"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/01/2016

Jurisprudência (270)


Processo de insolvência; reclamação de créditos; graduação de créditos; 
direito de retenção; uniformização de jurisprudência; aplicação imediata; 
tutela da confiança; presunções naturais; competência do STJ

 
I. O sumário de STJ 17/11/2015 (1999/05.6TBFUN-I.L1S1) é o seguinte:

1. O facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter proferido um AUJ fixando a interpretação de um determinado preceito legal, no caso, o alcance e o âmbito da garantia real direito de retenção, conferida pelo art. 755º, nº 1, f), do Código Civil, e sua articulação com o direito insolvencial, não é mais que o exercício de uma competência para que o Supremo Tribunal está vocacionado como tribunal de revista, tendo em conta a função uniformizadora da jurisprudência, que, não sendo fonte de direito, nem tendo os Acórdãos Uniformizadores a força dos assentos (instituto que foi revogado), a sua doutrina tirada em plenário das secções cíveis, tem uma particular força persuasiva e clarificadora, sendo aplicável imediatamente.

2. Não se tratando de questão nova a de saber se se deve operar com o conceito de consumidor, para definir os direitos em apreciação no recurso de revista do Banco recorrente, credor hipotecário e dos recorridos promitentes compradores tradiciários de fracções prediais, é mister interpretar a norma do art. 755º, nº 1, f), do Código Civil, com o sentido acolhido no AUJ nº 4/2004, de 20.3.2014, já que, tratando-se de aplicação do direito, o Tribunal não pode deixar de proferir decisão.

3. Tendo o Acórdão da Relação sido proferido em 26.3.2015, poderia e, salvo o devido respeito, deveria, ao interpretar e decidir se existia ou não o controvertido direito de retenção, ter aplicado a doutrina emergente da uniformização, mesmo não tendo sido alegada a qualidade de consumidor pelos promitentes-compradores ou pelo ora recorrente.

4. Poderia (e este Tribunal não pode), tê-lo feito com base em presunção judicial a partir do facto de os Recorridos serem pessoas singulares, não identificadas no processo como comerciantes – art. 13º, nº 1, do Código Comercial –, e nessa veste, terem adquirido seis fracções prediais que revenderam, mesmo se em relação a algumas elas se tivesse provado ter existido traditio, e posse conferida por eles a terceiros.

5. O conceito de consumidor que o referido AUJ acolheu foi o conceito restrito, funcional, segundo o qual consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transaccionado, ou do serviço adquirido, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa.

6. Não estando provada a qualidade de consumidor dos recorridos, o seu crédito não goza de direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº 1, f), do Código Civil e do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) nº 4/2014, de 20.03.2014, no contexto da reclamação de crédito, emergente do valor actualizado das seis fracções autónomas que prometeram comprar, e que a insolvente lhes prometeu vender, e consequentemente, o crédito que estes reclamaram não prevalece sobre o crédito hipotecário do Banco, devendo ser graduado como crédito comum.
 


II. a) O Ac. STJ 4/2014, de 19/5, determinou o seguinte: "No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil." 

Na declaração de voto do Cons. Lopes do Rego proferida neste Ac. STJ é suscitado um problema para o qual se tem vindo a chamar a atenção neste Blog: o da eficácia temporal dos acórdãos de uniformização (cf. Aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência). Não havendo nenhuma modelação pelo STJ dos efeitos temporais do acórdão de uniformização (cabendo perguntar se, pelo menos em certos casos, essa modelação não devia ser estabelecida), a doutrina desses acórdãos é de aplicação imediata (se assim se pode dizer) às acções pendentes.

Esta aplicação imediata origina o problema que o Cons. Lopes do Rego refere: essa aplicação pode criar dificuldades às partes que alegaram factos e utilizaram argumentos num contexto jurídico diferente daquele que resultou da uniformização de jurisprudência. O que não se acompanha é a conclusão que parece estar implícita na chamada de atenção do Cons. Lopes do Rego: tal como tem de suceder quando, durante a pendência da causa, entra em vigor uma lei nova de aplicação imediata que altera os pressupostos de facto ou de direito do objecto do processo, também quando é proferido um acórdão de uniformização de jurisprudência de aplicação imediata tem de ser assegurada às partes a faculdade de adaptarem as suas alegações em matéria de facto e de direito ao novo enquadramento jurídico da causa. O que não pode suceder é que as partes aleguem num certo contexto jurídico e o tribunal decida num contexto distinto.

