"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/02/2024

Jurisprudência 2023 (120)


Providência cautelar;
fumus boni iuris; periculum in mora*


1. O sumário de RE 25/5/2023 (496/22.0T8CTX.E1é o seguinte

Se a requerente da providência cautelar alega que é titular do direito de propriedade plena, mas apenas integra a sua esfera jurídica patrimonial a compropriedade, não se mostra preenchido um dos requisitos para o decretamento da providência, a aparência da existência do direito alegado na sua titularidade.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A recorrente alega que o tribunal a quo se fundamentou numa mera declaração da junta de Freguesia que não consta dos autos; que prescindiu da audição de testemunhas; que fixou como única matéria a decidir a união de facto da recorrida e o consequente direito de residir na casa de morada de família; não se debruçando acerca da nulidade do registo do direito real de habitação promovido pela recorrida; que o prejuízo da recorrente é igual ao dano da recorrida.

Por seu lado, o tribunal a quo considerou que, não obstante a recorrente ter em seu benefício a presunção da propriedade conferida pelo artº 7º do Registo Predial, da matéria de facto provada resultou que a recorrida viveu em união de facto com o falecido e comproprietário da casa de morada de família, duramente mais de 10 anos.

O que implica ter a recorrida integrado na sua esfera jurídica um direito real de habitação do imóvel, de uso do recheio e de preferência na venda da casa, ao abrigo do que dispõe o artº 3º/ a), 5º/1 e 9º da Lei 7/2001, de 11-05.

Daqui decorre a constituição de um legado ope legis, a favor da recorrida, no momento do falecimento do unido de facto, sendo, nesta medida, sucessora do de cujus (artº 2030º/1 do CC).

Conclui ainda a sentença em crise, que o direito real de habitação da recorrida é oponível ao direito de propriedade da recorrente, pelo que não se verifica um dos requisitos de que depende a decretação da providência – a probabilidade séria da existência do direito na esfera jurídica da recorrente –, ou seja, o seu direito de propriedade encontra-se onerado com um direito de habitação anteriormente registado.

Quid iuris?

Quanto à prova da união de facto, a recorrida, em .../.../2022, juntou aos autos um atestado emitido pela Junta de Freguesia ... e Vale da Pinta, datado de 12-06-2020, onde se atesta a união de facto da recorrente desde .../.../2009 até à data do falecimento do unido de facto, .../.../2020.

Em 28-11-2022, a recorrente pronunciou-se sobre os documentos juntos pela recorrida, pelo que se não entende a afirmação de que tal declaração não foi junta aos autos.

Por outro lado, a lei 7/2002, permite a prova da união de facto “por qualquer meio legalmente admissível.”, sendo que o documento em causa constituiu também prova suficiente para que a Segurança Social concedesse os benéficos atinentes à recorrida.

Para além disso, a matéria de facto fixada pela primeira instância não se mostra impugnada, como o obriga o disposto no artº 640º do CPC, pelo que não mais poderá ser impugnada em recuso ordinário.

Quanto à decisão proferida, adianta-se, desde já, que não nos merece qualquer censura.

Com efeito, mostrando-se provada a união de facto entre o falecido e a recorrida, a questão a decidir era a de saber se na esfera jurídica da recorrente existia uma aparência do direito que invocou para que a providência tivesse sucesso.

Ora, como bem decidiu o tribunal a quo, a Lei das Uniões de Facto (LUF) acima referida, confere ao unido de facto a proteção da casa de morada de família (artº 3º/a)) e, em caso de morte do membro da união, proprietário da casa de morada e família e respetivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de 5 anos, como titular de um direito real de habitação periódica e de um direito de uso do recheio (artº 5º/1).

No caso dos autos, apesar de o registo não ser constitutivo de direitos, o unido de facto sobrevivo registou o seu direito real de habitação e recheio, em momento anterior ao registo da propriedade plena efetuado pela recorrente.

Contudo, a recorrente tinha na sua esfera jurídica patrimonial a compropriedade da casa de morada de família, porque foi casada com o unido de facto falecido, mas nunca foram partilhados os bens após o divórcio.

Assim sendo, no momento do óbito apenas foi legado à recorrida o direito de usar a compropriedade do imóvel que existia na esfera jurídica do falecido.

A questão que se coloca agora é a de saber se, para além da propriedade plena e a compropriedade entre os unidos de facto, a compropriedade apenas do falecido unido de facto também confere, ao unido sobrevivo, a proteção da casa de morada de família nos termos em que dispõe o artº 3º/a) e 5º/1 da LUF.

A resposta só pode ser afirmativa.

A compropriedade é uma das formas que pode revestir o direito de propriedade, havendo uma pluralidade de titulares do direito sobre a mesma coisa.

Os comproprietários são titulares de uma quota, não sabendo em que parte da coisa se situa a sua quota parte.

Por isso, se não houver o acordo quanto ao uso da coisa ela pode ser usada por qualquer dos comproprietários, desde que não faça dela um uso diferente daquele a que a cosia se destina e não prive os outros comproprietários de igualmente a usarem (artº 1406º do CC).

Se, mesmo assim, o desacordo se mantiver, o comproprietário que não usa a coisa pode pedir a sua divisão, judicial ou extrajudicialmente, demonstrando os autos que tal não ocorreu, quer o uso partilhado da coisa, quer o pedido de divisão (artº 925º do CPC) desde o divórcio até ao falecimento.

Ora, a recorrente alega que é titular da propriedade plena da casa de morada de família.

Contudo, esta propriedade plena só foi constituída após o decesso do unido de facto, seu ex comproprietário da casa, o que significa que, após o falecimento, dois direitos reais se confrontaram, protegidos com a mesma força jurídica porque beneficiam ambos de uma das características essencial dos direitos reais – a tipicidade.

O direito de compropriedade da recorrente e o direito real de habitação da recorrida, que nasceu no momento do decesso.

Assim sendo, atendendo a que nos interessa aqui, apenas, saber se a recorrente possuía a aparência do direito que se arroga – o direito de propriedade plena, no momento em que ocorreu o dito confronto de direitos – e tendo-se demonstrado que não o possuía, a conclusão a que chegamos é a de que não beneficia do fumus boni iuris legalmente exigido para a decretação da providência (artº 362º do CPC)."

*3. [Comentário] a) O acórdão merece duas breves observações.

b) O acórdão não é muito claro, mas parece assentar no pressuposto de que um comproprietário não pode obter uma providência cautelar contra um terceiro. Atendendo ao disposto no art. 1405.º, n.º 2, CC, isso parece ser muito discutível, dado que, se um comproprietário pode reinvindicar a coisa de um terceiro, também há-de poder obter uma providência cautelar contra um terceiro. Acresce que o art. 397.º, n.º 1, CPC, em matéria de embargo de obra nova, aceita que um comproprietário possa requerer esta providência cautelar. Porque terá de ser diferente quanto a uma providência comum?

Além disso, parece que se deveria ter dado relevância a que, sendo o unido de facto falecido apenas comproprietário da fracção do imóvel, o direito real de habitação da unida de facto sobrevivente não pode valer como se aquele unido fosse proprietário pleno da coisa. Aliás, o art. 5.º, n.º 1, L 7/2001, de 11/5, dispõe o seguinte:

"Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio."

Não querendo discutir se o direito real de habitação também se constitui no caso de o unido falecido ser apenas comproprietário da casa de mora de família, parece que a compropriedade há-de ter algum reflexo no direito real de habitação de quem conviveu em união de facto apenas com um dos comproprietários. Seria estranho que esse direito se constituísse ignorando a compropriedade da casa de morada da família e exactamente do mesmo modo tal como se o unido falecido fosse proprietário dessa casa.

c) Nas suas alegações a Recorrente afirma o seguinte:

"n) Até à anulação do registo a Requerente tem o prejuízo de não poder retirar uma renda decorrente do arrendamento do imóvel.

o) Pelo que, justifica-se assim o decretamento da providência cautelar requerida, devendo a Requerida ficar obrigada a pagar uma renda nunca inferior a 500,00€ pela ocupação ilícita do imóvel e até que seja restituída a posse do mesmo à Requerente."

