"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/01/2016

Declaração de inconstitucionalidade do art. 857.º, n.º 1, CPC: impõe-se uma ressalva para a injunção europeia?



I. 1. O Reg. 1896/2006 criou o procedimento de injunção de pagamento europeia. O art. 22.º Reg. 1896/2006 regula a "recusa de execução" da injunção de pagamento europeia, estabelecendo que, a pedido do requerido (agora executado), essa execução é recusada pelo tribunal competente do Estado-membro de execução nas seguintes condições:

-- Se a injunção de pagamento europeia for incompatível com uma decisão anteriormente proferida em qualquer Estado-Membro ou país terceiro, desde que a decisão anterior diga respeito à mesma causa de pedir e às mesmas partes e reunir as condições necessárias ao seu reconhecimento no Estado-Membro de execução e ainda desde que não tiver sido possível alegar a incompatibilidade durante a acção judicial no Estado-membro de origem (art. 22.º, n.º 1, Reg. 1896/2006);

-- Se, e na medida em que, o requerido tiver pago ao requerente o montante reconhecido na injunção de pagamento europeia (art. 22.º, n.º 2, Reg. 1896/2006).

Sobre este regime importa acentuar o seguinte:

-- É pacífica a posição de que o disposto no art. 22.º, n.º 1 e 2, Reg. 1896/2006 só é aplicável quando a execução da injunção de pagamento europeia ocorre num Estado diferente do Estado de origem (cf. Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht, 9.ª ed. (2011), Art. 22 EuMVVO 1);

-- É unânime a orientação de que, no âmbito de aplicação destes fundamentos, o regime é exclusivo, pelo que não é invocável nenhum outro regime proveniente do direito dos Estados-membros que seja incompatível com ele (cf. Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht, 9.ª ed. (2011), Art. 22 EuMVVO 15);

-- Consequentemente, pode concluir-se (i) que os Estados-membros podem estabelecer um regime específico de oposição quando a execução ocorre no próprio Estado de origem da injunção de pagamento europeia e (ii) que, fora dos fundamentos constantes do art. 22.º, n.º 1 e 2, Reg. 1896/2006, os Estados-membros têm liberdade para estabelecer outros fundamentos de oposição à execução baseada numa injunção de pagamento europeia proveniente de um outro Estado-membro.

2. Perante este regime europeu, o legislador alemão fez o seguinte:

-- Estabeleceu no § 1095 (2) ZPO, quanto à execução de uma injunção de pagamento europeia emitida na Alemanha, a seguinte regra: "As excepções que respeitam à própria pretensão só são admissíveis se os fundamentos em que se baseiam se constituíram depois da citação da injunção de pagamento europeia e já não puderem ser feitas valer através da declaração de oposição estabelecida no art. 16.º do Regulamento";

-- Introduziu no § 1096 (2) ZPO, no âmbito da execução de uma injunção de pagamento europeia proveniente de um outro Estado-membro, uma remissão para o referido § 1095 (2) ZPO.

Deste regime resulta, com clareza, que o legislador alemão só aceita que o executado invoque, na execução contra ele proposta, excepções oponíveis à pretensão exequenda que não devam considerar-se precludidas por já poderem ter sido alegadas no procedimento de injunção de pagamento.

3. Ao nível legislativo, a situação vigente em Portugal é substancialmente diferente. Com efeito:

-- O legislador (como -- infelizmente -- é habitual quanto aos regulamentos europeus) não construiu nenhum regime interno de aplicação do Reg. 1896/2006;

-- O art. 857.º, n.º 1, CPC -- que, no âmbito da oposição à execução baseada em requerimento de injunção, manda aplicar, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 729.º CPC -- foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral (TC 12/5/2015 (264/2015)); desta declaração resulta que deixou de poder ser aplicável na execução qualquer preclusão quanto às excepções invocáveis pelo requerido (agora executado) no anterior procedimento de injunção.

4. a) Aparentemente, da conjugação destes factores -- ausência de regime de aplicação do Reg. 1896/2006 e declaração de inconstitucionalidade do art. 857.º, n.º 1, CPC -- resulta que o requerido num procedimento de injunção de pagamento europeia pode invocar, numa execução pendente em Portugal, qualquer excepção contra a pretensão exequenda, ainda que a mesma pudesse (e devesse) ter sido invocada naquele procedimento.

Basta o confronto desta conclusão com o acima descrito regime alemão para demonstrar o seu carácter anómalo e a sua inaceitabilidade. Se esta fosse a conclusão a extrair do actual ordenamento jurídico português, haveria que inferir que Portugal não só estaria desalinhado dos demais países europeus, como estaria a violar o direito europeu (e a poder ser responsabilizado por esta violação).

b) Recorde-se que a preclusão das excepções invocáveis no procedimento de injunção de pagamento europeia, além de ser uma condição de eficácia prática deste procedimento, tem manifesto apoio no regime instituído pelo Reg. 1896/2006.

Antes do mais, importa ter presente que, conforme se estabelece no art. 22.º, n.º 3, Reg. 1896/2006, a injunção de pagamento europeia não pode, em caso algum, ser reapreciada quanto ao mérito no Estado-membro de execução. Esta proibição da révision au fond obsta a que o tribunal de execução possa voltar a pronunciar-se sobre a causa e impede que esse tribunal possa transformar, por exemplo, uma condenação numa absolvição ou uma condenação sem restrições numa condenação in futurum ou condicional. Basta, por isso, a consagração daquela proibição para implicar a preclusão das excepções não alegadas no anterior procedimento de injunção de pagamento europeia.

