Processo especial de revitalização; administrador judicial provisório;
requerimento da insolvência; contraditório do devedor
1. O sumário de STJ 17/11/2015 (801/14.2TBPBL-C.C1.S1) é o seguinte:
I. O requerimento do administrador judicial provisório tendente à declaração de insolvência do devedor no contexto dos nºs 3 e 4 do art. 17º-G do CIRE não equivale ao pedido de insolvência por apresentação do devedor.
II. Não é aplicável, neste caso e a despeito da remissão constante do nº 4, o segmento inicial do art. 28º do CIRE, pelo que não existe reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência.
III. Os nºs 3 e 4 do art. 17º-G do CIRE, ao determinarem a insolvência a requerimento do administrador judicial provisório sem prévia audição judicial do devedor e sem que este tenha aceitado a situação de insolvência, padecem de inconstitucionalidade por violação dos princípios contidos nos nºs 1 e 4 do art. 20º da CRP.
IV. Declarada a insolvência nestas circunstâncias, o recurso contra a decisão não supre a omissão do contraditório, nem cabe legalmente ao devedor a possibilidade de exercer o contraditório subsequente mediante oposição por embargos.
V. Por efeito da referida inconstitucionalidade, impõe-se o exercício do contraditório mediante a aplicação, por analogia, dos art.s 30º e 35º do CIRE.
2. Da exaustiva fundamentação do acórdão retira-se o seguinte:
"Estabelece o nº 3 do referido art. 17º-G que estando o devedor já em situação de insolvência, o encerramento do PER acarreta a sua insolvência a requerimento do AJP. Para tanto, compete ao AJP, após ouvir o devedor e os credores, emitir parecer no sentido da verificação dessa situação, aplicando-se o disposto no art. 28º com as necessárias adaptações.
E de acordo com este art. 28º, a apresentação à insolvência do devedor implica o reconhecimento por parte do mesmo devedor da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial, ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respetivo suprimento.
Uma primeira questão que se põe é a de saber em que dimensão este art. 28º se aplica ao caso, na certeza até de que se trata, como diz a lei, de uma aplicação “com as necessárias adaptações”. Não parece que se possa aplicar a primeira parte da norma, visto que, não sendo o AJP um representante ou substituto do devedor (na realidade, o AJP funciona, por um lado, como um facilitador e fiscalizador do procedimento e, por outro, como um interface com o tribunal), não faz sentido equiparar um tal caso a um reconhecimento por parte do devedor da sua situação de insolvência, que é como quem diz, não faz sentido ver-se na alegação (rectius parecer) do AJP uma confissão dos factos desfavoráveis subjacentes ao pedido de insolvência. O devedor pode não estar de acordo com os fundamentos do parecer do AJP e, como assim, querer contestar o bem fundado do parecer do AJP e do requerimento de insolvência. Como se poderia então falar em reconhecimento da sua situação de insolvência? Dentro desta linha, afigura-se desajustado dizer-se que se trata de insolvência “por apresentação” (como parece sugerir Luís Martins,Insolvência de Pessoas Singulares, I vol., p. 66) ou que o requerimento do AJP “vai equivaler a confissão da situação de insolvência” (Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização, p. 72). Na realidade, do que se trata é bem de um caso específico, em que, a par de outros terceiros legalmente legitimados a requerer a insolvência (art. 20º), surge agora também o AJP. No sentido de que não é aplicável ao caso o segmento inicial do art. 28º, pelo que não existe reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência, pronuncia-se Maria do Rosário Epifânio (O Processo Especial de Revitalização, p. 77). A igual conclusão chega Soveral Martins (Um Curso de Direito da Insolvência, p. 495), expendendo a propósito que nada há na lei que justifique que o AJP possa substituir o devedor na apresentação à insolvência, de sorte que não pode equivaler aquele requerimento à apresentação à insolvência nem pode implicar o reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência. De resto, equiparar o requerimento do AJP a uma apresentação do próprio devedor à insolvência levaria, tal como o art. 17º-G está gizado, a vários outros anacronismos injustificados (aliás violadores do princípio constitucional da igualdade), como seriam o afastamento da possibilidade de requerer a exoneração do passivo restante ou a de requerer a administração da massa insolvente (v. art.s 236º nº 1 e 224º, nºs 1 e 2).
