"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))
03/01/2025
Informação (312)
Jurisprudência 2024 (76)
“A requerente intentou, como incidente da ação de divórcio, o presente procedimento cautelar de arrolamento (art. 409.º, n.º 1 do CPC).
O procedimento cautelar de arrolamento não é daqueles em que o legislador excluiu a audição prévia ao decretamento da providência.
Em regra, o requerido deve ser sempre ouvido salvo se existir risco sério para o fim ou a eficácia da providência (art. 366º, nº 1 do CPC). “Quando a providência se destine a evitar uma lesão e a apreciação objectiva do circunstancialismo determine a inadmissibilidade de qualquer dilação, o juiz deve dispensar a audiência do Requerido, valorando o fim da providência (razões objectivas). O factor da eficácia poderá ligar-se preferencialmente a razões de ordem subjectiva inerentes à pessoa do Requerido, à semelhança do que ocorre no arresto” (ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA in Código de Processo Civil Anotado, p. 445).
Assim, há que aferir se a audiência prévia do requerido, capaz de eliminar o efeito surpresa da medida cautelar, permitirá àquele inutilizar todo o interesse da medida cautelar, tendo sempre presente que a regra estabelecida é a da sua audição. Na verdade, não se olvide que o arrolamento consubstancia uma providência cautelar onde se verifica, per si, um perigo e que o legislador estipula expressamente que dispensa de audição prévia do Requerido há-de ser a excepção e não a regra.
Na apreciação do risco da audiência do requerido, o juiz não está dependente da iniciativa do requerente da providencia: mesmo que este assim não tenha requerido, os factos por ele alegados e provados podem levar o juiz a dispensar oficiosamente a audiência imediata do requerido.
Ora, volvendo aos autos, além de não ter sido requerida essa dispensa, entende este Tribunal que nada justifica a mesma. Isto porque, não obstante estarem em causa bens móveis, de fácil dissipação, a verdade é que além de o casal já ter dissolvido o casamento em ../../2023, por mútuo consentimento, alega a Requerente que “há largos meses que o Requerido mudou as fechaduras das portas (..) impedindo o acesso da aqui Requerente aos seus bens e ao uso do referido prédio”, não sendo, assim, descrita nenhuma conduta actual e iminente do requerido que justifique a sua dispensa.
Em conformidade com o exposto, deverá prosseguir-se a tramitação ulterior dos autos, com audição do requerido.”
Insurge-se a Apelante contra o decidido, com os seguintes fundamentos:
- há largos meses que a recorrente não consegue aceder àquele prédio, tendo o recorrido mudado de fechaduras com o propósito de impedir o acesso da requerente àquela moradia;
- ao ordenar a audição do requerido antes do decretamento do arrolamento vai por em causa a eficácia da providencia cautelar requerida;
- no arrolamento como preliminar ou incidente da ação de divórcio, o requerente não carece de alegar e provar o justo receio de extravio e de dissipação de bens comuns ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro – artigo 409º, nº3, CPC;
- tal facto justifica também a não audição do requerido ao abrigo do disposto no art. 366º, nº1, CPC, uma vez que a audiência do mesmo, nestas situações de rutura e de crise da vida conjugal, é suscetível de pôr em risco o fim ou a eficácia da providência, atenta a presunção, implícita no art. 409°, n° 3 do CPC, da existência de fundado receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens.
Desde já adiantamos ser de dar razão à Apelante.
Encontrando-nos perante um procedimento cautelar de arrolamento, instaurado pela requerente por apenso a um processo de divórcio (já findo), ao abrigo do disposto nos nºs. 1 e 3, do artigo 409º, do Código Civil, sob a epígrafe, “Arrolamentos Especiais”:
“1. Como preliminar do divórcio ou incidente de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento dos bens comuns ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro.
3. Não é aplicável aos arrolamentos previstos nos números anteriores o disposto nº nº1do artigo 403º.
Se, durante anos, a jurisprudência e a jurisprudência vinham sustentando que nos arrolamentos especiais a que se reportava, o então artigo 427º – como preliminar do divórcio ou incidente de separação judicial e bens, declaração de nulidade ou anulação de casamento –, não referindo aquela norma o justo receio de extravio ou dissipação de bens, ele não tinha de ser alegado nem provado no processo, não constituindo requisito de tal tipo de arrolamento, o DL nº 329-A/95, aditando um nº 3 a tal artigo veio a consagrar legalmente essa interpretação [---].