Supõe-se que a Recorrente lavra num equívoco quanto à função das providências cautelares. Como decorre do disposto no art. 2.º, n.º 2, CPC, as providências cautelares destinam-se a "acautelar o efeito útil da acção" principal. É por essa razão que as providências cautelares exigem um periculum in mora, que decorre do receio de um direito sofrer uma lesão grave e dificilmente reparável se a sua tutela tiver de aguardar pela acção principal (art. 362.º, n.º 1, CPC). O periculum in mora é textualmente -- e nao é outra coisa -- o perigo que o direito corre se tiver se de esperar pela acção principal para o tutelar. A providência cautelar fornece uma tutela provisória para que a tutela definitiva não se torne inútil.

Ora, como se compreende facilmente, o alegado pela Recorrente não demonstra esse periculum in mora, dado que não alega qualquer facto do qual se conclua que o seu (eventual) direito a receber uma renda mensal não pode aguardar pela apreciação da questão numa acção.

É por esta razão, indepentemente de tudo o mais, que a providência cautelar nunca poderia vir a ser decretada.

MTS

28/02/2024

Paper (506)


-- Shurson, Jessica, The Balance of Efficiency and Fundamental Rights in the EU e-Evidence Regulation (SSRN 09.2023)


Jurisprudência 2023 (119)


Decisão-surpresa;
título executivo; sucessão na obrigação


1. O sumário de RE 25/5/2023 (3547/17.6T8LLE-C.E1) é o seguinte:

I. O tribunal emite uma decisão-surpresa quando conhece oficiosamente de questões adjetivas ou substantivas, não suscitadas pelas partes, sem que as mesmas tenham tido a oportunidade de previamente exercer o princípio do contraditório, ou quando conhece de questões suscitadas pelas partes, mas fá-lo de forma absolutamente inopinada e apartado da factualidade provada e do pertinente enquadramento jurídico, adotando uma solução jurídica que as partes não quiseram submeter à sua apreciação, apresentando-se o decidido como imprevisível em face dos contornos da lide.

II. A exequibilidade da prestação cuja realização coativa é pedida em sede executiva, depende de dois requisitos: a) o dever de prestar deve constar de um título – o título executivo (artigos 10.º e 703.º do CPC) –, o que corresponde a um requisito específico de ordem formal e que condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva; b) a prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida (cfr. artigo 713.º do CPC), o que corresponde a pressupostos específicos de caráter material, que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coativa da prestação.

III. O artigo 54.º, n.º 1, do CPC estabelece um desvio à regra do artigo 53.º, n.º 1, do CPC, conferindo legitimidade para ser demandado como executado, o adquirente que, por compra e venda, sucedeu na obrigação da pessoa que figura no título executivo como devedor, devendo o exequente no próprio requerimento executivo deduzir os factos constitutivos da sucessão.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O Apelante vem alegar que se verifica violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, por ter sido emitida uma decisão-surpresa, sem ter sido ouvido, previamente à prolação da sentença recorrida no que diz respeito à condenação do recorrente a demolir a sua moradia geminada construída no referido Lote 4, onde reside com o seu agregado familiar, sem ordenar uma perícia com vista a determinar a exata localização do prédio da ora Recorrida.

Vejamos.

Estipula o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»

Sendo que a proibição da decisão-surpresa prende-se com o conhecimento de questões de direito adjetivo ou substantivo, não suscitadas pelas partes, mas que são de conhecimento oficioso, pois as suscitadas pelas partes devem ser objeto de apreciação, sob pena de nulidade da decisão por omissão de pronúncia.

Admitindo-se, contudo, mesmo em relação a questões suscitadas pelas partes que possa haver uma decisão-surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado da factualidade provada e do pertinente enquadramento jurídico, adote uma solução jurídica que as partes não quiseram submeter a apreciação, apresentando-se o decidido como imprevisível em face dos contornos da lide. [Neste sentido, entre outros, veja-se Ac. STJ de 13-07-2022, proc. n.º 14281/21.2T8LSB.P1-A.S1, em www.dgsi.pt]

Na situação em apreciação, a execução foi instaurada com base num título executivo de natureza judicial tendo a Exequente alegado que «(…) pretende mandar fazer, sob a sua orientação e vigilância, as obras e trabalhos necessários ao cumprimento da douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Évora», sendo que as mesmas constam da parte dispositiva do dito Acórdão do seguinte modo: «(…) suspender de imediato a obra e a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição».

O ora Apelante ao deduzir embargos de executado suscitou a questão da falta e inexequibilidade do título executivo alegando que a pretensão da Exequente/Embargada em relação ao Executado/Embargante não tem suporte no título executivo, bem como a questão da sua ilegitimidade para ser executado, precisamente pelas mesmas razões, alegando, ademais, que o seu imóvel construído no Lote 4 «não consta» da sentença exequenda e dela não resulta qualquer obrigação para o Embargante relacionada com aquele imóvel.

A sentença recorrida pronunciou-se sobre as questões supra referidas que enunciou expressamente como questões a resolver, decidindo a certo passo, em relação à alegada falta e inexequibilidade do título executivo:

«(…) a exequente dispõe de título executivo válido (acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação de Évora) e esse título executivo é perfeitamente exequível, bastando os executados procederem à reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente, nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição.»

E em relação à questão da ilegitimidade do Executado/Embargante, decidiu também em sentido positivo louvando-se no disposto no artigo 54.º, n.º 1, do CPC, e no decidido, quer Acórdão proferido no procedimento cautelar, quer na decisão final proferida no processo que se seguiu interposto pelos Requeridos com vista à inversão do contencioso (que foi julgada totalmente improcedente), lendo-se na fundamentação na sentença recorrida, reportando-se ao Acórdão desta Relação proferido na providência cautelar de embargo de obra nova tramitado sob o n.º 789/16.5T8FAR.E1, o seguinte:

«(…) a autoridade do caso julgado, ou seja, do decidido no douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, nomeadamente na parte de sujeição a que sejam reconstruídas as paredes e o telhado da edificação existente no prédio da exequente nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição levados a cabo pela “Radical Red Holdings LLC” e CC, estendem-se aos actuais detentores das moradias geminadas edificadas no prédio da exequente, e daí a legitimidade desses detentores para a execução.»

Decorre, pois, do que vem sendo dito que, em face dos fundamentos da oposição apresentada pelo Embargante, conhecidos e decididos na sentença recorrida, que as obrigações emergentes do título executivo, seu alcance e âmbito, foram objeto de discussão e decisão, não se verificando, pois, a prolação de uma decisão-surpresa.

Sendo que não se descortina que houvesse outras questões a conhecer de modo oficioso. Sublinhando-se, ademais, que apesar do ora Apelante alegar que o título executivo não ordena a demolição da sua moradia e que nem sequer decidiu que a mesma se localiza no terreno da Apelada, rigorosamente tal não corresponde ao decidido.

O que se verifica é uma outra situação.

A moradia em causa foi construída no Lote 4, o qual se encontra integrado no terreno objeto do Loteamento ..., de 30-08-2017, que, por sua vez, abrangeu o imóvel da Apelada. Este facto resulta claramente do Acórdão apresentado como título executivo como decorre da conjugação dos factos dados ali como provados nos pontos 1) a 5), 12), 20), segundo parágrafo, 25) a 29) e respetiva fundamentação.

Pelo que desta factualidade há que retirar as devidas consequências.

Compreendendo-se, assim, que na sentença recorrida conste a seguinte passagem:

«(…) para executar o determinado pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora apresentado como título executivo (reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição), é necessário proceder à demolição da moradia adquirida pelo ora embargante AA, donde se conclui que apesar de o mesmo não constar no título executivo, não tendo sido condenado a fazer o que quer que seja, nomeadamente “a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição”, será afectado pela execução do determinado pelo Tribunal Superior (…)».

