"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/01/2025

Legislação (242)

 

Magistrados;
Centro de Estudos Judiciários

-- Lei n.º 7-A/2025, de 30/1
 
Procede à quinta alteração à Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro, que regula o ingresso nas magistraturas, a formação de magistrados e a natureza, estrutura e funcionamento do Centro de Estudos Judiciários.


Breves notas sobre a impugnação de decisões de tribunais arbitrais nos tribunais judiciais




 [Para aceder ao paper clicar em Urbano A. Lopes Dias]


Jurisprudência 2024 (96)


Processo de inventário entre ex-cônjuges;
disponibilidade de bens comuns; legitimidade processual


1. O sumário de RC 9/4/2024 (84/12.9TBVZL-Z.C1) é o seguinte:

Face à existência de uma escritura pública pela qual um dos ex-cônjuges declara doar a sua meação no património comum do casal, reservando para si o direito de uso e habitação de um dos imóveis que fazem parte desse património comum, o tribunal não pode excluir do inventário tal ex-cônjuge, sem apreciar a questão da (in)validade de tal declaração de reserva e os eventuais efeitos no negócio de doação.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Se o tribunal a quo não podia excluir o recorrente do inventário, sem ter apreciado a questão da reserva do uso e habitação constante da escritura de doação da meação

Para além do circunstancialismo fáctico que consta do relatório, teremos ainda os seguintes factos com interesse para a apreciação da decisão em apreço:

1. Na Ação de divórcio por mútuo consentimento nº 84/12...., respeitante ao casal BB e AA, estes apresentaram os acordos legais, entre os quais um acordo quanto ao destino da casa de morada de família, acordos estes que foram homologados por sentença de 16-11-2014, que decretou o divórcio de ambos por mutuo consentimento.

2. Em tal acordo, declaram que “acordam, em conformidade com o estabelecido nos artigos 1775º, nº2, do Código Civil, e 1419º, nº1, al. f), do Código de Processo Civil, o destino da casa de morada de família, nos termos seguintes: Os Requerentes acordam que o direito de uso e habitação da casa de morada de família caberá ao requerente BB”.

3. Com base em tal acordo, o ex-cônjuge BB logrou registar a seu favor o direito de uso e habitação relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...56º, que faz parte do património comum do casal;

4. Por escritura de doação celebrada no dia 15.12.2014, o BB declarou doar aos filhos CC, DD e EE, em comum e partes iguais, por conta da quota disponível, a sua meação no património comum do casal, mantendo para si o direito de uso e habitação sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...56 de ..., descrito na CRP ... sob o nº ...36, atribuindo à doação o valor de 20.000 €.

5. Por sentença de 09-06-2016, proferida na ação comum nº 3783/15...., transitada em julgado, foi declarada anulada a declaração, emitida pela autora aqui interessada AA, no acordo sobre o destino de morada de família constante do processo 84/12...., incidente sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...56 de ..., nos termos do qual “o direito de uso e habitação da casa de morada de família caberá ao requerente BB”. [...]

O tribunal a quo entendeu que declarado anulado, por sentença transitada em julgado, o acordo junto no processo de divórcio, pelo qual “o direito de uso e habitação da casa de morada de família caberá ao requerente BB”, e com base no qual este logrou o registo a seu favor de tal direito, o mesmo deixou [de] ser interessado no presente inventário:

Daí decorre que, tendo sido anulada tal declaração, que motivou a “reserva” constante da primeira escritura de doação (“mantendo – o interessado BB – para si o direito de uso e habitação sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ...56 de ..., descrito na CRP ... sob o nº ...36”), daí resulta que tal “reserva” deixou de ter objecto, implicando a exclusão do interessado BB dos presentes autos, por se encontrar processualmente substituído pelos donatários/cessionários, atrás identificados.

Insurge-se o Apelante contra o decidido, com os seguintes fundamentos:

- A sentença proferida no processo 3783/15.... apenas declarou a nulidade do acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado na sentença de divórcio;

 - Não tendo sido declarada a nulidade da escritura de doação da meação, pela qual [BB] reservou para si o direito ao uso e habitação sobre um prédio urbano que compõe a referida meação;

- Sendo o requerente titular do direito de uso e habitação, que reservou para si na escritura de doação da meação, tem legitimidade para intervir nos autos de inventário;

- Ao excluir o recorrente do inventário, sem ter apreciado a questão da reserva do uso e habitação constante da escritura de doação da meação, a sentença fez incorreta aplicação da lei e do direito violando as normas jurídicas previstas nos artigos 1688.º e 1689.º, ambos do C.C., no que se refere ao objeto das relações patrimoniais que cessaram após o divórcio e ainda as normas jurídicas previstas nos artigos 958.º e 959.º do mesmo C.C. nos que se refere à liberdade do doador reservar para si o uso e habitação e artigos 1484.º a 1490.º também do mesmo C.C. no que se refere aos limites e conteúdo do direito ao uso e habitação.

O Apelante distingue, assim, “o direito de uso e habitação” que lhe havia sido atribuído pelo acordo celebrado no âmbito do processo de divórcio e que veio a ser anulado por sentença, e “o direito de uso e habitação” de que, em seu entender, é titular, pelo simples facto de incidir sobre um imóvel que faz parte do património comum, direito que reservou para si aquando da doação da meação que doou a alguns dos seus filhos.

E sustenta que o tribunal não o podia excluir do inventário, julgando-o parte ilegítima sem apreciar a questão da reserva do uso e habitação constante da escritura de doação da meação.

E, nesta parte, temos de dar razão ao Apelante.

A declaração de anulabilidade, decretada por sentença proferida no processo 3783/15...., do acordo quanto à casa de morada de família homologado na sentença que decretou o divórcio entre ambos e pelo qual “o direito de uso e habitação da casa de morada de família caberá ao requerente BB” [...] não esgota, por si só, a questão de saber se o ex-cônjuge continua a ser interessado no presente inventário.

Com efeito, encontrando-nos perante um inventário para partilha do património comum após dissolução do casamento por divórcio e face à escritura de doação que  o ex-cônjuge, BB, fez a três dos seus filhos – pela qual declarou doar a estes a sua meação nos bens comuns do casal, reservando para si o “direito de uso e habitação” sobre um imóvel que faz parte dos bens comuns do casal, o tribunal não poderia excluir o doador do inventário, sem apreciar a validade da doação e, em especial, a validade da “reserva” que para si fez do “direito de uso e habitação” de um dos imóveis que fazem parte do património comum do casal e, no caso de invalidade desta, se a mesma afetava a doação.

A declaração de anulabilidade proferida na ação 3783/15, do acordo junto ao processo de divórcio, que atribuiu ao interessado BB o direito de uso e habitação da casa de morada de família, não esgota nem importa a resolução automática da questão da validade do negócio de doação da sua meação no património comum

Atentar-se-á em que, a ser válido o acordo homologado na ação de divórcio (e a entender-se que o direito atribuído era o direito real de uso e habitação e não um mero direito obrigacional a habitar a casa de morada de família), o direito de uso e habitação daquele imóvel passaria a integrar o património do ex-cônjuge enquanto bem próprio. Declarada a anulabilidade de tal acordo, e não tendo sido apreciada a validade da doação feita por si feita – pela qual doou a sua meação reservando para si o direito de uso e habitação de um prédio urbano que faz parte desse património comum – colocar-se-á a questão de saber se, ao doar a sua meação, o ex-cônjuge poderia dela excecionar o direito de uso e habitação sobre algum dos bens do património comum do casal.