Hoje em dia, o poder de adequação formal concedido ao juiz (cf. art. 547.º CPC) permite acomodar facilmente as alterações impostas à tramitação da causa pela necessidade de assegurar às partes, em função de uma lei nova de aplicação imediata ou do proferimento de um acórdão de uniformização, a faculdade de alegarem outros factos ou de utilizarem outros argumentos.

b) O acórdão em análise teve de resolver a problema de saber se determinados promitentes-compradores gozavam de um direito de retenção sobre seis fracções autónomas a construir num prédio. Para resolver esta questão "de nodal importância", o STJ confrontou-se com a publicação do Ac. STJ 4/2014 depois das impugnações deduzidas (em 2005) contra a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos apresentada pelo administrador de insolvência, mas antes do proferimento do acórdão da Relação recorrido (que se verificou em 26/3/2015). 

Perante a alegação pelos recorridos (promitentes-compradores aos quais a Relação reconheceu um direito de retenção) de que a pretensão do recorrente de que o STJ considere no seu julgamento o Ac. STJ 4/2014 constitui uma "questão nova", o STJ afirmou no acórdão em análise o seguinte:

"É um facto que nos processos de insolvência intentados na vigência do CIRE, mas em que a reclamação de créditos ocorreu em data anterior à da prolação do AUJ de 2014, as partes reclamantes de créditos, no contexto de contratos-promessa em curso de execução, não alegam a qualidade de consumidor, conceito que foi determinante para na Uniformização se atribuir direito de retenção ao abrigo do art. 755º, nº1, do Código Civil. 

Alegam, até, como fazem os Recorridos – “Não obstante, observe-se ainda que tal como no caso reapreciado pelo referido recentíssimo acórdão de 30/04/2015, a reclamação do crédito dos ora Recorridos foi feita muito antes da prolação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) nº4/2014 – tirado a 20/03/2014, mas publicado no D.R. a 19/05/2014.

Concretamente, foi feita em 2005. Quando, portanto, não era razoável esperar que os reclamantes de créditos em processos de insolvência que se arrogassem a garantia decorrente do direito de retenção, pudessem contar com o ónus de alegação e prova de um requisito suplementar da constituição daquele direito, que não consta minimamente expresso na letra da norma que o institui – a alínea f) do n° 1 do artigo 755° do C. Civil. Qual seja a qualidade de “consumidor” (tenha este conceito o alcance que tiver) do promitente-comprador que obteve a traditio”. 

No fundo o que alega é que os promitentes-compradores tradiciários não podem ser surpreendidos pela doutrina uniformizadora, porque, ao tempo da reclamação de créditos, não poderiam sequer prever que, mais tarde (no caso os contratos-promessa foram celebrados em 8.6.2000), tendo os Recorridos promitentes-compradores vendido a terceiros duas dessas fracções, nos anos de 2002 e 2003, tendo a reclamação de créditos sido apresentada em 2005. 

Com o devido respeito, este argumento, implicado na consideração de que constitui surpresa e questão nova, o Tribunal apreciar se existe o requisito de protecção conferida apenas ao tradiciário consumidor, acolhido no citado AUJ, não colhe. 

Do que se trata é de aplicação do direito, da interpretação da norma do art. 755º, nº 1, f), do Código Civil, no contexto da insolvência do promitente comprador tradiciário, num contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel, tendo ocorrido, entretanto, a insolvência do promitente-vendedor.

O facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter proferido um AUJ fixando a interpretação de um determinado preceito legal, no caso o alcance e o âmbito da garantia real direito de retenção, conferida pelo art. 755º, nº 1, f), do Código Civil, e sua articulação com o direito insolvencial, não é mais que o exercício de uma competência para que o Supremo Tribunal está vocacionado como tribunal de revista, tendo em conta a função uniformizadora da jurisprudência, que, não sendo fonte de direito, nem tendo os Acórdãos Uniformizadores a força dos assentos (instituto que foi revogado), a doutrina tirada no plenário das secções cíveis tem uma particular força persuasiva e clarificadora.