Concluindo mais à frente:

«(…) a construção das referidas moradias geminadas impede que a exequente utilize o seu prédio, é para reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição será necessário demolir as ditas moradias, o que necessariamente afectará os actuais detentores».

E, finalmente:

«(…) sendo certo que o mesmo não está obrigado a proceder à reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente, obrigação que recai apenas sobre os executados “Radical Red Holdings LLC” e CC e que se os mesmos não o fizerem será efectuado por outrem (cfr. artigo 870º, do Código de Processo Civil), mas o ora Embargante/executado já está obrigado a sujeitar-se a que a moradia da qual é detentor seja demolida para cumprimento do decidido pelo Tribunal Superior (…).» [...]

Atendendo ao supra exposto, é de concluir que não se verifica a alegada violação do princípio do contraditório, nem tampouco a emissão de uma decisão-surpresa."

[MTS]

27/02/2024

Jurisprudência 2023 (118)


Acidente de viação; indemnização;
excepção de caso julgado*


1. O sumário de RG 15/6/2023 (6685/22.0T8BRG.G1) é o seguinte:

I - O lesado não tem legitimidade para pedir, numa ação por si interposta, indemnização pelos danos sofridos (perda de salários) pela mulher para lhe prestar assistência na sequência de acidente de viação.

II - O caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica, destinando-se a evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, venha a contrariar na decisão posterior o sentido de decisão anterior, pretendendo assim obstar a decisões concretamente incompatíveis, que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas.

III - Porque as ações indemnizatórias decorrentes de acidente de viação têm uma causa de pedir complexa integrada pela culpa/risco e pelos danos, inexiste identidade de causa de pedir e de pedido entre duas ações sobre o mesmo acidente em que os prejuízos alegados e peticionados não são coincidentes.

IV - O lesado não se encontra obrigado a peticionar na primeira ação todos os danos decorrentes do acidente de viação de que foi vítima, pois sobre o autor não incide nenhum ónus de concentração de todas as causas de pedir na ação que proponha, e se o não fizer não preclude o direito de o poder fazer em ação posterior.

V - O que não pode é peticionar em ambas as ações, a anterior (transitada em julgado) e a posterior, indemnização pelos mesmos danos, sob pena de se concluir pela repetição da mesma causa e pela verificação da exceção do caso julgado, impeditiva de nova decisão de mérito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A Ré veio [...] invocar a exceção de caso julgado em face da decisão, transitada em julgado, proferida no processo n.º 3513/17.1T8GMR no qual o Autor deduziu pedido indemnizatório com base no mesmo acidente de viação em que baseia a sua pretensão indemnizatória nos presentes autos.

Pelo tribunal a quo foi julgada procedente a exceção de caso julgado material relativamente aos pedidos formulados nas alíneas a) e c) por entender que a presente ação é uma repetição da que correu termos sob o n.º 3513/17.1T8GMR.

É contra este entendimento que se insurge o Recorrente salientando que na decisão recorrida se partiu do pressuposto de que a propositura da ação 3513/17.1T8GMR era impeditiva de o Autor, em nova ação, pedir o que ora pediu, com o que não concorda, invocando a decisão proferida no incidente de revisão de incapacidade, a correr por apenso, aos autos do processo 3513/17.1T8GMR onde foi liminarmente indeferida a sua pretensão por se considerar que só por via de nova ação declarativa poderia o lesado alegar e demonstrar a ocorrência de circunstâncias supervenientes determinantes do agravamento da incapacidade fixada por sentença/ acórdão transitada/o em julgado, proferido em processo declarativo comum.

Sustenta ainda que alegou factos supervenientes e juntou documentos que confirmam o agravamento do dano biológico o que, só por si, é capaz de suportar o argumento de que não pode ocorrer a procedência da exceção do caso julgado.

Mais alega que o dano agravado não tinha sido indemnizado na ação anterior e que o Autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente total para o exercício de qualquer profissão que antes era parcial e só se refletia na sua atividade de motorista, o que refuta o que ficou determinado na decisão anterior e é motivo, mais do que suficiente, para ser apreciada a presente demanda.

Vejamos então se lhe assiste razão, adiantando desde já que a decisão recorrida não é merecedora da censura que lhe é dirigida pelo Recorrente, mostrando-se a questão da exceção de caso julgado aí tratada de forma correta.

Como é consabido, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decide do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º, conforme decorre expressamente do disposto no artigo 619º do CPC.

Por força do efeito de caso julgado material a definição dada à relação controvertida não pode ser alterada em qualquer nova ação; esse efeito é ditado “por razões de certeza ou segurança jurídica e de prestígio dos tribunais; a instabilidade jurídica seria verdadeiramente intolerável se não pudesse sequer confiar-se nos direitos que uma sentença reconheceu” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/02/2019, Processo n.º 4043/10.8TBVLG.P1.S1 Relator Pinto de Almeida, disponível em in www.dgsi.pt).

O caso julgado material visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica, destinando-se a evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, venha a contrariar na decisão posterior o sentido de decisão anterior. [...]

O caso julgado pretende assim obstar a decisões concretamente incompatíveis, que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas.

O n.º 1 do artigo 580º do CPC esclarece ainda que o caso julgado (à semelhança da litispendência, mas esta pressupõe uma ação ainda em curso) pressupõe a repetição de uma causa e a causa repete-se, conforme preceitua o n.º 1 do artigo 581º, quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

A exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado: pela excepção, visa-se o efeito negativo da admissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; já a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2.º Volume, p. 325).

Assim, enquanto a excepção do caso julgado torna necessário que se verifique a tríplice identidade (de sujeitos, de causa de pedir e do pedido), já a autoridade do caso julgado pode efectivamente funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade referida, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.

Os efeitos do caso julgado material desdobram-se, por isso, em duas vertentes: o efeito negativo da inadmissibilidade duma 2ª acção ou a proibição de repetição (excepção do caso julgado) e o efeito positivo de decisão anteriormente proferida como pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito ou a proibição de contradição (autoridade do caso julgado) de forma a que o já decidido não pode ser contraditado ou apontado por alguma das partes em acção posterior.

No caso concreto interessa-nos a exceção do caso julgado, a qual torna necessário que se verifique a tríplice identidade: de sujeitos, de causa de pedir e do pedido. [...]

In casu, o Tribunal a quo julgou verificada, em concreto, a tríplice identidade exigida pela exceção do caso julgado e absolveu a Recorrida da instância quanto aos pedidos formulados em a) e c).

Tais pedidos são os seguintes:

“a) Condenar a Ré no pagamento de uma indemnização por responsabilidade civil pelos danos agravados acrescidos ao Autor/Requerente, conforme artigo 680 fixada no valor de € 285.600,00 euros. (…)
c) Pelos danos não patrimoniais, o valor de € 35.600,00 euros conforme artigo 720, respetivamente”.

Tal como definido pelo próprio Recorrente na petição inicial, em causa na presente ação está, a atualização do montante indemnizatório que lhe foi já atribuído na ação anterior, por força do agravamento dos danos, pretendendo a revisão dos pontos de incapacidade por se verificar o agravamento da sua incapacidade permanente, e a reapreciação atualizada do seu estado de saúde.

Vejamos então.

No caso concreto não se suscitam quaisquer dúvidas sobre a identidade dos sujeitos: Autor e Ré são os mesmos na presente ação e na ação n.º 3513/17.1T8GMR.

Quanto ao pedido julgamos também não se suscitarem dúvidas sobre a sua identidade.

De facto, a identidade de pedidos não implica que o pedido feito na ação posterior corresponda exatamente ao pedido feito na primeira ação, mas que possa considerar-se que o pedido formulado na segunda ação está contido, incluído ou englobado no pedido formulado e decidido na primeira, que numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

Ora, em ambas as ações, e relativamente aos pedidos em causa, o Autor pretende obter o mesmo efeito jurídico: uma indemnização pelos danos futuros decorrentes do défice funcional permanente, que na presente ação alega ter-se agravado, e uma indemnização pelos danos não patrimoniais dai decorrentes.