Ou seja, apesar de a atribuição do direito ao uso e habitação contida naquele acordo ter sido declarada anulada, permanece de pé o negócio formalizado pela escritura de 15-12-2014, de doação da sua meação, reservando para si o “direito de uso e habitação” de um imóvel que faz parte do património comum.

Sendo, em princípio, válido o negócio que incida sobre a sua meação após a dissolução do casamento, e considerando-se que antes da partilha, nenhum dos ex-cônjuges possui qualquer direito próprio a qualquer dos bens que a integram, exercem em conjunto o direito inerente àquele património autónomo [---], haveria que apreciar previamente se o direito ao uso de determinado bem se pode considerar incluído na sua meação, enquanto direito autonomizável e que o ex-cônjuge pudesse reservar para si.

A decisão recorrida não podia excluir do inventário o interessado BB sem apreciar a questão da (in)validade da reserva do direito de uso e habitação de um determinado imóvel que faz parte do património comum e, no caso de se considerar a mesma inválida, se tal invalidade afeta, ou não, a própria doação da meação.

E, a solução a dar a tal questão afetará, não só, a definição da legitimidade processual para este inventário, mas igualmente quem são os titulares dessa meação no património comum que aqui se está a partilhar.

A apelação será de proceder, sem outras considerações."

[MTS]


30/01/2025

Bibliografia (1172)


-- Mastroianni, R. (Coord.), Il diritto processuale dell'Unione europea (Giappichelli: Torino 2025)


Jurisprudência 2024 (95)


Litigância de má-fé;
alteração da verdade dos factos

1. O sumário de RC 23/4/2024 (3828/23.0T8CBR.C1) é o seguinte:

I – Não é a parte que envia uma carta para o domicílio da outra parte na relação contratual que tem o ónus de saber se a mesma chegou ou não ao conhecimento do destinatário, bastando que pratique todos os atos para que a mesma chegue ao seu destinatário, ou seja, os atos necessários e suficientes que coloquem o destinatário em condições de a receber e ter acesso ao respetivo conteúdo.

II – Se o fornecedor de energia elétrica (declarante) enviou para a morada constante do contrato uma carta, que não foi devolvida, praticou os aludidos atos necessários e suficientes, pelo que, se a contraparte (declaratário) não a leu, só disso se pode queixar e tal omissão só a si é imputável.

III – Assim, cabia ao destinatário rececionar e tomar conhecimento do conteúdo da carta/declaração, o que não fez por culpa sua ou incúria, pelo que a referida comunicação se deve ter por eficaz, nos termos do disposto no art.º 224.º, n.º 2, do Código Civil, interpretação esta que não padece de inconstitucionalidade.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"D. Se a requerente litiga de má fé.

No que a esta questão respeita, alega a recorrente que não litigou de má fé, com o fundamento em que não actuou dolosamente nem com negligência grave, nem com o intuito de prejudicar a requerida, até porque não recebeu a comunicação de 23/8, informando da possibilidade do corte.

Na sentença recorrida, em resumo, concluiu-se pela existência de má fé por parte da requerente, com o fundamento em que a mesma alegou no requerimento inicial factos de que tinha conhecimento que não correspondiam à verdade e que tinham importância no desfecho da acção, designadamente que não lhe foi enviada qualquer comunicação escrita avisando da possibilidade de corte de electridade, vindo-se, ao invés, a apurar que lhe foram enviadas cartas e SMS, a disso avisar, bem como a indicar/agendar as datas de visita de um técnico para a mudança do contador, bem como contactos telefónicos, com vista à mudança do contador, o que tudo resultou infrutífero.

Para além de que negou a chamada telefónica referida no item 19.º, apenas vindo a admitir a sua veracidade após a junção aos autos da respectiva gravação, o que tudo constitui “comportamento processual reprovável”.

Posto isto, impõe-se começar por clarificar, antes de nos debruçarmos sobre o “mérito” de tal consideração/condenação, que, para tal juízo de censura processual, relevam apenas e só os factos dados como provados; ou seja, no raciocínio lógico (silogismo judiciário) que conduz à condenação de alguém como litigante de má-fé, a premissa menor só pode ser composta pelo cotejo entre o que a parte alegou e o que, em oposição ao alegado, consta dos factos dados como provados.

Dito doutra forma, o tribunal não pode alicerçar um juízo sobre a má-fé no que se fez constar na motivação da decisão de facto (e, muito menos, na de direito); assim como não pode extrair um juízo de má-fé dum facto não provado, uma vez que, todos o sabemos, num processo, um facto não provado não é sinónimo da prova positiva do facto contrário.

Tendo isto presente, importa salientar que, cotejando a alegação da requerente constante do requerimento inicial e os factos dados como provados verifica-se, efetivamente, que contrariamente ao alegado pela requerente, demonstrou-se a veracidade de todas as comunicações efectuadas entre as ora partes, melhor descritas nos itens 11.º a 14.º e 18.º e 19.º, com vista à substituição do contador e/ou corte/religação da electricidade no escritório da requerente.

Mais do que isso, a requerente só admitiu a existência do contacto telefónico mencionado no item 19.º, depois de ter sido junta a respectiva gravação.

Trata-se do núcleo dos factos essenciais em que a requerente baseia a sua pretensão.

Assim, em nossa opinião tem de se concluir que a requerente alterou a verdade de factos relevantes (essenciais, segundo o art. 5.º/1 do CPC) para a decisão de causa.

Pode/deve ser considerado litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver, designadamente, deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (cfr. art. 542.º/2/a) e b) do CPC).

Significa isto que a mera falta de razão – quer quando a parte não demonstra a sua versão factual quer ainda quando se demonstra a versão factual oposta – não é por si só suficiente para legitimar uma condenação como litigante de má-fé (em tal hipótese, a “sanção” está justamente na improcedência da sua pretensão ou oposição); sendo necessário, para poder ser proferida uma condenação como litigante de má-fé, que a oposição entre a versão alegada e a que resultou provada seja subjectivamente imputável ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração intencional ou, pelo menos, consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes exige a negligência grave, grosseira.

Trata-se de factos pessoais, relativamente à requerente, de que esta, necessariamente, tinha de ter conhecimento, de que apresentou uma versão completamente oposta do que se veio, efectivamente, a demonstrar, o que, face ao exposto, integra os fundamentos para que a requerente seja, como o foi, condenada como litigante de má fé.

Esta, apenas questionou a existência de tais fundamentos, não tendo suscitado a questão da fixação e/ou redução dos montantes da multa e/ou indemnização fixadas na decisão recorrida, pelo que, quanto a tal, nada há a referir."