No procedimento cautelar de arrolamento – seja no arrolamento geral, seja nos arrolamentos especiais a que se refere o artigo 409º CC – o legislador nada diz quanto à necessidade de audiência prévia do requerido, levantando-se a questão de saber se é de aplicar a regra geral do nº2 do artigo 366º CC, segundo a qual o tribunal deve, em princípio ouvir o requerido, exceto se a audição puser em risco o fim ou a eficácia da providência, ou se o contraditório dever ser dispensado, atenta a natureza e as finalidades desta providência cautelar.
Segundo Marco Carvalho Gonçalves, visando o arrolamento impedir o extravio, a ocultação ou a dissipação de bens ou de documentos, considerando as finalidades desta providência, a mesma deve, por norma, ser decretada sem o contraditório prévio do requerido, sob pena de se comprometer, de forma irremediável, o efeito útil do arrolamento. “Na verdade, conhecendo o requerido de antemão a pretensão do requerente, corre-se o risco de aquele praticar os atos de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou de documentos que o requerente pretendia precisamente evitar através do recurso a esta providência cautelar [Marco Carvalho Gonçalves, “Tutela cautelar Conservatória: Perspetivas Jurisprudenciais sobre o Arresto e o Arrolamento”, p.55].
Contudo, ainda segundo tal autor, nada dispondo o Código de Processo Civil quanto à dispensa de audição prévia do requerido, impõe-se aplicar o regime geral do artigo 366º, nº1, devendo o juiz, através de despacho fundamentado, decidir dispensar ou não essa audição prévia consoante entenda que a mesma é ou não suscetível de comprometer a urgência ou o efeito útil da providência [Em igual sentido, Lucinda Dias da Silva, “Processo Cautelar Comum, Principio do contraditório e dispensa de audição prévia do requerido”, Coimbra editora, p.175.].
A dispensa de audição prévia do requerido pressupõe, a verificação de três tipos de circunstancias:
a) que exista risco para o efeito útil do processo a acautelar;
b) que tal risco seja sério;
c) que o efeito útil seja posto em causa pelo facto de o exercício imediato do contraditório (audição do requerido) contender com o fim ou eficácia da providência [Lucinda Dias da Silva, “Processo Cautelar Comum, Principio do contraditório e dispensa de audição prévia do requerido”, p.158.].
E, tratando-se de arrolamento como preliminar ou na sequência de divórcio visa assegurar a conservação do património comum até à partilha.
No caso em apreço, tendo em vista as especiais finalidades desta providência, o circunstancialismo fáctico alegado pela requerente satisfaz os três referidos requisitos: alega a requerente que, após o divórcio, o requerido mudou a fechadura das portas exteriores da casa que possuem em Portugal (bem comum de ambos), impedindo a requerente do acesso aos seus bens e ao uso da casa, peticionando o arrolamento dos bens móveis que aí se encontrem por recear o extravio ou dissipação de tais móveis do património conjugal.
Tal factualidade, é de molde a recear que, a ser cumprido o contraditório prévio, o requerido se apresse a ocultar ou desfazer dos bens móveis que aí se encontram, antes que tal arresto venha a der decretado – face à natureza dos mesmos –, diminuindo, ou inutilizando, o efeito inútil da providência que viesse a ser decretada.
A decisão recorrida, apesar de reconhecer encontrarem-se em causa bens móveis, de fácil dissipação, considerou não se justificar a dispensa de audição prévia, pelo facto de o casal já ter sido dissolvido o casamento em ../../2023, alegando a Requerente que há largos meses que o requerido mudou a fechadura das portas (…) impedindo o acesso da aqui requerente aos seus bens e ao uso do prédio”, não sendo descrita nenhuma conduta atual e eminente do requerido que justifique tal dispensa.
Contudo, as razões que aqui justificam a dispensa da audição prévia não se prendem com a urgência no arrolamento, mas, com o facto de que, se lhe for dado conhecimento prévio da instauração do procedimento, o ponha em situação de alerta, dando-lhe oportunidade de, rapidamente, e antes de ser proferida decisão na providência, ocultar ou se desfazer de alguns dos bens do património comum.
O juiz deve optar pela dispensa do contraditório, independentemente da iniciativa do requerente, se se convencer de que a audição do requerido coloca em perigo a utilidade ou a eficácia da providência, tendo o risco, de o contraditório provocar maiores danos ao requerido do que benefícios ao requerente, de ser sério. Deve afastar-se o contraditório prévio sempre que o seu imediato exercício seja suscetível de afetar o efeito útil do procedimento, mesmo que só para o diminuir [Eugénia Maria de Moura Martinho da Cunha, artigo citado, p. 39.]