E quanto à causa de pedir?

A primeira nota a salientar é que nas ações de responsabilidade civil emergente de acidente de viação estamos perante uma causa de pedir complexa ao pressupor a existência de um facto humano voluntário, ilícito e culposo, que seja produtor de um dano e que entre este e aquele ocorra uma relação de causalidade adequada; a causa de pedir é integrada não só pelo acidente e pela culpa (ou pelo risco), mas também pelos prejuízos, alegados e peticionados.

Nestas ações, em que a causa de pedir é complexa, o mesmo acontecimento histórico pode permitir a existência de mais do que uma ação, entre os mesmos sujeitos, sem que ocorra uma situação de litispendência ou de caso julgado, desde que a causa de pedir e o pedido não sejam coincidentes.

Entendemos, por isso, que, integrando os danos a causa de pedir nestas ações, se não houver coincidência entre os prejuízos alegados e peticionados numa e noutra ação, não existirá a referida tríplice identidade, e não se verificará a exceção do caso julgado.

Por outro lado, a propositura de ação anterior não é impeditiva, por si só e em abstrato, do lesado em nova ação, baseada no mesmo acidente de viação, pedir danos que não tinha peticionado na ação anterior.

O lesado não se encontra obrigado a peticionar na primeira ação todos os danos decorrentes do acidente de viação de que foi vítima, e se o não fizer não preclude o direito de o poder fazer em ação posterior; o que não pode é peticionar em ambas as ações, a anterior e a posterior, indemnização pelos mesmos danos, sob pena de se concluir pela repetição da mesma causa e pela verificação do caso julgado ou da litispendência, consoante tenha já sido ou não proferida sentença transitada em julgado.

Esta posição é acompanhada por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (ob. cit. p. 668), que afirmam também que as ações indemnizatórias decorrentes de acidente de viação têm uma causa de pedir complexa integrada pela culpa/risco e pelos danos, inexistindo, por isso, identidade de causa de pedir e de pedido entre duas ações  sobre o mesmo acidente em que os prejuízos alegados e peticionados não são coincidentes, concluindo ainda que, contrariamente ao que ocorre com o réu que deve concentrar todos os meios de defesa na contestação, “[s]obre o autor não incide nenhum ónus de concentração de todas as causas de pedir na ação que proponha” (também neste sentido o Acórdão desta Relação de 04/11/2021, já citado; v. ainda Miguel Teixeira de Sousa, in Preclusão e Caso Julgado, disponível em https://blogippc.blogspot.pt ).

É neste sentido também o entendimento vertido na decisão recorrida onde se conclui que a norma do artigo 566º n.º 2 do Código Civil não obsta a que “os danos que sobrevenham ao momento temporal ali definido sejam exigidos numa nova ação, arrimada no mesmo facto gerador da responsabilidade, pois só assim se respeita a função compensatória da obrigação de indemnizar, consagrada no art. 562, e os princípios que dela se extraem: o princípio da reparação total e o princípio da proibição do enriquecimento que apontam, no dizer de Maria de Lurdes Pereira, Direito da Responsabilidade Civil cit., p. 60, “para a relevância de todas as alterações ou, numa formulação negativa, para a inexistência de um limite temporal do cômputo do dano indemnizável. A solução mantém-se ainda que tais danos, que no referente temporal da indemnização fixada na ação pretérita, ainda não eram presentes, fossem previsíveis, uma vez que sobre o lesado não recai qualquer ónus de pedir a indemnização por danos futuros, ainda que previsíveis. Apenas lhe assiste a faculdade de o fazer.”

Por conseguinte, o que importa determinar é se o Recorrente na ação n.º 3513/17.1T8GMR invocou e peticionou indemnização por todos os danos que sofreu decorrentes do acidente de viação de que foi vítima no dia 30 de abril de 2012, no ..., se não o fez e os vem agora peticionar na presente ação, ou se, pelo contrario, vem pedir uma indemnização relativamente aos mesmos danos.

Ora, na ação n.º 3513/17.1T8GMR, conforme já referimos o Autor peticionou uma indemnização pelos danos futuros decorrentes do défice funcional permanente e uma indemnização pelos danos não patrimoniais, e nesta ação peticiona, de igual modo, uma indemnização pelo dano decorrente do défice funcional permanente que alega ter-se agravado, e uma indemnização pelos danos não patrimoniais.

Não obstante o Autor invocar um agravamento dos danos, a verdade é que está em causa o mesmo dano futuro (previsível) invocado e ressarcido na ação anterior, cuja decisão transitou em julgado após prolação do Acórdão proferido por esta Relação, conferindo à decisão ali proferida o efeito preclusivo do caso julgado material.

Por outro lado, ainda que o Recorrente invoque que estão em causa factos supervenientes demonstrativos de que se agravou o dano biológico, a verdade é que logo na petição inicial alegou, ainda que com alguma ambiguidade como se salienta na decisão recorrida, que o agravamento já se verificava “em bom rigor desde a data fixada como consolidação dos danos, 30/06/2013”, pelo que, conforme afirma o tribunal a quo, “na data do encerramento da discussão na ação n.º 3513/17.1T8GMR (21 de outubro de 2020), aquela agravamento, ainda que porventura não exaurido, já tinha passado do estádio da previsibilidade para o da certeza”, nem sequer estando em causa, pelo menos nessa parte, factos supervenientes.

Acresce dizer, não obstante o Recorrente o omitir, que na ação n.º 3513/17.1T8GMR, já invocara o agravamento no futuro das sequelas decorrentes do acidente que se iriam traduzir num aumento da sua incapacidade permanente geral, o que não logrou provar (veja-se o ponto 18 dos factos aí julgados não provados).

Na referida ação o Recorrente pugnou, e foi objeto do recurso por si interposto, pelo facto de não ser dado como provado que as lesões sofridas pelo Autor estabilizaram em 30/06/2013, não se encontrando sequer estabilizadas, mas agravadas, e de ser dado como provado que está dependente de terceiros para as atividades da vida diária, que as lesões não se consolidaram e que o último relatório médico lhe atribuía uma IPP de 66%.

Ora, no acórdão proferido por esta Relação foi julgado improcedente o recurso do Autor na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.

Tendo por base a necessária interpretação do conteúdo do acórdão proferido, incluindo os fundamentos que aí se apresentem como pressupostos da decisão temos de concluir que a decisão proferida por esta Relação na ação n.º 3513/17.1T8GMR e que alterou, elevando, os valores indemnizatórios a título de dano patrimonial futuro e danos não patrimoniais, teve por base os factos tal como fixados em 1ª Instância, ou seja, que as lesões haviam já estabilizado em 30/06/2013 e que não ficara provado que as sequelas tivessem agravamento no futuro e nem que fosse ter um aumento da sua incapacidade, o que também já estivera pressuposto na sentença aí proferida.

Conforme já referimos, o Autor não logrou demonstrar na primeira ação que intentou contra a aqui Ré, o agravamento no futuro das sequelas decorrentes do acidente que aí alegara e nem que se iriam traduzir num aumento da sua incapacidade permanente geral.

Permitir que o Autor em nova ação viesse peticionar outra vez uma indemnização pelo mesmo dano, cujo agravamento futuro e aumento da incapacidade não provou na primeira ação, seria, e permita-se-nos a expressão popular, “deixar entrar pela janela aquilo que não se quis deixar entrar pela porta”, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual no que toca aos danos em causa.

A este propósito escreve João António Álvaro Dias (Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspetos Ressarcitórios, Coleção Teses, Almedina, 2001, p. 330-331, que: “Tudo isto boas razões para se dar como adquirido e certeiro que não é legítima a invocação pura e simples da regra do n.º 2 do art. 567 do Código Civil para, a pretexto duma qualquer interpretação extensiva ou integração analógica, sustentar a apreciação e reparação de novos danos corporais, por via do agravamento, em ação já julgada e transitada. E o mesmo se diga da entidade pagadora (lesante ou seguradora) que não pode invocar a melhoria da vítima, após a fixação da incapacidade permanente, para obter o reembolso em proporção maior ou menor da quantia e capital que haja pago.”