[MTS]

29/01/2025

Jurisprudência 2024 (94)


Intervenção principal;
direito de regresso; intervenção acessória*

I. O sumário de RL 18/4/2024 (422/23.9T8CSC-A.L1-6) é o seguinte:

1.- No âmbito do seguro de responsabilidade civil facultativo, a intervenção provocada da seguradora, suscitada pela ré, demandada como lesante, só pode por regra ocorrer acessoriamente e não a título de intervenção principal, pois que não é aquela sujeita passiva da relação material controvertida que existe entre o segurado lesante e o terceiro lesado;

2. – O referido em 5.1., não obsta, porém, a que, excepcionalmente, possa o lesado deduzir a intervenção principal provocada da sua Seguradora, ao abrigo do disposto no nº 3, do art.º 316º, do CPC;

3. – A faculdade referida em 5.2., tem lugar quando, ao abrigo do art.º 140º, nº 2 e 3, do REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO, preveja v.g. o contrato de seguro o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Mostra-se a presente apelação relacionada com decisão que põe termo a incidente de intervenção de terceiros, estando, portanto, em causa uma decisão que pôs termo a incidente processado autonomamente, logo, em tese susceptível de apelação autónoma ao abrigo do disposto no art.º 644º,nº1, alínea a), do CPC, o qual reza que cabe recurso de apelação  “Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente”.

Não tendo a referida decisão deferido a requerida – por D - intervenção provocada [nos termos do art.º 316º, nº3, alínea a), do CPC], nada obsta, portanto, ao conhecimento por este tribunal do objecto recursório, em razão de impugnação deduzida nos termos do art.º 644º, nº1, alínea b), in fine, do CPC.

E conhecendo.

Mostra-se o thema decidenduum relacionado com questão que vem há muito merecido diversas abordagens e soluções diferentes/antagónicas, maxime no âmbito da jurisprudência da segunda instância.

No essencial, e dispondo o art.º 316º, do CPC, que:

1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2 - Nos casos de litisconsórcio voluntáriopode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.
3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.”,

o certo é que entendimento de alguma jurisprudência [que o tribunal a quo segue e perfilha] aquele que considera que estando em causa um contrato de seguro facultativo – como será o caso dos autos - e havendo existindo factispecie desencadeadora de responsabilidade civil do segurado [in casu da Ré D], então o interesse da seguradora será meramente secundário relativamente à relação material controvertida estabelecida entre o segurado lesante e o terceiro lesado, razão pela qual a seguradora apenas pode ser chamada a intervir na competente acção a título acessório, através do incidente da intervenção acessória provocada, nos termos do art.º 321º do CPC.

Ou seja, nas referidas situações, não é a seguradora contitular da relação material controvertida [como o exige  a alínea a), in fine, do nº3, do art.º 316º, do CPC, e para efeitos de utilização do incidente de intervenção de terceiros e de intervenção provocada ], mas apenas sujeito passivo da relação jurídica que decorre do contrato de seguro, relação última esta que, sendo apenas conexa com a relação material controvertida, permite que seja a seguradora (como terceiro contra quem o réu de uma acção pode agir em acção de regresso) chamada como auxiliar na defesa [cfr. art.º 321º, do CPC].

O referido entendimento, que é aquele que o tribunal a quo perfilha [e sufraga na decisão recorrida], é o mesmo que se mostra v.g. seguido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em Acórdão de 29/10/2020 (Proferido no Processo nº 1083/19.5T8VCT-A.G1, e estando disponível em www.dgsi.pt), e no qual se conclui (No mesmo sentido, vide v.g. o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa 27/11/2008 [proferido no Processo nº  8398/08-2], do Tribunal da Relação do Porto de 3/5/2011 [proferido no Processo nº 1870/09.2TBVCD-B.P1] e de 30/5/2016 [proferido no Processo nº 296/07.7TBMCN.P1], e os do Tribunal da Relação de Guimarães de 1/10/2015 [proferido no Processo nº 345/13.0TBAMR-A.G1], de 27/2/2020 [proferido no Processo nº 1677/19.9T8VCT-A.G1], de 21/5/2020 [proferido no Processo nº 2075/19.0T8VCT-A.G1], 26/11/2020 [proferido no Processo nº 645/19.5T8FAF-A.G1], todos eles disponíveis em www.dgsi.pt) que:

I - o âmbito do seguro de responsabilidade civil facultativo, a intervenção provocada da seguradora, suscitada pela ré, demandada como lesante, só pode ocorrer acessoriamente e não a título de intervenção principal;
II- Só assim não será, podendo ser demandada diretamente a seguradora, ou ser deduzida a sua intervenção principal, quando tal se encontre expressamente previsto no contrato de seguro ou quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações diretas entre o lesado e o segurado”.

Já no âmbito da doutrina, mostra-se outrossim o aludido entendimento – seguido pelo tribunal a quo - perfilhado prima facie por MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (Em 29/07/2020, Jurisprudência 2020 (41), Intervenção principal, direito de regresso e intervenção acessória [...]), e, igualmente por RUI PINTO (Em Código de Processo Civil Anotado I - Vol. I - Artigos 1.o a 545., Almedina.), defendendo designadamente e expressis verbis este último que a intervenção da Seguradora deve fazer-se a título principal ou a titulo acessório, consoante o contrato de seguro seja obrigatório ou facultativo,respectivamente.

Ex adverso, todavia, a verdade é que existem diversas decisões igualmente da 2dª instância que enveredam por um entendimento divergente, v.g. considerando [como assim o decidiu o Tribunal da Relação de Évora, em Ac. de 4/6/2020 (Proferido no Processo nº 2767/18.0T8FAR-A.E1, e disponível em www.dgsi.pt.)] que “O incidente de intervenção principal provocada é o adequado para a Ré assegurar a presença na lide da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiro por sinistro decorrente da sua actividade de construção civil  ”. (No mesmo sentido, vide v.g. os Acs. Tribunal da Relação de Guimarães de 6/01/2011 [proferido no proc. n.º 5907/09.7TBBRG-A.G1] e de 19/11/2015 [proferido no proc. n.º 814/13.1TJVNF-A.G1]; do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7/11/2006 [proferido no proc. n.º  7576/2206-7];  do Tribunal da Relação do Porto de 6/07/2009 [proferido no proc. n.º 721/08.0TVPRT-A.P1] e de 15/11/2012  [proferido no proc. n.º 3868/11.1TBGDM-A.P1];  do Tribunal da Relação de Évora, de 11/01/2018 [proferido no proc. n.º 2812/16.4T8PTM-A.E1] e de 9/06/2022 [proferido no proc. n.º 2929/21.3T8FAR-A.E1],  todos eles  disponíveis em www.dgsi.pt.)

Em termos bastante sucintos, e socorrendo-nos das conclusões insertas no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19/11/2015 (Proferido no proc. n.º 814/13.1TJVNF-A.G1 e disponível em www.dgsi.pt.), tudo aponta para que a tese da admissibilidade – nas situações equivalentes às dos autos - do incidente de intervenção provocada assenta nos seguintes considerandos:

I- São pressupostos de admissibilidade da demanda comum que haja um estado de comunidade jurídica a respeito do objecto litigioso, ou que os litisconsortes sejam titulares de um direito ou obrigação pela mesma causa de facto e jurídica, ou que as pretensões dos litisconsortes sejam da espécie e se baseiem em causas de facto e de direito equivalentes.
II- Tendo-se transferido através da celebração do contrato de seguro, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro, o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis.
III- Por essa razão, obrigando-se a seguradora para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, fica aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário, razão pela qual, não sendo o segurado ou a seguradora, respectivamente, parte originária na demanda, nada impede que se suscite o incidente de intervenção provocada do segurado ou da seguradora, respectivamente, promovendo a apreciação da sua situação jurídica e constituindo a sentença caso julgado quanto a eles.