Não sendo de alterar ou de questionar, a doutrina do AUJ é aplicável imediatamente. [...]

Rematando e para firmar entendimento de que não se trata de questão nova a de saber se se deve operar com o conceito de consumidor para definir os direitos em sede apreciação no recurso (do Banco recorrente, credor hipotecário e dos recorridos), entendemos que é mister interpretar a norma do art. 755º, nº1, f) do Código Civil, com o sentido acolhido no AUJ e que, tratando-se de aplicação do direito, o Tribunal não pode deixar de proferir decisão.

É bem certo que não consta do processo se os promitentes-compradores eram ou não consumidores, quiçá pelas razões invocadas pelos Recorridos nas suas contra-alegações, o facto é que, tendo o Acórdão da Relação sido proferido em 26.3.2015, poderia e, salvo o devido respeito, deveria ao interpretar e decidir se existia ou não o controvertido direito de retenção, ter aplicado a doutrina emergente da uniformização, mesmo não tendo sido alegada a qualidade de consumidor pelos promitentes-compradores ou pelo ora recorrente.

Poderia (e este Tribunal não pode) tê-lo feito com base em presunção judicial [...] a partir do facto dos Recorridos serem pessoas singulares não identificadas no processo como comerciantes – art. 13º, nº 1, do Código Comercial – terem adquirido seis fracções prediais que revenderam, mesmo se em relação a elas se tivesse provado ter existido traditio, e posse conferida por eles a terceiros."

c) É com muita dificuldade que se pode acompanhar esta orientação do STJ, que, no fundo, se traduz no seguinte:

-- O STJ reconhece que um aspecto essencial para a aplicação (ou não aplicação) do Ac. STJ 4/2014 -- o da qualidade de consumidor dos recorridos -- não foi nem alegado por estas partes, nem discutido nas instâncias;

-- Ainda assim, o STJ reconhece que a doutrina do Ac. STJ 4/2014 é de aplicação imediata ao caso em análise (e até censura a Relação por não ter considerado este acórdão uniformizador na sua decisão).

Perante as particularidades do caso, supõe-se que o que o STJ deveria ter feito era uma de duas coisas: 

-- Modelar, ele próprio, a aplicação no tempo do Ac. STJ 4/2014, entendendo -- por exemplo -- que a tutela da confiança das partes (neste caso, dos recorridos) não é compatível com a aplicação imediata da doutrina desse acórdão ao caso sub iudice;

-- Entender que o Ac. STJ 4/2014 é de aplicação imediata ao caso sub iudice e, por isso mesmo, mandar baixar o processo às instâncias para que nestas possa haver, se as partes assim o pretenderem, uma ampliação da matéria de facto relevante.

Não tendo feito nem uma coisa, nem outra, o STJ não atribuiu nenhuma relevância à muito sensível problemática sobre a aplicação imediata dos acórdãos de uniformização às acções pendentes. Deve acrescentar-se que a problemática não é menos sensível quando se trata da aplicação desses acórdãos a situações constituídas antes da pendência de qualquer acção. Em ambos os casos, o que está em jogo é a tutela da confiança de alguém que, antes da uniformização da jurisprudência, actuou de uma forma que se mostra ser desconforme com o sentido da uniformização posterior.
 
III. O acórdão afirma que o STJ não pode utilizar presunções judiciais. É uma orientação que não se acompanha. 

É certo que o STJ não pode considerar matéria de facto não adquirida nas instâncias (cf. art. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 1, CPC), mas não é isso que está em causa quando, com base numa presunção judicial, se trata de inferir de certo facto outro facto. Pode não estar adquirido nas instâncias que numa noite de Janeiro a temperatura estava baixa, mas nada pode impedir que o STJ conclua, a partir do facto, adquirido nas instâncias, de que o acto foi praticado numa noite de Janeiro, que, nesse momento, a temperatura era baixa.

MTS