É, pois, acertada a conclusão constante da decisão recorrida de que “os factos que agora se pretendem trazer à discussão – os que evidenciam o agravamento presente dos danos-prejuízo – já foram, afinal, discutidos na ação pretérita. E foram numa dupla dimensão temporal: por um lado, enquanto danos presentes; por outro, enquanto danos que, sendo presentes, previsivelmente sofreriam agravamento no futuro”.

De todo o exposto decorre que deve concluir-se pela verificação da exceção do caso julgado, impeditiva de nova decisão de mérito e determinativa da absolvição da instância relativamente aos pedidos formulados nas alíneas a) e c).

A exceção de caso julgado é uma das exceções dilatórias expressamente elencadas no artigo 577º do CPC, concretamente na alínea i), que obsta a que o tribunal conheça do mérito e dá lugar à absolvição da instância (artigo 576º n.º 2 do CPC), pelo que não merece censura o Tribunal a quo ao ter julgado procedente a excepção de caso julgado e absolvido a Ré da instância."

*3. [Comentário] Não é impossível que sobre o mesmo evento danoso possam ser propostas duas acções, dado que não é impossível que na primeira acção não sejam indemnizados danos que, em relação a essa acção, devam ser considerados supervenientes. Em função dos dados disponíveis, não era essa a situação no caso em análise no acórdão da RG.

MTS


Jurisprudência europeia (TJ) (299)



Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Artigo 7.º, ponto 2 — Competências especiais em matéria extracontratual — Lugar da materialização do dano — Utilização num veículo de um dispositivo manipulador que reduz a eficácia dos sistemas de controlo das emissões — Contrato de compra e venda desse veículo celebrado num Estado‑Membro diferente do Estado de residência do comprador e da sede do fabricante — Entrega do referido veículo e utilização normal do mesmo no Estado‑Membro de residência do comprador


TJ 22/2/2024 (C‑81/23, MA/FCA Italy et al.) decidiu o seguinte:

O artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial

deve ser interpretado no sentido de que:

quando um veículo alegadamente equipado pelo seu construtor, num primeiro Estado‑Membro, com um dispositivo ilegal que reduz a eficácia dos sistemas de controlo das emissões foi objeto de um contrato de compra e venda celebrado num segundo Estado‑Membro, tendo sido entregue ao adquirente num terceiro Estado‑Membro, o lugar da materialização do dano, na aceção desta disposição, se situa nesse último Estado‑Membro.

 

26/02/2024

Jurisprudência 2023 (117)


Acção de simples apreciação;
interesse processual


1. O sumário de RL 1/6/2023 (3531/21.5T8FNC.L1-2) é o seguinte: 

I) Na medida em que o interesse processual delimita o perímetro do correto exercício do direito de ação, ele deverá ser analisado à luz dos princípios constitucionais do acesso ao Direito e à Justiça, de modo a que não vede o acesso necessário ou útil, nem permita o acesso inútil.

II) O interesse processual define-se como o interesse da parte ativa em obter a tutela judicial de um direito subjetivo através de um determinado meio processual, desdobrando-se num interesse em demandar, que se afere pelas vantagens decorrentes dessa tutela e avalia-se pelas desvantagens impostas ao réu pela atribuição daquela tutela à contraparte.

III) A necessidade ou carência de tutela judicial, que conforma o interesse processual, deve ser aquilatada à data em que a ação é proposta, por referência ao objeto processual definido pelo autor na sua petição inicial.

IV) A questão carecida de tutela judicial terá de ser séria ou justificada e atual, devendo o interesse em agir ser aferido, objetivamente, pela posição alegada pelo autor que tem de demonstrar a necessidade do recurso a juízo como forma de defender um seu direito.

V) A incerteza do demandante deve ser objetiva (devendo resultar de comportamentos inequívocos e contemporâneos do demandado, incompatíveis com a subsistência prática da posição jurídica em causa, que se alega estar perigada, não bastando a dúvida subjetiva do demandante ou o seu interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais) e séria (no sentido de ser prejudicial para os interesses do autor, comprometendo o valor da relação jurídica, a sua negociabilidade ou a sua livre fruição, devendo tal prejuízo ser atual e não meramente potencial).

VI) Nas ações de simples apreciação, o interesse processual prende-se com um estado de objetiva incerteza acerca da existência de dada relação jurídica e do exato conteúdo dos direitos e das obrigações que dela emergem, que acarrete um prejuízo concreto e atual para o demandante, de forma a que a remoção do referido estado de incerteza constitua um resultado útil, juridicamente relevante e impossível de ser atingido sem a intervenção do juiz.

VII) Alegando o autor, Caixa Geral de Aposentações, ter recebido informação através da Segurança Social, de que a ré vive em união de facto com outra pessoa, o que a ré veio a negar, subsiste uma dúvida séria e atual sobre se a ré vive, ou não, em união de facto com outrem, fundando-se, nessa dúvida, o interesse processual (em agir) do autor, com respaldo normativo, na previsão contida no artigo 47.º, n.º 1, al. a) do Estatuto das Pensões de Sobrevivência (preceito segundo o qual, a qualidade de pensionista se extingue, dentre outras circunstâncias, se se verificar uma situação de união de facto, conceito a que se reporta o n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio), tudo justificando a instauração da presente ação de simples apreciação positiva, com vista a definir tal situação.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Estatui o artigo 2.º, n.º 2, do CPC que, “a todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação”.

Trata-se do denominado princípio da “correspondência” (ou da adequação) entre o direito a ação (assim, Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil; Vol. II, 2015, Almedina, p. 16).

Esta adequação também se exprime em função da necessidade ou utilidade da tutela jurídica.

De facto, os tribunais não poderem ser chamados a dirimir litígios meramente hipotéticos, pois, o demandante apenas poderá obter tutela de direitos efetivamente existentes, não perspetivados como meramente eventuais, embora se admitam ações de simples apreciação que tenham por objeto direitos sujeitos a uma condição suspensiva ainda não verificada.

Nessa linha, estabelece o n.º 2 do artigo 30.º do CPC que, “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha”.

Conforme refere Miguel Teixeira de Sousa (As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa; Lex, Lisboa, 1995, pp. 107-108), exprime que este preceito – referindo-se o autor ao correspondente e precedente artigo 26.º do CPC anterior – contém uma previsão de interesse em agir ou processual, pressuposto processual autónomo da legitimidade (previsto no n.º 3), mas com o qual mantém alguma relação: “o interesse processual é aferido relativamente à parte à qual é concedida a faculdade de propor ou de contestar uma determinada acção, isto é, à parte com legitimidade activa ou passiva para essa acção”.

O interesse processual define-se como “o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de um direito subjectivo através de um determinado meio processual”, desdobrando-se num “interesse em demandar” que se afere “pelas vantagens decorrentes dessa tutela” e avalia-se pelas desvantagens impostas ao réu pela atribuição daquela tutela à contraparte” (assim, Miguel Teixeira de Sousa; O Interesse Processual na Acção Declarativa, Lisboa, 1989, p. 6).

Nas palavras de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil; Coimbra Editora, 1993, pp. 79-80), o interesse processual (ou interesse em agir) “[c]onsiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.

“Tal requisito costuma justifica-se por duas ordens de razões:

- uma de interesse público: só quando um direito substantivo estiver carecido de tutela dos tribunais se justifica lançar mão de um processo judicial, pois de outro modo ia-se sobrecarregar, a já muito sobrecarregada, actividade dos tribunais, sem qualquer efeito útil;

- outra de interesse particular: se sem um interesse justificado fosse possível lançar mão de um processo ia-se inutilmente impor a quem quer que fosse demandado o encargo de suportar todos os incómodos resultantes de um processo judicial, nomeadamente, o de ter de se defender.