Tal equivale – para quem sufraga a última posição aludida - a dizer que, no essencial, e partindo do pressuposto de que o contrato de seguro é um contrato a favor de terceiro, nos termos dos artigos 443º e 444º, ambos do Código Civil, então ao outorgá-lo a seguradora assume a obrigação de suportar o risco, a obrigação de indemnizar, logo, pode o terceiro demandar directamente a seguradora ou o segurado, ou ambos em litisconsórcio voluntário.

Tendo presente os argumentos que suportam as “teses” em confronto, e importando definir qual a nossa posição, e, não obstante o respeito que nos merece o entendimento que ampara a apelação de D, certo é que estamos em crer que prima facie não pode o responsável por obrigação de indemnização decorrente de ilícito extra-contratual socorrer-se do incidente de intervenção provocada [nos termos do art.º 316º,nº3, do CPC] para chamar à acção contra si proposta a Seguradora com quem outorgou um contrato de seguro facultativo.

Para tanto,  temos para nós que do disposto no nºs 2 e 3, do art.º 316º, do CPC, decorre com alguma segurança que o incidente de intervenção provocada mostra-se previsto e consagrado – no CPC - para situações de litisconsórcio necessário ou voluntário e, aquando da segunda situação e sendo deduzido pelo Réu, há-de este último dispor de interesse atendível em chamar a intervir nos autos outros litisconsortes voluntários e igualmente sujeitos passivos da relação material controvertida.

Precisando melhor, e tal como igualmente sucede na intervenção principal para efetivação do direito de regresso (nos termos do art.º 317º do CPC), deve o terceiro chamado ser, com o é o réu, também sujeito da relação material controvertida, situação que já não é exigível no âmbito da  intervenção acessória provocada, sendo então o terceiro  sujeito passivo de uma distinta relação material em que se funda a pretensão de regresso. (Cfr. António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, pág. 147.)

Em suma, pacífico é para nós que a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe sempre um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida (Cfr. SALVADOR DA COSTA, em Os Incidentes da Instância, 5ª Edição, Almedina, pág. 115), o que equivale a dizer que a relação material controvertida diz respeito a várias pessoas – art.º 32º, nº 1, do CPC.

Ora, porque estamos em crer que o adequado é considerar que pela celebração do contrato de seguro (a se)apenas decorrem  obrigações para e entre as partes contratantes [aquilo que para a seguradora resulta da celebração de um contrato de seguro, é uma obrigação de prestar, e não de indemnizar (Cfr. MARIA de LEMOS HONRADO, em A INTERVENÇÃO DA SEGURADORA NAS ACÇÕES PROPOSTAS CONTRA O SEGURADO, Dissertação submetida para obtenção do grau de Mestre em Direito - Ciências Jurídicas Forenses, página 58 e acessível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/17319/1/Honrado_2013.pdf.)], não estando, portanto, em causa um contrato a favor de terceiro, nos termos do art.º 443º do CC, ou seja, não transforma o contrato de seguro a outorgante seguradora em titular da relação material controvertida que existe entre lesante e lesado, mas sim de uma relação com ela conexa (a que deriva do contrato de seguro ), eis porque não podemos perfilhar o entendimento que suporta a pretensão recursória.

Neste conspecto, e como bem chama à atenção RUI PINTO (Ibidem, pág. 469.) faz pouco sentido defender-se que “em qualquer caso de responsabilidade de seguradora estamos perante devedores solidários, podendo aquela, ser demandada directamente pelo lesado”, havendo antes que distinguir “consoante o regime aplicável ao contrato de seguro”.

Ou seja, pressupondo o incidente de intervenção provocada uma situação de litisconsórcio (art.º 316º, do CPC)e, apenas existindo esta última quando a relação material controvertida respeita a várias pessoas (art.º 32º, nº 1, do CPC ), então porque no caso da responsabilidade civil do segurado a subjacente relação material controvertida é a que existe entre o segurado lesante e o terceiro lesado – não tendo a seguradora um interesse próprio e paralelo ao do segurado lesante, no confronto com o terceiro -, forçoso e congruente será – no nosso entendimento - concluir não poder haver lugar in casu ao supra referido incidente  de intervenção de terceiros.

É vero que, não se olvida, que ao abrigo do disposto no art.º 140º, nºs 2 e 3, da DL n.º 72/2008, de 16 de Abril [que aprova o REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO, rezando ambos que “2 - O contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado. 3 - O direito de o lesado demandar directamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador], e apesar de como vimos supra a relação material controvertida dizer respeito ao segurado lesante e ao terceiro lesado, nada obsta porém a que seja o próprio contrato de seguro a prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.

Tal é o que acontece, como decorre do item de facto nº 3.1., em relação à apólice n.º …61 [referente a RESPONSABILIDADE CIVIL PROPRIETÁRIO DE IMÓVEIS] e da qual consta como Seguradora a F e como tomadora de seguro a Ré D.

Destarte, em face de tudo o supra exposto, deve então a apelação proceder apenas parcialmente, devendo admitir-se o Incidente de intervenção principal provocada da seguradora F [não porque assim o permite o disposto no art.º 316º, nº 3, do CPC e em face dos sujeitos da relação material controvertida tal como esta é pela demandante delineada nos autos, mas tão só porque tal se encontra expressamente previsto no contrato de seguro].

*3. [Comentário] Em MTS, CPC online (2024.12), art. 316.º, 9, (b), escreveu-se o seguinte: "A circunstância de o terceiro interveniente ter de ser alguém que podia ter sido demandado em litisconsórcio com o réu inicial exclui a aplicação do n.º 3, al. a) [do art. 316.º CPC] à generalidade das situações de sub-rogação decorrentes da realização da prestação por um terceiro"

MTS

28/01/2025

Paper (521)


-- Kostenko, Oleksii / Akefi Ghaziani, Vahid, Admissibility of illegally obtained e-evidence: A critical study of EU law and the Precedents of the European Court of Human Rights (SSRN 12.2024)


Jurisprudência 2024 (93)


Divórcio; partilha de bens bens comuns;
património comum


1. O sumário de RP 21/3/2024 (431/19.2T8AND.P1) é o seguinte:

I - Nos termos do artigo 1789º do Código Civil, os efeitos do divórcio retrotraem-se à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.

II - Resultando provado que os ex-cônjuges casaram sob o regime de comunhão de adquiridos, o montante depositado numa conta bancária, proveniente dos rendimentos do trabalho, é um bem comum.

III - Na partilha, devem ser relacionados não só os bens existentes no património colectivo do casal à data da propositura da acção de divórcio (se a momento anterior não deverem retrotrair os seus efeitos), mas também aqueles que a esse património cada cônjuge deve conferir, por lho dever.

IV - Deve ser conferido ao património colectivo do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, e por via do que engrandeceu o seu património próprio à custa desse património colectivo.

V - Ainda que um dos cônjuges tenha levantado a quantia da conta bancária em momento anterior à propositura da ação de divórcio, tal quantia deverá ser relacionada no inventário como bem comum sob pena de haver um enriquecimento ilícito do ex-cônjuge.


2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:

"C- Alteração da decisão de Mérito. [...]