Sendo pois a insolvência requerida por terceiro, o AJP, a questão que se coloca é a de saber se a decisão judicial suscitada pelo parecer e requerimento do AJP deve ou não ser precedida da audição do devedor. Para além do que sempre decorreria do princípio geral contido no art. 3º do CPCivil, a questão é reforçada quando vista à luz do próprio CIRE, na medida em que neste se prevê precisamente que o devedor é sempre citado para deduzir oposição ao pedido de insolvência contra ele formulado (art. 29º, nº 1), só podendo deixar de o ser no caso específico do nº 2 do art. 12º. Acresce que a despeito dos termos literais do nº 3 do art. 17º-G (“o encerramento do processo (…) acarreta a insolvência do devedor”), termos estes que poderiam ser vistos porventura como sugerindo uma inexorabilidade ou inevitabilidade da declaração da insolvência (v. a propósito Filipa Gonçalves, O Processo Especial de Revitalização, in Estudos sobre o Direito de Insolvência, p. 87), julgamos que competirá sempre ao tribunal sopesar os fundamentos factuais alegados pelo AJP no seu parecer e subsumi-los à lei em ordem a concluir ou não pela situação de insolvência do devedor (art.s 154º e 607º do CPCivil). Neste sentido vai tendencialmente Soveral Martins (ob. cit., p. 492), aí onde observa que estando o devedor em situação de insolvência o juiz deve declarar a insolvência, mas o dever estabelecido na lei não significa que o juiz não tenha margem de apreciação[2]. A ser assim, a lógica apontaria para que também ao devedor pudesse ser dada a oportunidade de contraditar a bondade desses fundamentos factuais. Porém, manifestamente que os nºs 3 e 4 do art. 17º-G não preveem a possibilidade do devedor contraditar judicialmente, de facto e de direito, o parecer do AJP. E não apenas não a preveem, como não querem que a audição tenha lugar, como resulta claro da circunstância da insolvência dever ser declarada no prazo de três dias úteis contados a partir da receção da comunicação de que o processo negocial está encerrado. A lei, de cabeça pensada, contenta-se com a audição, a montante, do devedor, audição essa que simplesmente impõe ao AJP (nº 3).
Na literatura doutrinária que tem abordado o assunto, parece prevalecer a ideia de que o direito de defesa do devedor não fica, ainda assim, comprometido. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., p. 174) afirmam a propósito que “não há (…) nenhuma lesão definitiva dos interesses tutelados, visto que, no quadro das regras gerais, a sentença declaratória estará sempre sujeita a impugnação, tanto por via de embargos como de recurso, nos termos consagrados nos art.s 40º e 42º”. Em igual sentido vai Maria do Rosário Epifânio (ob. cit., p. 77), com o acrescento de que a aplicação dos art.s 40º, nº 1 a) e 42º se faria por aplicação analógica. Também João Aveiro Pereira (apudMenezes Leitão, Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 302) afirma que “o juiz só tem de decretar ou não a insolvência, sem audição das partes, pois estas já foram ouvidas pelo AJP, não lhes sendo dado aqui oporem-se à decisão, sem prejuízo de poderem impugnar a sentença, nos termos do art. 40º e seguintes”.
Nuno Casanova e David Sequeira (PER- O Processo Especial de Revitalização, pp. 164 a 167) de igual forma sustentam que se deve aplicar analogicamente ao caso o art. 40º, nº 1 a), isto (p. 166) “para assegurar a constitucionalidade do regime”. Estes autores mostram-se, efetivamente, sensíveis à questão da constitucionalidade da solução legal que passa pela não audição judicial do devedor. Aduzem a propósito o seguinte: “(…) afigura-se discutível a admissibilidade e até mesmo a constitucionalidade da interpretação segundo a qual o administrador judicial provisório poderá – depois de ouvidos os credores e o devedor – requerer a insolvência do devedor, com os mesmos efeitos que teria se fosse o devedor a apresentar-se voluntariamente à insolvência. Com efeito, poderá suceder que, por um lado, o devedor entenda que se encontra solvente, mas, por outro lado, o administrador judicial provisório considere, erradamente, todavia, que o devedor está insolvente. Nesta circunstância, será admissível que o administrador judicial provisório requeira a insolvência com os mesmos efeitos (aceitação e reconhecimento da situação da insolvência) que teria se a insolvência fosse requerida pelo próprio devedor?
Não existirá uma injustificável restrição ao direito de propriedade e ao direito de liberdade empresarial do devedor, a atribuir-se ao administrador judicial provisório o poder de confessar a situação de insolvência do devedor contra a vontade deste último? Por que motivo ficará a decisão de assumir a situação de insolvência nas mãos do administrador judicial provisório, quando não é o titular do património do devedor?
Para assegurar o legítimo direito de defesa do devedor, e obstar à eventual inconstitucionalidade da norma, ter-se-á de admitir que o devedor possa deduzir embargos contra a sentença ou recorrer da mesma. Essa solução é conciliável com o elemento literal do artigo 17°-G. Assim, o administrador judicial provisório deverá requerer a insolvência do devedor - se concluir, claro está, que este se encontra insolvente -, devendo o tribunal decretá-la sem audição e contraditório do devedor e no prazo legalmente fixado. Porém, o devedor poderá deduzir embargos ou recorrer nos termos do disposto nos artigos 40º e 42º”.
