foi tempestivamente proferido, uma vez que o imóvel penhorado nos autos não foi transmitido, nem o montante do depósito bancário foi entregue à exequente.

Interpretou a Apelante o despacho recorrido, no sentido de que a consideração pelo tribunal a quo de que a exequente não dispunha de título executivo válido contra o executado pessoa singular, foi determinada pela ilegitimidade processual passiva do requerido no processo de injunção.

Não cremos ter sido esse o concreto (ou, pelo menos, o único) fundamento que esteve na mente do julgador.

Com efeito, atento o teor do despacho recorrido, julgamos que a decisão recorrida teve em vista a falta de título executivo por indevida utilização do procedimento de injunção e consequente invalidade do título executivo contra o referido executado.

Apreciando o requerimento de injunção que constitui o título executivo, entendeu o julgador que a ali requerente, ora Apelante, “no que concerne ao executado AA, alegou tão-somente que o mesmo, «intitulando-se representante da Requerida, sempre reconheceu o montante em dívida e garantiu à Requerente que o pagaria com o seu património pessoal, caso a 1ª Requerida assim não o fizesse». É assim por demais evidente estar ausente do requerimento de injunção em apreço qualquer contrato celebrado com o identificado executado pessoa singular que se inscreva na susodita noção de transacção comercial. O mesmo é dizer que a aqui exequente utilizou indevidamente o procedimento de injunção contra o executado pessoa singular, pois não lhe exigiu o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de qualquer transacção comercial celebrada com o mesmo.

Como assim, a exequente não está munida de título executivo válido contra o executado pessoa singular, o que, nessa parte, determina a extinção da execução nos termos das disposições conjugadas dos artigos 551.º, n.º 3, 726.º, n.º 2, alínea a), e 734.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil”.

Apreciando.

De acordo com a noção vertida no artigo 7.º do DL n.º 269/98, de 1 de setembro, na redação atualmente vigente [---], considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro.

Assim, o artigo 2.º define o seu âmbito de aplicação, pela positiva, no seu n.º 1, onde estabelece que “o presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais”, e pela negativa, prevendo o respetivo n.º 2 que “são excluídos do âmbito de aplicação do presente diploma: a) Os contratos celebrados com consumidores; b) Os juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais; c) Os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros”.

Não estando a situação em presença excluída do âmbito de aplicação da providência de injunção, por via da sua integração em qualquer um dos casos previstos nas diversas alíneas do referido n.º 2, mas relembrando o julgador que o aqui exequente indicou expressamente estar em causa obrigação emergente de transação comercial, atenta a menção ao DL 62/2013, de 10.05, concluiu que, não estando em causa na injunção em apreço qualquer contrato celebrado com o executado pessoa singular que se inscreva na noção de transação comercial ínsita no artigo 3.º, alínea b) deste mencionado diploma, a aqui exequente utilizou indevidamente o procedimento de injunção contra o executado.

Sendo certo que o montante peticionado nos autos tem como fundamento o incumprimento do pagamento do valor devido pela prestação de serviços decorrente do contrato celebrado no dia 12.06.2019, entre a 1.ª Requerida e a Requerente, tendo por objeto a mediação imobiliária de um prédio urbano, acordo que se integra de pleno no que deve entender-se por transação comercial à luz do referido artigo 3.º, alínea b), configurando uma transação entre empresas destinada à prestação de serviços contra remuneração, é também evidente que, tendo o requerido, pessoa singular, outorgado esse acordo em representação da sociedade comercial também requerida, o mesmo não é pessoalmente parte nesse contrato.

Acontece que, se bem virmos o teor do requerimento de injunção, não foi nessa qualidade de outorgante do contrato de mediação em representação da sociedade requerida que o mesmo foi demandado na qualidade de requerido – que obviamente não podia ser –, mas sim, porque “garantiu à Requerente que pagaria com o seu património pessoal, caso a 1ª Requerida assim não o fizesse”.

Portanto, é nesta qualidade de garante de uma dívida proveniente de transação comercial que temos de apreciar se o procedimento de injunção podia ou não ser usado contra o fiador garante.

In casu, a resposta não pode deixar de ser positiva.

Com efeito, a singela alegação da requerente do procedimento de injunção relativamente ao requerido, é juridicamente enquadrável num contrato de fiança, garantia especial e pessoal das obrigações, cuja finalidade é precisamente a de assegurar o cumprimento pelo terceiro garante, da obrigação assumida pelo devedor principal perante o credor, se este a não satisfizer, ou seja, “o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor” (artigo 627.º, n.º 1, do CC).