Uma demanda inútil não aproveita a nenhum das partes e vai dar desnecessariamente trabalho a um órgão estadual que, por mero capricho, é posto em movimento (…)” (assim, Fernando B. Ferreira Pinto; Lições de Direito Processual Civil; Elcla Editora, 1997, pp. 120-121).

A necessidade de tutela judicial, que conforma o interesse processual, deve ser aquilatada à data em que a ação é proposta, por referência ao objeto processual definido pelo autor na sua petição inicial.

Conforme explica Daniel Bessa de Melo (“O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, p. 23): “a questão submetida à apreciação dos tribunais terá de ser, necessariamente, séria e atual; o próprio thema decidendum haverá de espelhar um litígio contemporâneo, real e tangível entre demandante e demandando, não uma mera querela de opiniões e sensibilidades pessoais nem muito menos ancorar-se numa simples previsão de uma altercação, à qual se vise antecipadamente dar solução”.

Por outra parte, “o interesse em agir deve ser aferido, objetivamente, pela posição alegada pelo autor que tem de demonstrar a necessidade do recurso a juízo como forma de defender um seu direito” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-11-2009, Pº 6161/05.5TVLSB.L1-8, rel. FERREIRA DE ALMEIDA).

Conforme dá nota Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado; Vol. I, Almedina, 2018, p. 121) “a falta de utilidade da ação apenas merece por parte do sistema processual uma consequência processual autónoma quando não seja consumida (à semelhança, aliás, da ilegitimidade material) por outros mecanismos processuais”, tendo uma relevância normativa casuística.

O pano de fundo da falta de interesse processual é o autor usar o direito de ação sem que o réu tenha dado causa, logo, sem necessidade de acesso aos tribunais.

A função do interesse processual é a de evitar, antecipadamente, ou de cominar, a posteriori, que os tribunais sejam usados sem necessidade: “se o exercício sem causa do direito de ação não é lícito pode ser desestimulado” (assim, Rui Pinto; Código de Processo Civil Anotado; Vol. I, Almedina, 2018, p. 129).

De facto, o interesse processual traduz a necessidade de usar o processo, exprimindo “a necessidade ou a situação objectiva de carência de tutela judiciária por parte do autor, face à pretensão que deduz, ou do réu, à luz do pedido reconvencional que tenha oportunamente formulado. Esta situação de carência tem, de facto, de ser real, justificada e razoável. (…) Essa situação de carência de tutela exprime-se na concreta utilidade da concessão dessa mesma tutela judiciária para a parte que formula a pretensão” (assim, J. P. Remédio Marques; Acção Declarativa à Luz do Código Revisto; 2.ª ed., Coimbra Editora, 2009, p. 393).

Mas, não basta uma qualquer necessidade. O interesse em agir determina a existência de uma necessidade justificada, razoável e fundada de lançar mão de um processo ou de fazer prosseguir uma ação.

A incerteza deve ser objectiva e grave. Não basta a dúvida subjectiva do demandante ou o seu interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais. Importa que a incerteza resulte de um facto exterior; que seja capaz de trazer um sério prejuízo ao demandante, impedindo-o de tirar do seu direito a plenitude das vantagens que ele comportaria (…). O facto exterior pode ser a negação dum direito do demandante (…) ou a afirmação de um direito (…) contra ele, mesmo que negação ou afirmação apenas verbal (diffamatio ou jactatio). Pode traduzir-se ainda, por ex., em actos do adversário tendentes a fazer valer a sua pretensão (…); na negação de uma autoridade pública (ou até dum tribunal) a reconhecer para qualquer efeito a posição jurídica do demandante; na existência dum documento falso ou de um contrato simulado ou inválido por outro motivo. Por outro lado, a incerteza – costuma acentuar-se – não deve estar em condições de o Autor poder dirimi-la solicitando uma providência judiciária de efeito mais enérgico” (assim, Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Ed., Coimbra, Reimp., 1993, pp. 81-82).

A incerteza será objetiva quando “brota de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor. As circunstâncias exteriores geradoras da incerteza podem ser da mais variada natureza, desde a afirmação ou negação dum facto, o acto material de contestação de um direito, a existência dum documento falso até a um acto jurídico (…)” (assim, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 186-187).

A objetividade da incerteza deverá resultar de comportamentos inequívocos e contemporâneos do demandado incompatíveis com a subsistência prática da posição jurídica em causa, que se alega estar perigada.

“Não será suficiente, para o efeito, a mera dúvida ou incerteza subjetiva do autor, que assim lança mão da tutela declarativa com vista a um “descargo de consciência”, ou um singelo auspício de que outrem contesta o seu direito, quer na sua existência, quer no seu conteúdo, sem qualquer aparente respaldo na realidade; como se lê num aresto, “não basta a mera previsibilidade de uma actuação material desfavorável aos interesses dos Autores ou a mera previsibilidade de um acto lesivo (…)” (cfr., Daniel Bessa de Melo; “O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, p. 36).

Deverá, assim, o autor alegar uma certa materialidade praticada por terceiros inconciliável com o direito cuja titularidade ele arroga, no qual se baseará o seu interesse no suprimento do estado de incerteza, não bastando alegar qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito, “havendo o estado de incerteza de ancorar-se em factos do mundo exterior aptos a suscitar a qualquer sujeito medianamente razoável uma relutância acerca da titularidade ou conteúdo de determinada relação jurídica” (assim, Daniel Bessa de Melo; “O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, p. 38).

Por seu turno, a gravidade da dúvida ou incerteza “mediar-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor” (cfr., Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 186).

Ou seja: O referido estado de incerteza deverá ser prejudicial para os interesses do autor, no sentido de comprometer o valor da relação jurídica, a sua negociabilidade ou a sua livre fruição, no sentido de que, a indefinição de uma situação jurídica, cuja clarificação pode ter repercussões prejudiciais para uma parte, permite a esta a propositura da ação (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-11-2019, Pº 935/18.4T8PTG-1.E1, rel. PAULO AMARAL). Tal prejuízo deverá ser atual e não meramente potencial, embora não seja necessário que, ao tempo da propositura da ação, o prejuízo já se tenha concretizado em toda a sua extensão.

Conforme salienta J. P. Remédio Marques (Acção Declarativa à Luz do Código Revisto; 2.ª ed., Coimbra Editora, 2009, p 394), “[e]ste pressuposto processual assume especial relevo nas acções de simples apreciação. É que, nestas acções, a situação de incerteza quando à afirmação ou à negação do direito ou do facto por parte do réu tem que ser uma situação de incerteza objectiva – que brote de factos exteriores, de circunstâncias externas e não apenas da mente do autor – e, sobretudo, de incerteza grave, que não se traduza num mero capricho. E será grave essa incerteza se for considerável o prejuízo material ou extrapatrimonial causado pela manutenção dessa incerteza”.

As acções de simples apreciação são aquelas que se destinam a definir uma situação tornada incerta.

Nestas acções, “o autor visa apenas obter a simples declaração (munida da força especial que compete às acções judiciais) da existência ou inexistência dum direito (próprio ou de outrem, respectivamente) ou dum facto jurídico. No 1º caso, dizem-se de simples apreciação (ou mera declaração) positiva; no 2º caso, de simples apreciação negativa (…)” (assim, Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Ed., Coimbra, Reimp., 1993, p. 6; em igual sentido; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 186).

O interesse em agir nas ações de simples apreciação tem lugar quando se verifica um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência do direito a apreciar (cfr., Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil; Coimbra Editora, 1993, p. 81).

“Nas acções de simples apreciação positiva, esse interesse provém da situação de incerteza em que se encontra o direito, resultante normalmente da sua negação pelo réu. Assim, a acção de simples apreciação positiva só é admissível quando o autor visa afastar a situação de incerteza criada pela conduta do réu (cfr., v.g., RL – 12/3/1992, CJ 92/2, 128). Por exemplo: o autor tem interesse para intentar uma acção de simples apreciação para obter a declaração da sua propriedade sobre um imóvel que é reivindicado (extrajudicialmente) pelo réu” (assim, Miguel Teixeira de Sousa; As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa; Lex, Lisboa, 1995, p. 114).