Numa visão diferente, Soveral Martins (ob. cit., p. 494), depois de constatar (a evidência de) que a lei não prevê que seja dado prazo para o devedor deduzir oposição, defende que a não audição judicial do devedor posterga o princípio do contraditório, de modo que o normativo subjacente é inconstitucional por violação dos nºs 1 e 4 do art. 20º da CRP. Aduz a propósito que “se o devedor não pode pronunciar-se não lhe é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e sobretudo é violado o seu direito a uma decisão mediante processo equitativo”.
Na jurisprudência das Relações não há consenso sobre a necessidade de conferir ao devedor a possibilidade de contraditar previamente à decisão o requerimento do AJP. Assim, por exemplo, no acórdão da RC de 10 de março de 2015 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 5204/13.3TBLRA-C.C1, relator Fonte Ramos) defende-se que, declarada a insolvência, o devedor poderá deduzir embargos ou recorrer nos termos do disposto nos art.s 40º e 42º, do CIRE, assegurando-se, deste modo, o seu direito de defesa. Aduz-se a propósito que “não vemos como seja possível concluir pelo desrespeito de quaisquer preceitos da lei ordinária ou da lei fundamental [por exemplo, não se vê em que possa ter sido ofendido o art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, que regula o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva], na medida em que a resposta encontrada é a reclamada pela realidade apurada no confronto com os normativos aplicáveis”, e sendo que, mais se aduz, “o devedor faz uso dos mecanismos legais sem outras limitações que as inerentes ao quadro normativo aplicável, e que respeita os seus direitos e deveres como parte (especialmente) interessada no desfecho dos autos”. Diferente entendimento se encontra no acórdão da RP de 26 de março de 2015 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 89/15.8T8AMT-C.P1, relator Leonel Serôdio). Aí se aduz que a unidade do sistema jurídico, concretamente o direito de defesa e a exigência de um processo equitativo consagrados no art. 20º n.º1 e 4 da C.R.P. e o principio do contraditório plasmado nos artigos 29º e 30º do CIRE e 3º do CPC, impedem que se interpretem os artigos 17º G n.º 4 e 28º do CIRE, no sentido de equiparar o parecer do AJP de que o devedor está em situação de insolvência ao reconhecimento da insolvência pelo devedor, quando este declarou no processo de revitalização que não se encontrava insolvente. Nesta caso, conclui o acórdão, tem de lhe ser concedido o direito de se defender e provar a sua solvência, atento o disposto no art. 30º n.º 4 do CIRE, ou ainda que o ativo é superior ao passivo, segundo os critérios do art. 3º n.º 3 do CIRE.
A nosso ver, e tal como decorre deste último acórdão, há que distinguir entre o caso em que, ouvido pelo AJP, o devedor aceita que está em situação de insolvência e o caso em que tal não sucede. No primeiro caso é óbvio que não se justifica o exercício judicial do contraditório, competindo ao tribunal decidir de imediato sobre o requerimento de insolvência. Neste particular caso nenhum desvalor constitucional se poderá endereçar às normas em causa.
Mas não assim no segundo caso. Aqui é constitucionalmente inaceitável que se coarte ao devedor a possibilidade de contrariar os fundamentos do parecer e do requerimento do AJP."
3. Num plano geral, a audição de uma parte antes da realização de um acto nada tem a ver com o contraditório dessa parte depois da realização desse acto. A audição prévia não pode constituir fundamento para retirar esse contraditório. Basta lembrar a audição prévia da parte de molde a evitar uma decisão-surpresa: não é pela circunstância de a parte ter sido previamente ouvida pelo tribunal que não poderá impugnar a decisão deste órgão, nomeadamente com o argumento de que os termos em que o juiz proferiu a sua decisão nada têm a ver com os termos em que se realizou a audição prévia.
Nesta óptica, mesmo a aceitação pelo devedor de que se encontra em situação de insolvência na sequência da sua audição realizada pelo administrador judicial provisório não parece constituir fundamento para que lhe possa ser retirado o contraditório depois da apresentação do requerimento de insolvência por esse administrador. Isto porque, para além do mais, nunca pode estar garantido que o requerimento de insolvência reproduz os termos da audição prévia do devedor e as condições em que este devedor aceitou, perante aquele administrador, encontrar-se em situação de insolvência. Imagine-se, por exemplo, que o requerimento do administrador judicial provisório invoca dívidas que o devedor não reconheceu ou até negou perante esse administrador.
Sendo assim, parece dever concluir-se que deve estar assegurado ao devedor o exercício do contraditório, mesmo quando este devedor tenha sido previamente ouvido pelo administrador judicial provisório e, no âmbito dessa audição, tenha aceitado que se encontra em situação de insolvência.
MTS