A questão nuclear a analisar traduz-se na determinação sobre se os saldos bancários no total de 293.700,00 euros se são bens comuns ou próprios.

Neste segmento a sentença recorrida considerou em resumo o seguinte: «.. As contas existentes na Banco 2... e na Banco 1... são contas solidárias tituladas pelo autor e pela ré, devendo ser, em princípio, considerados bens comuns porque existentes à data da entrada da acção de divórcio, data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges, de acordo com o disposto nos artigos 1688º e 1789º do C. Civil.

Alegou o autor que os saldos das contas que relacionou eram bens próprios provindos de rendimentos exclusivamente seus, quer do trabalho, quer dos seus negócios.

De acordo com a própria alegação do autor e que se provou, sendo os rendimentos provindos, na constância do casamento do seu trabalho (não sendo relevante se é por conta de outrem ou por conta própria) esses rendimentos são bens comuns, nos termos previstos pelo artigo 1724º, conjugado com o disposto no artigo 1730º do C. Civil. Não provou (nem sequer alegou, apenas o referiu na audiência de julgamento, mas sem qualquer sustentação) que tais rendimentos provinham de doações ou de empréstimos de terceiros que lhe foram feitos apenas e exclusivamente a si.

Assim os saldos relacionados pelo autor nas contas bancárias identificadas nas verbas n.ºs 3 e 4 (da Banco 1... e da Banco 2...) devem ser relacionados como bens comuns e não como bens próprios

Em relação às duas contas existentes do Banco 3..., apurou-se que também provinham dos rendimentos da actividade do autor, apesar de tituladas também nome do seu irmão.

Assim não se aplica aqui a regra da solidariedade prevista pelo artigo 516º do C. Civil, sendo também os saldos relacionados nessas contas bens comuns.

A reconvinte pretende, no entanto, que sejam ainda relacionadas todas as verbas que o autor levantou das contas solidárias existentes na Banco 1... S. A. e na Banco 2..., no mês anterior à data da entrada da acção de divórcio.

Esta acção foi instaurada no dia 9 de Junho de 2015 e os levantamento foram efectuados pelo autor no decurso do mês de Maio de 2015, levantamentos identificados nos pontos 38º e 39º dos factos provados (o último levantamento ocorreu no dia 6 de Junho, a escassos dias da entrada da acção de divorcio, no dia 9) num total de 293.700,00 Euros.

O autor contrapôs a pretensão da autora com a cessação dos efeitos patrimoniais entre o casal e que se verificam na data da entrada da acção de divórcio, não tendo, nem autor, nem a ré, requerido que fosse fixada a data da separação de facto (1789º, n.º 2 do C. Civil).
Vejamos:

Estabelece o artigo 1689º, do C. Civil (Partilha do casal. Pagamento de dívidas)

1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes.
3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

Do texto desta norma decorre que o património comum a partilhar deve ser definido não só pelo que nele existir no momento da dissolução do matrimónio, mas também por aquilo que cada um dos cônjuges lhe deve conferir, por lho dever.

Consequentemente, a partilha a realizar por dissolução do casamento não se limita aos bens identificados no património colectivo do casal, ao tempo da propositura da acção de divórcio; nela também se há-de levar em conta aquilo que cada um dos cônjuges dever a esse património. Essa é a letra da norma constante do art. 1689º, nº 1 do CC.- Neste sentido também o Acórdão do T. Rel. Porto de 16 /4/2013, proc. nº 133/08.5TBMGD-C.P1, Relator. Rui Manuel Correia Moreira disponível em www.dgsi.pt.

No caso em apreço, tendo-se apurado que apenas um mês antes (e o último levantamento dias antes) da instauração da acção de divórcio o autor, sem que tenha alegado ou provado qualquer motivo para o efeito, levantou e fez suas avultadas quantias de contas solidárias do casal, esse comportamento deve considerar-se como doloso e um enriquecimento injustificado à custa do património dos dois membros do ex-casal, empobrecendo a ré.

O autor deve repor o valor que retirou ao património comum para que seja partilhado nos termos do artigo 1689º, n.º 1.

Citando novamente o já referido Acórdão do TRP de 16-04-2013 (Acórdão que identifica as duas diferentes interpretações sobre o tema, mas adere à que por nós é também defendida):

- Deve ser conferido ao património colectivo do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, e por via do que engrandeceu o seu património á custa do património colectivo».

E deve ser-lhe dada a possibilidade de o fazer no processo de inventário se o processo estiver pendente, sem necessidade de instaurar uma acção para o efeito.

Com efeito e continuando a citar o Acórdão do TRP de 2013 (e que cita também o Acórdão, no mesmo sentido, proferido pelo TRC de 8-11-2001, ao qual já nos referimos): solução defendida parte do texto da norma prevista pelo artigo 1689, n.º 1 do C. Civil (…) devem operar-se compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro; e a relativa à consequência deste princípio, segundo a qual o cônjuge que utilizou bens ou valores comuns deverá, no momento da partilha, compensar o património comum pelo valor actualizado correspondente; esses bens ou valores devem ser objecto de relacionação de modo a permitir aquela compensação…»

Ora, tal como o que sucedeu na situação em análise no Acórdão citado, o autor no mês que antecedeu a instauração da acção de divórcio, praticamente esvaziou o saldo das contas do casal, alegando nestes autos que o dinheiro era apenas seu, o que não provou, não tendo justificado os levantamentos para além do facto de achar que são seus, o que não se provou. Apropriou-se de mais de 290 mil euros, sendo facto notório e porque resulta da própria alegação do autor, segundo a qual a ré o tinha «expulsado de casa», que as relações entre o casal não eram boas.

A única intenção do autor foi (e que manteve ao considerar todo o dinheiro como seu) impedir a partilha desses valores.

Ter por certos estes factos e sujeitar o outro cônjuge a ir responsabilizar civilmente o respectivo agente, seu ex-cônjuge, por tal actuação claramente censurável, numa acção autónoma, é uma solução que a ordem jurídica não deve admitir. E não o deve admitir por duas ordens de razões: a primeira, porque assim estaria a acolher, pelo menos no imediato, como irrelevante uma conduta claramente culposa, isto é, passível de censura segundo o juízo da consciência ético-jurídica da comunidade, onerando a vítima dessa conduta com o ónus de intentar uma outra acção para ali ter de invocar e demonstrar novamente o seu direito; a segunda por razões de economia processual: não deve remeter-se para decisão em outra acção, a decorrer entre as mesmas partes, um litígio cujos elementos, após adequada discussão, estão todos presentes numa causa onde, por definição, deve ser dirimido (Acórdão do TRP citado).

Os ex-cônjuges já têm um processo de inventário instaurado e pendente/suspenso a aguardar pela decisão a proferir nestes autos, processo onde devem dirimir todas as questões relacionadas com os bens a partilhar e a sua repartição entre os dois interessados.

Tendo-se apurado que o autor a escassos dias da instauração da acção de divórcio fez sua quantia superior a € 290.000,00, deve tal quantia ser relacionada como bem comum e não o dispondo, operar-se na partilha a igualação dos direitos dos dois cônjuges, impondo-se que restitua a esse património (mais a correspondente actualização), a fim de que aí possa ser partilhado. O que, obviamente, implica a necessidade da sua relacionação no acto processual próprio para esse efeito.