Conforme refere Daniel Bessa de Melo (“O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, pp. 34-35), “nas ações de simples apreciação o interesse processual prende-se com um estado de objetiva incerteza acerca da existência de dada relação jurídica e do exato conteúdo dos direitos e das obrigações que dela emergem, que acarrete um prejuízo concreto e atual para o demandante, de forma a que a remoção do referido estado de incerteza constitua um resultado útil, juridicamente relevante e impossível de ser atingido sem a intervenção do juiz. (…). Objetividade e prejudicialidade do estado de incerteza e imprescindibilidade da intervenção jurisdicional para a sanar são, assim, os requisitos que insuflam o interesse processual nas ações de mera apreciação. Não havendo qualquer estado de incerteza, ou não sendo este objetivo nem apto a acarretar um prejuízo para o autor, o juiz deverá abster-se de conhecer do mérito da ação, proferindo antes decisão de absolvição do réu da instância”.

O pedido de declaração da existência de um direito deve, assim, “decorrer da sequência da alegação de uma determinada situação de conflitualidade entre as partes ou da alegação de um estado de incerteza objectivamente determinado, passível de comprometer o valor da relação jurídica e que se não traduza num mero capricho, ou em um puro interesse subjectivo, para obter uma decisão jurídica” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-1999, proc. n.º 99S137, rel. ALMEIDA DEVEZA).

[MTS]


23/02/2024

Jurisprudência 2023 (116)


Processo executivo; quinhão hereditário;
cônjuge do executado; citação


1. O sumário de RE 25/5/2023 (736/08.8TBTVR-H.E1) é o seguinte:

I - A alienação ou oneração do quinhão hereditário do qual faça parte um imóvel, embora respeite a bem próprio, carece do consentimento de ambos os cônjuges, quando entre eles não vigore o regime de separação de bens.

II - O cônjuge do executado que é titular do direito ao quinhão hereditário em herança objecto de penhora, da qual faz parte bem imóvel, deve ser citado para execução, gozando de legitimidade para deduzir oposição à execução e à penhora.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

1. [...] o objecto do recurso consiste em saber se o embargante, cônjuge da executada (habilitada) BB tem legitimidade para deduzir embargos, o que passa por saber se tinha que ser citado para a execução, nos termos dos artigos 786º, n.º 1, alínea a), e 787º, do Código de Processo Civil, tendo sido esta a única questão que o embargado invocou na contestação e no recurso [só em caso de procedência da excepção é que se terão que tirar consequências quanto à decisão de mérito]. [...]

Vejamos:

2. Em face do disposto no artigo 786º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, concluída a fase da penhora e apurada, pelo agente de execução, a situação registral dos bens, são citados para a execução: “a) O cônjuge do executado, quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial que o executado não possa alienar livremente, ou quando se verifique o caso previsto no n.º 1 do artigo 740.º; (…)”.

A obrigatoriedade de citação do cônjuge do executado, prevista na 1ª parte da norma, decorre da necessidade de a venda ou adjudicação só poder realizar-se, recaindo a penhora sobre certa categoria de bens, com o consentimento daquele cônjuge, nos termos do artigo 1682º-A do Código Civil, por estar em causa a possibilidade de alienação de bens que só por ambos podem ser alienados.

É verdade que, no caso em apreço, não foram directamente penhorados bens imóveis, pois foi penhorado o direito à herança, ilíquida e indivisa, integrada por bens imóveis, aberta por óbito de CC, de que são titulares as executadas, habilitadas como herdeiras do falecido executado, a qual é efectuada nos termos do n.º 1 do artigo 781º do Código de Processo Civil, onde se estipula que: “Se a penhora tiver por objecto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efectuada”.

E, como se sabe, a herança ilíquida e indivisa constitui um património autónomo, sendo que com o acto de aceitação os herdeiros apenas assumem uma quota ideal e abstracta do todo hereditário, pois só com a partilha, ainda que com efeitos retroactivos à abertura da herança, é que cada um dos herdeiros fica a conhecer e obtém a qualidade de sucessor dos concretos bens que lhe foram atribuídos [cfr., entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/06/1993 (proc. n.º 003587), disponível como os demais citados em www.dgsi.pt, bem como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/04/2009 (proc. n.º 09A0635), em cujo sumário se destaca: “IV – A comunhão hereditária, geralmente entendida como universalidade jurídica não se confunde com a compropriedade, uma vez que os herdeiros não são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. V- Da aceitação sucessória apenas decorre directamente para cada um dos chamados o direito a uma quota hereditária. VI- Os herdeiros são titulares apenas de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais esse direito ficará a pertencer, se só a alguns ou a um, sendo os demais compensados em tornas. VII – Enquanto a herança se mantiver no estado de indivisão nenhum dos herdeiros tem “direitos sobre bens certos e determinados”, nem “um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota parte em cada um “. VIII – Até à partilha, os herdeiros são titulares, tão somente, do direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar. IX – Só depois da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança”].

Porém, integrando a herança bens imóveis, e não vigorando entre os cônjuges o regime da separação de bens, a alienação ou adjudicação do quinhão hereditário, carece do consentimento de ambos os cônjuges, nos termos do n.º 1 do artigo 1682-A do Código Civil, que se entende ser aqui aplicável, pois, não obstante não terem sido penhorados directamente bens imóveis, a alienação de quinhões hereditários, integrando a herança bens imóveis, implica a alienação de direito que integra estes bens.

Por conseguinte, justifica-se a citação do cônjuge do executado, nos termos previstos no artigo 786º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil o qual, em face do estatuto que lhe é conferido pelo artigo 787º, n.º 1, do mesmo código, “… é admitido a deduzir no prazo de 20 dias, oposição à penhora e a exercer, nas fases posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei processual civil confere ao executado, podendo cumular eventuais fundamentos de oposição à execução”.

Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28/01/2014 (proc. n.º 722/09.0TBSTS-C.P1), com referência a idênticos preceitos do anterior Código de Processo Civil, onde se concluiu que:

«I - A alienação ou oneração do quinhão hereditário do qual faça parte um imóvel, embora respeite a bem próprio, carece do consentimento de ambos os cônjuges, quando entre eles não vigore o regime de separação de bens, nos termos do art. 1682º-A do CC.
II - O cônjuge do executado que é titular do direito ao quinhão hereditário do qual faz parte o imóvel penhorado, deverá ser citado ao abrigo da al. a), do nº3 do art. 864º do CPC.
III - Uma vez citado para os efeitos previstos na 1ª parte do art. 864º-A do CPC, goza o mesmo de legitimidade para deduzir oposição à execução e à penhora.»

Deste modo, conclui-se pela necessidade da citação do cônjuge da executada, nos termos do artigo 786º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, o qual, atento o estatuto processual conferido pelo n.º 1 do artigo 787º, do mesmo código, tem legitimidade para deduzir embargos à execução."

[MTS]


22/02/2024

Bibliografia (1112)


-- Estopa, S., O Regime da Impenhorabilidade Processual - Da Ratio Legis (Almedina: Coimbra 2024)

Paper (505)


-- Dodson, Scott / Spinei, Sebastian, Judicial Jurisdiction and Competence (SSRN 11.2023)


Jurisprudência 2023 (115)


Decisão-surpresa;
nulidade*


1. O sumário de RE 20/4/2023 (2650/17.7BELSB.E1) é o seguinte:

Uma decisão-surpresa é um vício que afeta a própria decisão, tornando-a nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, na medida em que através dela o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A decisão recorrida consiste num despacho saneador-sentença que conheceu do mérito da ação, julgando procedente a exceção perentória da falta do pressuposto previsto no artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro [---], diploma legal que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

No seu recurso o apelante começa por arguir a nulidade daquela decisão (cfr. artigo 13.º da motivação de recurso) decorrente de uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do Código de Processo Civil, concretamente a inobservância do princípio do contraditório. Defende o apelante que o tribunal recorrido entendeu ser aplicável o disposto no artigo 13.º/2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidade Públicas e que no caso não existia prévia revogação da decisão, acrescentando que não foi ouvido sobre tal matéria «que, por sinal, não era consensual entre as partes, posto que na sua réplica o autor, ou dito de outro modo, na Contestação da contraparte tal não resultava claramente expressa a invocação da exceção perentória» e que «mesmo que se entenda que do artigo 597.º resulta que não tem de existir uma decisão expressa a dispensar a audiência prévia, o que até se pode admitir, deve ser dado sempre oportunidade às partes para se pronunciarem sobre tal. E tal notificação não se basta com um mero despacho genérico onde se refere que o tribunal entende que dos autos já constam todos os elementos».