E, porque a obrigação do devedor e a do fiador são autónomas, mas têm o mesmo objeto, isto é, o mesmo conteúdo, na medida em que o fiador se obriga a cumprir a obrigação do devedor na sua plenitude, como resulta do artigo 634.º do CC, considerou-se até no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.06.2021 [Proferido no processo n.º 11952/19.9YIPRT.G1, disponível em www.dgsi.pt, como os demais citados sem menção de outra fonte.], que “sendo os créditos em discussão de natureza comercial e oriundos das relações comerciais entre a autora e 1ª ré, e garantidos pelas fiadoras, 2ª, 3ª e 4ª rés, na sua plenitude, que asseguram o seu cumprimento, é de aplicar o processo previsto no DL. 62/2013 de 10/05, mais concretamente tendo em conta o disposto no artigo 2º n.º 1 e artigo 3º al. a) e b)”.

Porém, ainda que assim não se entenda – designadamente em face do teor literal dos preceitos e por se tratar de transposição da diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que introduziu medidas adicionais para dissuadir os atrasos de pagamentos nas transações comerciais –, a verdade é que, na situação em presença, o valor alegadamente “afiançado” pelo requerido é inferior a 15.000,00€.

Consequentemente, atenta a formulação alternativa do acima mencionado artigo 7.º, considerando-se ainda “injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular”, ou seja, de obrigações pecuniárias de valor não superior a 15.000,00€, temos de concluir que estando em causa o cumprimento de uma obrigação pecuniária pelo fiador, não se verifica a declarada utilização indevida do procedimento de injunção [---].

Não obstante, tal não significa que na concreta situação em apreciação a apelação deva proceder.

Com efeito, pese embora por fundamentos diversos dos convocados pelo julgador, está certa a decisão recorrida quando refere que “a exequente não está munida de título executivo válido contra o executado pessoa singular”.

E a apelante tocou a razão (rectius, uma das razões) pela qual assim devemos concluir, quando se referiu à questão da legitimidade do executado.

Vejamos.

Conforme decorre do artigo 10.º, n.ºs 1, 4 e 5, do CPC, dizem-se «ações executivas» aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida, tendo na sua base a existência de um título executivo pelo qual se determinam o seu fim e os respetivos limites subjetivos e objetivos (artigo 10.º, n.ºs 1, 4 e 5, do CPC), concretizando o artigo 53.º, n.º 1, do CPC – que rege sobre a legitimidade de exequente e executado –, que a execução tem que ser promovida pela pessoa que figure no título como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor, ou por quem suceda na posição ativa e passiva, nos termos prevenidos no artigo 54.º do CPC, que no caso não releva considerar.

Como refere LEBRE DE FREITAS [In A AÇÃO EXECUTIVA À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013, 7.ª edição, GESTLEGAL, Coimbra, 2017, pág. 143.] “a legitimidade das partes determina-se, na ação executiva, com muito maior simplicidade do que na ação declarativa.

Enquanto nesta há que indagar da posição das partes em face da pretensão, o que implica averiguar a titularidade, real ou meramente afirmada pelo autor, da relação ou outra situação jurídica material em que ela se funda, e dá por vezes lugar a dificuldades de distinção perante a questão de mérito, na ação executiva a indagação a fazer resolve-se no confronto entre as partes e o título executivo: têm legitimidade como exequente e executado, quem no título figura, respetivamente, como credor e como devedor (art. 53)”. [...]

Portanto, a primeira tarefa cometida ao julgador para determinar a legitimidade do executado na ação executiva é a análise do título dado à execução, com vista a determinar o seu âmbito e alcance subjetivo e objetivo.

Com efeito, o título executivo é “a peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva ou, dito de outra forma, pressuposto ou condição geral de qualquer execução. Nulla executio sine titulo” [---]Por isso, o mesmo tem que ser documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia para servir de base ao processo executivo [---]. [...]

In casu, o título executivo é a Injunção n.º 26813/21.1YIPRT, na qual foram identificados como Requerente, a ora Apelante, e como Requeridos, a sociedade comercial Ternuras Urbanas, S.A. e AA, que igualmente constam identificados, respetivamente, como Exequente e Executados, na ação executiva.

Porém, se bem atentarmos na exigência legal, a legitimidade da parte passiva na ação executiva não se basta com a identificação de uma pessoa pelo exequente, na qualidade de executado.

Com efeito, decorre expressamente do disposto nos artigos 10.º, n.º 5, e 53.º, n.º 1, do CPC, que é pelo título que se determinam os limites subjetivos da ação executiva, devendo a execução ser instaurada contra a pessoa que naquele tenha a posição de devedor.