Improcede pelo exposto o pedido formulado pelo autor na alínea d) da Petição Inicial e procede o pedido reconvencional deduzido pela reconvinte na alínea a), assim como da alínea b), juros de mora devidos desde a data dos levantamentos efectuados, mas apenas até à data da entrada da acção de divórcio na medida em que a partir desse momento o autor não estaria em mora se tivesse relacionado os valores levantados, porque teria cumprido com a sua obrigação, juros calculados à taxa legal de 4% (artigos 804º, 805º e 806º do C. Civil)…» (sic).

*
Aderimos á fundamentação jurídica da sentença acompanhando o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo:947/17.5T8CVL-C.C1.S1, Relator: JORGE ARCANJO, de 20-09-2023, disponível na base de dados da DGSI (local de origem de toda a jurisprudência citada) «Sumário : I - Do art. 1689.º do CC extrai-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro, repondo-se, assim, o reequilíbrio patrimonial. II - Fazem parte do património comum do (ex)casal, com vista à partilha subsequente ao divórcio, não apenas os bens existentes à data da propositura da acção, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos ex-cônjuges.».

Conforme se refere no citado acórdão que estamos a acompanhar dado o paralelismo com o caso presente: «… Sobre esta questão existem duas correntes jurisprudenciais:

A) Uma no sentido de que apenas deve ser partilhado o património comum do casal integrado pelos bens e direitos existentes à data da propositura da acção.

Os tópicos de argumentação são os seguintes:

Os efeitos patrimoniais do divórcio retrotraem-se ao momento da propositura da acção, ou àquele em que for expressamente requerido a momento anterior (art.1789 nº1 e 2 CC);

A lei não prevê a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio para momento anterior, ressalvando-se a situação do art.1789 nº2 CC;

Se no exercício dos poderes de administração de bens comuns um dos cônjuges alienou bens pertencentes ao património comum, os mesmos deixam de fazer parte de tal acervo e como tal não podem ser partilhados, restando ao outro cônjuge prejudicado exigir indemnização, a coberto do art.1681 nº1 CC, que pressupõe a demonstração da intenção de causar prejuízo.

No Supremo Tribunal de Justiça perfilharam esta orientação, os seguintes arestos:

Ac STJ de 17/11/1994 (proc n.º 86146) Relator -Miranda Gusmão, publicado na Colectânea de Jurisprudência- Acórdãos do STJ, ano II, tomo III, 1994, págs. 148 a 150), com o seguinte sumário:…
Ac STJ de 2/5/2012 (Agravo n.º 238/06.7TCGMR-B.G1.S1 - 6.ª Secção), relator Azevedo Ramos, com o seguinte sumário:
Ac STJ de 26/11/2014 (Revista n.º 2009/06.1TBAMD-B.L1.S1 - 2.ª Secção), relator -Tavares de Paiva ( disponível em www dgsi.), sumariando-se
Na jurisprudência das Relações, cf., por ex., Ac RP de 16/2/1995 (proc. nº 9420158), Ac RE de 21/2/2002 ( proc nº 2708/01), Ac RC de 29/4/2008 ( proc nº 598/04), disponíveis em www dgsi


B) Outra corrente sustenta, com base no nº1 do art.1689 CC, que os bens a partilhar são não apenas os que existam à data da propositura da acção, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos cônjuges.

Neste sentido, o Ac STJ de 14/7/2022 (Revista n.º 4106/20.1T8VNG-B.P1.S1 - 1.ª Secção, Relatora -Maria Clara Sottomayor) ( não publicado na base de dados )no qual também estava em causa a questão de saber se devem integrar a relação de bens comuns, e ser objecto de partilha na sequência do divórcio, o valor de um automóvel que integrava o património comum do casal, alienado por um dos cônjuges, sem o consentimento do outro, bem como o valor do saldo bancário que um dos cônjuges levantou da conta do casal, em ambos os casos em data anterior à instauração da acção de divórcio, nele se concluindo o seguinte:

“I - Sem prejuízo de uma eventual ação de responsabilização do cônjuge administrador, nos termos do n.º 1 do art. 1681.º do CC, o processo de inventário, por ocasião do divórcio, com vista à partilha das meações, é o meio adequado para aferir das eventuais compensações devidas entre os patrimónios. II - O regime definido no art.1689.º do CC, ao determinar como se apura o património comum e a meação de cada cônjuge (“conferindo o que cada um deles dever a este património”), consagra um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro. III - Devem, assim, ser relacionados no processo de inventário, para integrar os bens objeto de partilha, a quantia depositada em conta bancária e levantada exclusivamente pelo cônjuge administrador em proveito próprio, antes da proposição da ação de divórcio, bem como o valor dos automóveis comuns alienados em momento anterior ao da proposição da ação. IV - É ao cônjuge que fez o levantamento do dinheiro e que alienou bens móveis comuns que cabe o ónus da prova de demonstrar que os valores levantados da conta bancária e o produto da venda dos bens foi utilizado em proveito do casal e da família”.

Argumenta-se que:

Por força do “princípio geral de compensação, em associação ao princípio geral de proibição do enriquecimento, na fase da liquidação da comunhão, cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve. O cônjuge devedor deverá, assim, compensar nesse momento o património comum pelos benefícios obtidos no seu património próprio com sacrifício dos bens comuns. (…)

Em virtude de a alienação do automóvel e de o levantamento do dinheiro terem sido feitos, na constância do casamento, cerca de cinco meses antes de a ação de divórcio ser proposta, sem o consentimento do outro cônjuge, surgiu no património comum do casal um crédito correspondente ao valor atualizado do automóvel e do dinheiro.

O cônjuge cabeça de casal (também cônjuge administrador no caso do dinheiro: artigo 1678.º, n.º 2, al. a), do Código Civil) terá, assim, que compensar, no momento da partilha, no processo de inventário, o património comum, integrando no ativo da comunhão o valor do levantamento de 22.500, 00 euros, a não ser que demonstre, mas é a ele que cabe o ónus da prova, que o dinheiro foi utilizado em proveito comum do casal.

Idêntico regime vale para os automóveis. (…)

Remeter o cônjuge lesado para um processo comum, como entendeu o tribunal de 1.ª instância, em que aquele tem de provar, segundo as regras gerais de direito, nos termos do artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil, a intenção de prejudicar os direitos do outro cônjuge sobre a comunhão (ou seja, o dolo), praticamente inviabilizaria, ou dificultaria de forma excessiva e contrária à razão de ser da lei, a compensação de patrimónios e a igualação entre ambos na partilha (artigo 1730.º do Código Civil), permitindo que o mais afoito e menos respeitador da comunhão de vida fosse beneficiado.”

Conclui-se nesse aresto que “a aplicação de um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro, permite evitar esta situação de desigualdade. Senão fosse assim, verificar-se-ia um enriquecimento injusto de um dos cônjuges à custa do património comum, resultado avesso à vontade do legislador e incoerente com o regime jurídico global da partilha, centrado no respeito pela regra da metade consagrada no artigo 1730.º do Código Civil, norma inderrogável conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-02-2022 (proc. n.º 322/13.0TVLSB.E1.S1) e num princípio geral de compensação de patrimónios, também aceite pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 21-04-2022 (proc. n.º 463/13). (…).