No arrolamento em questão, o decretamento sem a sua audição prévia, em princípio, não acarretará prejuízos relevantes ao requerido, uma vez que tal providência não visa o desapossamento dos bens, mas tão só a sua descrição, sendo o mesmo nomeado o seu fiel depositário.
Com efeito, recaindo o arrolamento sobre bens móveis ou imóveis, o requerido, sendo nomeado depositário desses bens (e ao contrário do que acontece com a penhora) pode continuar a utilizá-los, já que essa utilização não é incompatível com a natureza do arrolamento [Marco Carvalho Gonçalves, local citado, p. 56.].
Justifica-se, assim, no caso em apreço, a dispensa de audição do requerido, a fim de acautelar a eficácia da providência [Em igual sentido, a propósito de contas bancárias, se pronunciou o Acórdão de 12-10-2021, relatado por Luís Cravo, disponível in www.dgsi.pt.].
A apelação será de proceder, sem outras considerações."
[MTS]
02/01/2025
Jurisprudência 2024 (75)
A questão de saber se o pedido de redução das liberalidades deve ser deduzido em processo especial de inventário (nos termos acima referidos) ou se pode ser feito em ação declarativa comum tem sido apreciada pela doutrina e a jurisprudência. […]
Em nosso entender, no quadro legal vigente, não sendo a redução de legados inoficiosos uma função específica do processo de inventário, mas incidental, e estando expressamente previsto no art. 2178.º do CC o direito de ação de redução de liberalidades inoficiosas, parece-nos inaceitável afirmar que a redução de inoficiosidades apenas poderá ser peticionada e obtida, em toda e qualquer circunstância, mediante a instauração de processo de inventário.
E daí que se tenha de seguir a forma de processo comum - não correspondendo a forma de processo de inventário (nem qualquer outra forma de processo especial) ao pedido tem de se seguir o processo regra, ou seja, o processo comum.E tal conclusão (a de inaplicabilidade das regras de processo de inventário no caso presente) surge mais claramente com a revogação do que se dispunha no art. 1398º do C.P.C. - aqui dispunha-se que "Ao inventário que tenha unicamente por fim a descrição e avaliação de bens ou a verificação de que não há disposições inoficiosas são aplicáveis as disposições deste capítulo, na parte em que o puderem e deverem ser".Na verdade, havendo, como havia, norma que determinava a aplicação das regras processuais do processo de inventário aos casos em que a finalidade era a verificação de disposições inoficiosas e sendo tal preceito legal revogado pelo Dec.-lei n.º 227/94 de 8/9, só pode entender-se que o legislador pretendeu excluir do processo especial a pretensão, quando única, de verificação de inoficiosidades.Tal forma de processo comum não invalida, porém, que havendo lugar a inventário (quer para pôr termo a comunhão hereditária, quer para relacionação dos bens para eventual liquidação da herança) o pedido de declaração de inoficiosidade não possa ser apreciado e decidido nesse processo de inventário - deverá ou poderá sê-lo considerando que a partilha dos bens da herança está também dependente dessa operação de redução/revogação das inoficiosidades e o processo de inventário destina-se precisamente à partilha dos bens da herança (cf. art. 1376º do C.P.C.).Só que então, tratar-se-á de uma questão incidental prévia à realização da partilha dos bens, já que a questão da redução/revogação por inoficiosidade constitui uma das operações que integram a operação da partilha, questão a resolver, portanto, antes da decisão sobre a partilha, salvo se for caso de remessa dos interessados para os meios comuns (cf. art. 1335º e 1336º do C.P.C.).Assim, como não há lugar a instauração de inventário, de acordo com o art. 1326º do C.P.C., que estabelece o campo de aplicação deste processo especial, e como não existe preceito legal que mande aplicar as suas regras processuais nos casos de inoficiosidades, tem de se concluir que ao pedido dos AA. não corresponde o processo de inventário mas a forma de processo comum. […]
Por outro lado, o processo comum revela-se adequado a resolver a questão (com a procedência da acção os bens passam, sem mais, a integrar o património hereditário - cf. Acórdão do STJ de 17/11/94, na C.J. - STJ - 1994- -3-145) assegurando às partes todas as garantias de defesa dos seus direitos, designadamente, a alegada avaliação do valor real dos bens, certo que as normas processuais que permitem aos donatários intervir no processo de inventário, em caso de inoficiosidade, não impõem a utilização do processo de inventário - a norma que determina o recurso ao processo de inventário é o referido art. 1326º do C.P.C. e as normas que, no processo de inventário, regulam a intervenção dos interessados têm como pressuposto a obrigatoriedade de, no caso, ter de se seguir o processo de inventário.
[MTS]