Destarte, cabe primeiramente verificar se o executado pessoa singular figura no título executivo na posição de devedor, qualidade que não se lhe atribui pelo simples facto de ali haver menção ao seu nome (já vimos que o nome do executado, pessoa singular, consta na injunção na qualidade de requerido). Efetivamente, para que possa dizer-se que o executado é parte legítima na execução, neste momento de análise liminar e meramente formal do título, importa que do seu exame decorra que a execução foi instaurada contra a pessoa que no título tem a posição de devedor, porque no caso contrário, ou seja, se do título não resultar a sua qualidade de devedor, então teremos de concluir que o executado é parte ilegítima. [...]

Assim, a mera afirmação da qualidade de executado de um determinado sujeito não basta para afirmar a legitimidade passiva em processo executivo, sendo necessário que a sua qualidade de devedor se surpreenda do exame do próprio título.

O cerne da apreciação do título neste momento liminar, basta-se, pois, com a confirmação pelo julgador de que no título a parte passiva tem a posição de devedor, o que, porém, não se confunde com a indagação de que o sujeito passivo é realmente devedor da exequente.

Com efeito, louvando-nos no afirmado no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 10.07.2008 [Proferido no processo n.º 08A1057.], “ao interrogarmo-nos sobre se a recorrida tem ou não legitimidade passiva para a execução que lhe foi movida pela recorrente, temos, necessariamente, que averiguar se a mesma consta nos títulos como devedora da exequente, aqui recorrente. Só vendo se lá consta como tal é que poderemos afirmar a sua legitimidade; caso contrário, outra conclusão não pode ser tirada que não seja a da sua ilegitimidade. É, pois, este particular ponto que nos interessa e já não saber se ela é, efectivamente, devedora da exequente”. [...]

Revertendo este enquadramento à concreta situação em apreço, verificamos que, apesar de ter sido identificado como Requerido no requerimento de injunção apresentado pela ora exequente, e de neste ter sido mencionado que “o 2º Requerido, intitulando-se representante da Requerida, sempre reconheceu o montante em dívida e garantiu à Requerente que o pagaria com o seu património pessoal, caso a 1ª Requerida assim não o fizesse”, a verdade é que não foi formulado qualquer pedido contra o mesmo, como cristalinamente decorre do segmento final, onde expressamente se refere que “deverá a Requerida ser condenada a pagar à Requerente a quantia total 7.112,46 €” (…).

Portanto, a fórmula executória aposta neste requerimento de injunção limita-se ao pedido formulado contra a empresa requerida, a real devedora, e não contra o requerido, seu administrador.

Aliás, mal se compreende que o mesmo tenha sido identificado como executado, já que também o próprio requerimento executivo foi desenhado apenas por referência à sociedade comercial executada, sem qualquer menção à existência do devedor subsidiário (supomos, já que nada concretamente se alegou na injunção também a este respeito), relativamente ao qual não foram sequer alegados “os factos de aquisição de um direito ou poder a uma prestação exigível”. Efetivamente, como sintetiza RUI PINTO [---], “a lei exige que o credor demonstre por meio do título a existência da obrigação (reconhecida ou constituída pelo título), nos termos do artigo 703.º, e que a obrigação é exigível, conforme o artigo 713.º, mesmo que o não seja em face do título”.

Na espécie, como a Apelante bem sabe – tanto assim que o afirma na explanação dos fundamentos de facto em que suporta o pedido formulado –, a pessoa singular indicada como requerido, celebrou a transação comercial fundadora da obrigação como “representante da Requerida”. Como assim, o requerido não é devedor principal, pois os atos daquele repercutem-se na esfera jurídica desta, em face da personalidade jurídica que lhe é conferida pelo disposto no artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais, sendo que os titulares das participações sociais, não são responsáveis pelo pagamento das dívidas contraídas pela sociedade comercial, já que, como decorre do preceituado no artigo 601.º do Código Civil [---], pelo cumprimento da obrigação respondem os bens do devedor.

Ademais, a qualidade de devedor do executado, pessoa singular, também não encontra arrimo na mera alegação de que o administrador da sociedade devedora “garantiu à requerente que pagaria com o seu património pessoal”. É certo que os sócios e administradores das sociedades comerciais podem prestar garantias pessoais ou reais, tornando-se solidariamente responsáveis pelo cumprimento das obrigações sociais. Porém, tanto umas como outras obedecem a requisitos de forma. No caso, como acima referimos, a requerente sustentou a demanda contra o requerido na alegação de um acordo entre ela credora e o terceiro garante da satisfação do seu direito de crédito contra a empresa. Acontece que, em face do disposto no artigo 628.º, n.º 1, do CC, a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal, e, no caso, o contrato de mediação imobiliária é obrigatoriamente reduzido a escrito, conforme previsto no artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, o que nem sequer foi alegado. É certo que in casu, o título dado à execução não foi o contrato de fiança, mas a apresentação da injunção a que foi aposta a fórmula executória.