Os bens em litígio – o dinheiro levantado pelo cônjuge cabeça de casal e os dois automóveis – devem ser relacionados e objeto de partilha, a fim de se proceder às compensações entre patrimónios, executando-se a regra da metade, sem enriquecimento do património próprio de nenhum dos cônjuges à custa do património comum.”

Esta orientação foi também já assumida nos seguintes arestos das Relações - Ac RL de 14/1/1997 ( proc nº 0013831, Ac RC de 8/11/2001 ( proc nº 493/10) , Ac RL de 28/6/2007 ( proc nº970/2007), Ac RP de 16/4/2013 (proc nº 133/08), Ac RC de 18/10/2016 (proc nº 638/15), disponíveis em dgsi.pt ).

A solução adoptada:

Na situação dos autos, resulta dos factos provados que a transmissão da quota de que o réu era titular na sociedade D..., Lda., bem como a transferência do montante de € 71.000,00 realizada pelo réu para uma conta sua, tiveram lugar antes da instauração da acção de divórcio pela Autora, respectivamente, em Abril e em Maio de 2017, tendo a acção de divórcio sido proposta em Junho de 2018.

Verifica-se que nenhuma das partes pediu no processo principal de divórcio, a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da cessação da coabitação, nos termos previstos no art. 1789.º, n.º 2, do CC, sendo certo que na factualidade provada na presente acção também não consta a data em que tal ocorreu.

Tanto a sentença da 1ª instância, como o acórdão recorrido seguiram a tese da primeira corrente jurisprudencial, citando expressamente os acórdãos do STJ nos quais se apreciaram situações similares à dos presentes autos, em que um dos cônjuges procedeu, sem o consentimento do outro, ao levantamento de dinheiro ou de aplicações financeiras antes da data da propositura da acção de divórcio e sem que algum dos cônjuges tenha pedido a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da cessação da coabitação. Neles se decidiu que tais valores monetários não têm de ser incluídos na partilha no âmbito do processo de inventário e o cônjuge que se sentir prejudicado terá que reagir através da propositura de uma ação de indemnização de perdas e danos conforme decorre do art. 1681.º, n.º 1, do CC.

No balanceamento dos interesses em jogo, crê-se que a melhor solução é a seguida pela corrente jurisprudencial segundo a qual os bens a partilhar são não apenas os que existam à data da propositura da acção, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos cônjuges, ancorada no princípio geral da compensação e no princípio da proibição do enriquecimento sem causa, como se decidiu no citado Ac STJ de 14/7/2022 (desta Secção ).

Implicando a plena comunhão de vida na constância do matrimónio uma osmose entre as diferentes massas patrimoniais, o princípio da equidade nas relações patrimoniais entre os cônjuges impõe a reintegração do equilíbrio patrimonial inicial. Muito embora não haja uma norma legal específica, o princípio geral da compensação deduz-se claramente do art.1689 CC.

A doutrina civilista considera ser esta a melhor solução, porque baseada no princípio geral de compensação e da proibição do enriquecimento indevido.

Para a Prof. Rita Lobo Xavier – “(…) deve entender-se que o património empobrecido tem um direito a uma compensação no momento da dissolução do regime, em qualquer situação em que se verifique o enriquecimento de uma das massas patrimoniais à custa da outra, mesmo que não exista uma norma legal específica a ressalvar expressamente a correspondente compensação.

A não ser assim, verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custas do património de cada um dos cônjuges ou de um destes à custas daquela.

Estas compensações entre as várias massas patrimoniais existentes nos regimes de comunhão visam, ao fim e ao cabo, a reintegração do equilíbrio patrimonial quebrado pelo fluxo de valores entre as massas, através das correcção das situações em que uma delas se enriqueceu em detrimento da outra. O mecanismo das compensações é, assim, mais uma das manifestações do princípio da equidade que rege as relações patrimoniais entre os cônjuges (“Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges” (pág.396 a 398).

Também a Prof. Cristina Dias justifica a premência de um princípio geral da compensação entre as diferentes massas patrimoniais com vista a salvaguardar o equilíbrio patrimonial, ao escrever o seguinte:

“Ao contrário de outros preceitos legais (cf., por ex., o art.1697, em matéria de dívidas) não há uma disposição que expressamente contemple esta situação.

Mas deverá admitir-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e o comum sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento do outro. A não ser assim, verificar-se ia um enriquecimento injusto da comunhão à custas do património de um dos cônjuges, ou de um destes à custas daquele” (Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, ano 1, nº2, 2004, pág. 121).

Além disso, importa acentuar que a natureza de bem comum, e consequentemente como integrando o património comum do casal, não está condicionada pelo facto de os actos de disposição terem sido praticados antes da acção de divórcio, pois que existindo em plena constância do casamento o estatuto patrimonial é definido pelo regime de bens (no caso, de comunhão de adquiridos).

Posto isto, destinando-se a presente acção a declarar o património comum do casal, com vista à partilha subsequente ao divórcio, deve abranger os bens ( comuns)) existentes antes da propositura da acção de divórcio e as respectivas compensações, o que implica averiguar do crédito do património comum sobre o património próprio do Réu, independentemente da acção de responsabilidade civil contra este, a coberto do art. 1681 CC….» (sic).

Assim, resulta que no caso dos autos estamos perante contas bancárias colectivas solidárias (cada titular tem legitimidade para as movimentar de forma autónoma), sendo que os valores depositados são bens comuns porque pertencem a ambos os cônjuges.

Nos termos do artigo 1689 nº 1 e 3 do CCivil a partilha do casal não se limita à partilha do património comum, devendo proceder-se á entrega dos bens próprios; liquidação da comunhão, na qual se inclui o apuramento e o pagamento das dívidas; avaliação e cálculo das compensações e, por fim, a partilha dos bens comuns.

Na fase da liquidação da comunhão cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve, sob pena de ocorrer um enriquecimento sem causa de um dos cônjuges á custa do património comum. O cônjuge devedor deverá compensar nesse momento o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum (artigos 1682 nº4 do CCivil e 1687 nº2 do CCivil).

Assim, neste caso aderimos à fundamentação da sentença, sendo que ocorreram levantamentos de valores comuns pelo cônjuge administrador de contas solidárias, e deve incluir-se na relação de bens comuns esses valores por forma a existir essa compensação."

[MTS]



27/01/2025

Apoio à investigação (29)


Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering

O Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering (Código de Processo Civil neerlandês) pode ser consultado aqui. Uma tradução inglesa da referido Wetboek, bem como um Glossário da Terminologia Processual, encontram-se aqui.



Jurisprudência 2024 (92)


Processo de inventário;
direito à prova


1. O sumário de RP 21/3/2024 (2886/22.9T8STS-A.P1) é o seguinte:

I - O direito à prova constitucionalmente reconhecido (art. 20.º da CRP) faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como, também, para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios.

II - O direito à prova implica que as partes tenham liberdade para demonstrar quaisquer factos do processo, mesmo que não tenham o respetivo ónus da prova.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O apelante Cabeça de Casal refere que relacionou, na verba nº 3 da relação de bens apresentada, “Saldo da ... nº ..., no Banco 2..., SA - € 65.000,00”. E que os interessados CC, DD e EE apresentaram reclamação à relação de bens que, quanto à verba nº 3, foi do seguinte teor: “Não aceitam a totalidade da verba nº 3, porquanto a falecida AA era dona de € 21.666,67, ou seja, 1/3 da verba 3; a referida conta bancária tem 3 titulares (falecida AA, interessada DD e EE) pertencendo o saldo às 3, em partes iguais, ou seja, € 21.666,67 a cada uma delas (€ 65,000:3).