Vejamos se lhe assiste razão.

No processo comum de declaração, em princípio, é obrigatória a realização de uma audiência prévia. Com efeito, proferido despacho pré-saneador ao abrigo do disposto no artigo 590.º do CPC e após praticados os atos em execução daquele despacho, ou, não tendo lugar o despacho pré-saneador, o processo é concluso ao juiz no final da fase dos articulados, o qual designará data para a realização da audiência prévia, destinada a algum ou alguns dos fins previstos nas várias alíneas do artigo 591.º, n.º 1, do CPC. Esta é, portanto, a regra, sendo para aquela diligência convocados os mandatários das partes e as próprias partes quando o objeto da ação se contenha no âmbito dos direitos disponíveis.

Há, porém, situações em que a lei prevê a não realização de audiência prévia: são os casos contemplados nas alíneas a) e b) do artigo 592.º do Código de Processo Civil) [---]; e há também as situações em que a lei permite ao julgador dispensar a realização daquela diligência, dando assim expressão ao princípio da gestão processual: é o que pode acontecer quando a audiência prévia se destina apenas aos fins enunciados nas alíneas d) a f) do artigo 591.º/1 do CPC [---] (cfr. artigo 593.º do Código de Processo Civil).

Em suma, a audiência prévia pode ser dispensada pela lei (artigo 592.º) ou pelo juiz (artigo 593.º).

Refira-se, ainda, que o artigo 597.º do Código de Processo Civil, para as ações de valor não superior a metade da alçada da Relação e uma vez terminada a fase dos articulados, coloca à disposição do tribunal várias opções quanto à tramitação subsequente dos autos, permitindo-se ao julgador, ao abrigo do normativo em referência, avançar diretamente para a audiência final sem realizar uma audiência prévia. Porém, a consagração no preceito supra mencionado do princípio da adequação formal, veículo para a agilização da tramitação das ações, não pode implicar a derrogação de princípios estruturantes do processo civil, como o é o princípio do contraditório. Por conseguinte, e ainda que porventura não haja factos controvertidos, designadamente porque os factos necessários à solução da causa se encontram já assentes por confissão, admissão por acordo ou por documento, ainda assim, deve ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões de direito que a solução do caso convoca, tudo em obediência ao princípio do contraditório e, em última análise ao princípio do processo equitativo.

É consabido que o processo pode terminar no despacho saneador, seja com uma absolvição da instância em resultado da procedência de alguma exceção dilatória, seja com uma decisão sobre o mérito da causa (absolvição ou condenação no pedido), sempre que se mostre desnecessário qualquer ato de instrução (cfr. artigo 595.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC).

Quando o tribunal se proponha conhecer da questão de fundo, a sua decisão deve ser precedida de discussão ou de debate sobre a matéria de facto e de direito (cfr. artigo 591.º, n.º 1, alínea b), 2.ª parte, do CPC e artigo 593.º, n.º 1, do CPC).

A audiência prévia das partes, possibilitando a estas a pronúncia, em debates orais, sobre a matéria de facto que consideram provada e aquela que consideram não provada, bem como sobre os fundamentos de direito invocáveis para sustentar as pretensões de cada uma, permite evitar, justamente, as decisões surpresa, que estão vedadas pelo disposto no artigo 3.º/3 do Código de Processo Civil.

O artigo 3.º/3 do Código de Processo Civil dispõe que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».

Explicam Lebre de Freitas/Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Almedina, p. 7.] que o referido preceito legal consagra o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão-surpresa, acrescentando que «não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito de fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (itálicos nossos).

O princípio do contraditório – que é uma decorrência do princípio do processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição – exige, assim, que antes da apreciação final do(s) pedidos, o tribunal permita às partes se pronunciarem sobre os fundamentos de facto provados e não provados e de exporem os últimos argumentos de direito convocáveis para fundamentar as suas pretensões.

No caso sub judice o tribunal a quo proferiu decisão sobre o fundo da causa pois julgou procedente uma exceção perentória, tendo, consequentemente, absolvido o réu Estado Português do pedido.

Resulta dos autos – e não é controvertido – que o tribunal proferiu aquela decisão sem que, previamente, tivesse anunciado às partes a sua intenção de conhecer do mérito da causa em sede de despacho saneador ou anunciado previamente a sua intenção de dispensar a realização da audiência prévia, não lhes tendo dado, portanto, quer por via da realização de debates orais, quer por via de alegações escritas, uma derradeira oportunidade de se pronunciarem de facto e de direito antes da prolação daquela decisão e, nomeadamente, sobre a verificação da exceção perentória invocada pelo tribunal recorrido para absolver o Estado do Pedido quando na própria decisão recorrida o julgador a quo referiu expressamente que o Ministério Público na Contestação não a mencionou expressamente.

A decisão sob recurso surgiu, assim, como uma decisão-surpresa, logo, violadora do princípio do contraditório e, por via dela, também da garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio e de um processo equitativo.

O desrespeito do princípio do contraditório, quando ele deva ser observado, constitui uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC pois trata-se de omissão de uma formalidade que a lei prescreve destinada a evitar decisões-surpresa. Já Anselmo de Castro ensinava que, no que deva entender por “irregularidade suscetível de influir no exame (instrução e discussão) ou na decisão da causa”, «não restam quaisquer dúvidas de que a fórmula legal abrange todas as irregularidades ou desvios ao formalismo processual que atinjam o próprio contraditório» e que, para além disso, «só caso por caso a prudência e a ponderação dos juízes poderão resolver» [Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 109.].

As nulidades processuais devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz, como resulta do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CPC, sendo a decisão que recair sobre a respetiva arguição impugnável por via recursiva.

Todavia, uma decisão-surpresa é um vício que afeta a própria decisão, tornando-a nula na medida em que através dela o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.

Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, p. 90, referem que «a falta de audição prévia (e, portanto, a violação pelo tribunal do dever de consulta) implica que o despacho saneador que venha a ser proferido é nulo por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d)): o tribunal conhece de matéria que, nas circunstâncias em que o faz (omissão do dever de consulta), não pode conhecer».

Assinala Teixeira de Sousa, in https: //blogippc.blogspot.pt., que ainda que a falta de audiência prévia constitua uma nulidade processual por violação do princípio do contraditório, aquela é consumida por uma nulidade de sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão. Pelo que a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso fundamentado na nulidade da própria decisão.

Em face de todo o exposto, alcança-se a conclusão de que a decisão recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC e, consequentemente, há que anulá-la e determinar que os autos regressem à primeira instância para que o tribunal possibilite às partes a discussão de facto e de direito da causa antes da prolação da decisão sobre o mérito da causa."

*3. [Comentário] 1. O acórdão adopta a posição que, depois de alguma resistência inicial, corresponde à orientação estabilizada na jurisprudência sobre a nulidade das decisões-surpresa.

2. A acção foi proposta ainda antes de estarem em vigor as alterações introduzidas no CPC pela L 117/2019, de 13/9. 

Na altura, a exigência da prévia revogação da decisão levantava sérios problemas, não só porque não se compatilizava com o direito europeu, mas também porque era uma exigência impossível de satisfazer se a decisão proviesse do STJ ou do STA. O disposto nos actuais art. 696.º, al. h), 696.º-A e 701.º, n.º 1, al. e), CPC procurou solucionar o problema.

MTS