Porém, do exame do título resulta, final e decisivamente, que no requerimento de injunção a requerente/exequente não formulou qualquer pedido contra este requerido/executado.

Ora, de acordo com o previsto no artigo 10.º, n.º 3, do citado DL 269/98, durante o procedimento de injunção não é permitida a alteração dos elementos constantes do requerimento, designadamente do pedido formulado, pelo que, nem sequer pode haver lugar a qualquer aperfeiçoamento.

Destarte, mesmo na perspetiva de análise da Apelante, não resulta do título executivo a qualidade de devedor do requerido, nem sequer como devedor subsidiário em decorrência da garantia pessoal da obrigação da sociedade devedora, pela simples, mas decisiva razão, de não haver sido formulado contra si qualquer pedido.

Consequentemente, restringindo-se a aposição da fórmula executiva no processo de injunção à requerida, então teremos necessariamente de concluir que o executado AA é parte ilegítima na execução.

Não obstante, defende a Apelante ter título executivo contra o executado pessoa singular, pelo facto de não ter sido por este deduzida oposição, nem à injunção nem ao processo executivo.

Porém, em face do que dispõe o referido artigo 10.º, n.º 5, do CPC, no caso em presença, a exequente também não tem razão quando pretende ter título válido contra o executado, por este motivo.

Com efeito, se bem virmos, a situação de ilegitimidade em presença entrecruza-se com a constatação de que a execução instaurada contra a pessoa singular, não é conforme ao título executivo formado no processo de injunção, porque não há correspondência entre a pretensão deduzida contra o executado e o documento certificativo da existência e extensão, subjetiva e objetiva, da obrigação exequenda.

Efetivamente, decorre da análise atenta do seu conteúdo que o título executivo foi formado apenas contra a requerida, porque o pedido de condenação [---] formulado no processo de injunção só a esta foi dirigido: “deverá a Requerida ser condenada a pagar à Requerente a quantia de 7.112,46”. Aliás, que a ora Apelante bem sabe que quem tem a qualidade de devedora é apenas a sociedade comercial e não a pessoa singular, decorre do próprio teor do requerimento executivo acima transcrito. Basta a sua leitura para se verificar que, apesar de ter instaurado a presente execução também contra o requerido no processo de injunção, este só é mencionado no lugar destinado à identificação do executado, sendo os fundamentos do requerimento e o pedido exclusivamente articulados contra a executada: “Deve, assim, a Executada à Exequente a quantia de 7.112,46€”.

Ora, como ensina ALBERTO DOS REIS [In COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, vol. 1.º, 2.ª edição, COIMBRA EDITORA, 1960, pág. 63.] “É pelo título que se determinam os limites da ação executiva, isto é, a extensão e o conteúdo da obrigação do devedor e consequentemente até onde pode ir a ação do credor.

Podem dar-se várias hipóteses:

1.ª promoveu-se uma execução sem título;

2.ª Promoveu-se uma execução com base num título que não tem força executiva;

3.ª Promoveu-se uma execução que está em desconformidade com o título, ou no tocante ao fim ou no tocante aos limites (…)

O terceiro caso assemelha-se ao primeiro. Desde que a execução não é conforme ao título, na parte em que existe a divergência tudo se passa como se não houvesse título: nessa parte a execução não encontra apoio no título”.

Em retas contas, é o que acontece no caso dos autos. Existindo divergência entre a execução instaurada contra o executado e o que consta no título executivo em cujo segmento certificativo da obrigação o mesmo não figura, uma vez que – repete-se –, o pedido não foi dirigido no processo de injunção contra o ora executado, nessa parte a execução não encontra apoio no título, o mesmo é dizer que a exequente não dispõe de título contra o executado, pessoa singular.

A falta de título executivo contra este executado não é suprível, é manifesta, e seria motivo de indeferimento liminar parcial do requerimento executivo, nos termos previstos no artigo 726.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, do CPC.

Consequentemente, o juiz podia conhecer oficiosamente do vício, e determinar a extinção parcial da execução, ao abrigo do disposto no artigo 734.º do CPC, não merecendo censura o segmento decisório da sentença recorrida na parte em que considerou que “a exequente não está munida de título executivo válido contra o executado pessoa singular, o que, nessa parte, determina a extinção da execução nos termos das disposições conjugadas dos artigos 551.º, n.º 3, 726.º, n.º 2 alínea a), e 734.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.”"

[MTS]