Alega que na resposta à reclamação pugna pela consideração de que todo o dinheiro dessa conta pertencia à sua mãe inventariada nos termos acima referidos e requereu a produção de prova documental nos seguintes termos: “Requer a V. Exª a notificação do Banco 2..., S.A., agência de Santo Tirso, na Avenida ..., ..., ... Santo Tirso, para informar os autos de qual a proveniência dos € 65.000,00 existentes na ... nº ..., designadamente, quando e de que outra conta foi transferido esse montante e quem eram os titulares da conta de origem.”

O tribunal deferiu essa diligência e foi realizada a 12 de junho de 2023, a inquirição da testemunha indicada pelo Cabeça de Casal, sendo que, e resulta que foi enviada notificação nessa data do teor do segundo oficio do banco.

Nessa informação, o Banco 2... veio dizer que o valor da conta da verba 3 foi proveniente da liquidação de Depósitos a Prazo que constavam na mesma, titulada na proporção de 1/3 pela falecida anteriormente identificada.

Mais referiu o Banco 2... que a proveniência foi por liquidação total do DP ..., em 23/5/2019, pelo valor de € 16.000,00 e por liquidação total do DP ..., em 26/6/2019, pelo valor de € 50.000,00, o que deu origem à constituição do Depósito a Prazo ... nº ..., em 26/6/2019, no valor de € 66.000,00.

Refere que perante o predito oficio juntou a 26/6/2013 requerimento (refª CITIUS 45953063) no qual alegou que essas operações foram meras alteração do tipo de produto bancário em que os valores foram aplicados, pelo que nada comprova sobre a origem inicial dos valores existentes nessa conta. E requereu, em nome da descoberta da verdade material, que fosse novamente notificado o Banco 2..., SA, para informar os autos da proveniência daqueles depósitos a prazo e para comprovar o rasto do dinheiro, desde a sua entrada em conta titulada pela inventariada, Srª AA.

Alega que sobre este requerimento, secundado por requerimento do interessado FF, não recaiu qualquer despacho do Meritíssimo Juiz “a quo” que, pura e simplesmente, o ignorou, dele fazendo tábua rasa e foi proferida a decisão recorrida no dia 28/6/2023 (dois dias após o seu requerimento a pedir diligências de prova adicionais).

Alega que face à informação do Banco 2..., SA, da qual constavam operações realizadas dentro da mesma conta e não a origem inicial dessa conta, o ora recorrente requereu que esse Banco prestasse novas e mais completas informações sobre a origem do dinheiro, designadamente de que outras contra proveio de início e não de meras operações tituladas dentro da mesma conta.

Conclui que o tribunal recorrido violou o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 1110º do Código de Processo Civil, uma vez que, relativamente à verba nº 3, ainda não se encontravam realizadas todas as diligências instrutórias necessárias que habilitassem o julgador a resolver todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, estando em causa o valor de € 44.000,00. E que a não consideração do requerimento probatório atempadamente apresentado pelo ora recorrente constitui clara preterição do seu direito a ver o processo devidamente instruído com a produção de todas as provas requeridas, o que constitui violação da lei.

Peticiona, assim a revogação do supracitado despacho de saneamento, no segmento referente à verba 3), devendo os autos baixar à 1ª Instância para que o Meritíssimo Juiz “a quo” se pronuncie sobre o requerimento probatório apresentado pelo ora recorrente e determine a notificação do Banco 2..., SA para prestar as informações completas solicitadas, designadamente qual o origem inicial do dinheiro existente na conta, de forma a permitir provar a alegação do ora recorrente de que as interessadas DD e EE nunca efetuaram qualquer depósito ou transferência para a constituição inicial daquela conta e de que o dinheiro existente nessa conta pertencia à inventariada AA, na totalidade.

*
As partes podem oferecer ou requerer quaisquer provas (licitas) que entendam necessárias para provar os factos que alegam em sustentação dos direitos afirmados, ou para contraprova dos factos aduzidos pela contraparte que ponham em crise tais direitos.

Nos termos do artigo 20 da Constituição da República a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegido, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

O direito à prova constitucionalmente reconhecido (art. 20.º da CRP) faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como, também, para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios.

Esta acepção ampla do direito á jurisdição levou á consagração do direito a um processo equitativo que implica, por um lado a igualdade das partes (principio do contraditório e principio da igualdade de armas) e por outro lado á licitude das provas e fundamentação da decisão.

Pugnamos como Lebre de Freitas (in Introdução ao Processo Civil, 3 ed. pág. 124 a 125) de que à concepção restrita do princípio do contraditório (direito de pronuncia sobre o pedido e prova) substitui-se hoje uma noção mais lata de contrariedade que garante uma participação efectiva das partes ao influírem em todos os elementos de facto ou provas ou questões de direito. Conforme refere Lebre de Freitas: «O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência á actuação alheia, para passar a ser influência no sentido positivo do direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.».(sic)

No plano da prova o princípio do contraditório exige que às partes seja facultada a proposição de todos os meios de prova relevantes e que a admissão das provas tenha lugar com audiência contraditória de ambas as partes e que se possam pronunciar sobre a apreciação das provas produzidas por si e pela parte contrária.

Conforme refere o citado autor (obra citada, pág. 175 a 177) a prova dos factos nos termos do artigo 411 do CPCivi deixou de ser monopólio das parte, tendo o juiz o dever de realizar as diligências necessárias ao apuramento da verdade (principio do inquisitório).

O princípio da aquisição processual (artigo 413 do CPcivil) e o princípio do inquisitório em matéria de prova (artigo 411 do CPC), faz com que a doutrina prefira denomina-lo ónus de iniciativa da prova, distinguindo-o do ónus da prova. A parte suportará as consequências desvantajosas decorrentes de não provar quer por sua iniciativa, quer por iniciativa da parte contrária ou oficiosa um facto que lhe é favorável.

Tal implica que ter o ónus da prova não significa que tenha o exclusivo da prova.

Estamos perante factualidade que exige prova documental a juntar eventualmente pelo Banco (dentro daquilo que tenha conhecimento) para ser demonstrada e que o tribunal não se pronunciou sobre o requerimento do cabeça de casal no qual o mesmo expressamente solicitou a realização de diligências de prova.

Pelo exposto, verificamos que o julgador devia-se ter pronunciado sobre o requerimento do cabeça de casal e determinado a realização da diligência de prova requerida.

A omissão do despacho ou notificação para juntar esse documento ou informação por parte do Banco, constitui nulidade processual porquanto trata-se de um acto que a lei prescreve como essencial ao bom julgamento da causa e caso não ocorra tem influência no exame ou na decisão da causa. Essa nulidade nos termos do artigo 662º nº 2 c) do C.P.C. é do conhecimento oficioso pela Relação.

Estamos perante a uma omissão que se revela essencial para a resolução do litígio, dado que se trata de factualidade controvertida e que poderá ser relevante face á necessidade de se considerar as várias posições jurídicas.

Assim, deve-se admitir a realização de prova tal como pedido pelo cabeça de casal."

[MTS]