Acresce ainda que, depois da citação ou notificação da injunção de pagamento europeia, o requerido tem 30 dias para apresentar uma declaração de oposição (art. 16.º, n.º 1 e 2, Reg. 1896/2006). Se o requerido apresentar essa declaração, a acção prossegue nos tribunais competentes do Estado-membro de origem, de acordo com as regras do processo civil comum, a menos que o requerente tenha expressamente solicitado que, nesse caso, se ponha termo ao processo (art. 17.º, n.º 1, § 1.º, Reg. 1896/2006).

Mesmo depois de decorrido aquele prazo de 30 dias, o requerido pode, em certas circunstâncias, pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia no Estado de origem (art. 20.º, n.º 1 e 2, Reg. 1896/2006). Para isso, é nomeadamente necessário que:

-- O requerido tenha sido citado por um meio que não prova a recepção da citação pelo requerido (como é o caso do mero depósito da citação da injunção de pagamento europeia na caixa de correio do requerido) e que, além disso, esse requerido prove que essa citação não lhe permitiu, sem qualquer culpa própria, preparar a defesa; se o tribunal decidir que se justifica a reapreciação, a injunção de pagamento europeia é declarada nula (art. 20.º, n.º 3, § 2.º, Reg. 1896/2006);

– A injunção para pagamento tenha sido emitida de forma claramente indevida, tendo em conta os seus requisitos ou outras circunstâncias excepcionais (art. 20.º, n.º 2, Reg. 1896/2006); é o que sucede, por exemplo, se a injunção tiver sido emitida fora do âmbito de aplicação do Reg. 1896/2006 (cf. art. 2.º Reg. 1896/2006) ou com base em informações falsas fornecidas no formulário de requerimento (consid. (25), § 4.º, Reg. 1896/2006).

Compreende-se assim que, se o requerido não tiver aproveitado nenhuma destas oportunidades e nunca tiver deduzido nenhuma oposição no procedimento de injunção de pagamento europeia, não possa vir a invocar, na posterior execução dessa injunção de pagamento, uma excepção que poderia ter alegado numa daquelas ocasiões.

c) A circunstância de a execução já se encontrar pendente não impede que o requerido peça, no Estado de origem, a reapreciação da injunção de pagamento europeia nos termos do art. 20.º, n.º 1 e 2, Reg. 1986/2006: segundo o disposto no art. 23.º Reg. 1896/2006, esse pedido pode conduzir a que o tribunal da execução, em última análise, suspenda a execução pendente (como resulta da formulação do preceito, trata-se apenas da concessão de um poder discricionário ao tribunal da execução).

Claro é, no entanto, que este regime confirma a regra de preclusão acima referida: se o requerido tem razões para pedir a reapreciação da injunção, é isso que deve fazer, e não procurar deduzir oposição na execução pendente. O estabelecido no art. 23.º Reg. 1896/2016 demonstra que não é concedida ao executado a alternativa entre pedir a reapreciação da injunção de pagamento ou opor-se à execução: se não pedir aquela reapreciação, não pode opor-se, com o mesmo fundamento, à execução. A eventual oposição à injunção de pagamento europeia deve ser deduzida no Estado de origem, e nunca no Estado da execução, pelo que está sempre excluído que a oposição possa ser deduzida no Estado da execução.

d) As soluções acima descritas são consequência do chamado "princípio do Estado de origem" que orienta o regime instituído pelo Reg. 1896/2006: tudo o que pode afectar a injunção de pagamento europeia deve ser discutido nos tribunais do Estado de origem (e não nos tribunais do Estado da execução). A solução está longe de, sob um ponto de vista de política legislativa, ser indiscutível, mas é aquela que se impõe ao intérprete e ao aplicador do Reg. 1896/2006.

5. Posto isto, a questão que se coloca é a de saber como compatibilizar o actual regime interno português com a exigência da preclusão das excepções não alegadas no procedimento de injunção de pagamento europeia. Dado que, como se julga ter demonstrado, não é possível defender a não preclusão dessas excepções, parece só restar uma solução: a de que se impõe uma interpretação restritiva da declaração de inconstitucionalidade do art. 857.º, n.º 1, CPC, entendendo que a mesma não pode abranger a execução baseada na injunção de pagamento europeia.

II. A latere das reflexões anteriores, cabe concluir que a análise do regime da injunção de pagamento europeia torna extremamente duvidosa a declaração de inconstitucionalidade do art. 857.º, n.º 1, CPC realizada pelo TC.

Recorde-se o seguinte:

-- Como acima se referiu, o Reg. 1896/2006 aceita que o requerido seja citado através da mero depósito da citação na sua caixa de correio (cf. art. 14.º, n.º 1, al. c), Reg. 1896/2006);

-- Apenas nos casos em que o meio de citação da injunção de pagamento europeia não prova a sua recepção pelo requerido, pode esta parte pedir a reapreciação dessa injunção (cf. art. 20.º, n.º 1, al. a), Reg. 1896); é assim possível concluir que, salvo se ocorrer o motivo de força maior ou a circunstância excepcional referidos no art. 21.º, n.º 1, al. b), Reg. 1896/2006, o requerido não pode pedir essa reapreciação se, por exemplo, a citação se encontrar comprovada por aviso de recepção assinado pelo requerido (cf. art. 12.º, al. a), Reg. 1896/2006).

Em comparação com este regime europeu, o regime interno sobre a injunção não pode ser considerado menos garantístico. Basta atentar no seguinte:

-- Tal como sucede na injunção de pagamento europeia, a citação do requerido pode ser realizada por via postal; no entanto, se houver domicílio convencionado entre as partes, a realização da citação nesse domicílio (cf. art. 1.º-A RPOP) é, sem dúvida, mais garantistica do que o depósito da citação na caixa de correio do requerido que é considerada suficiente pelo Reg. 1896/2006;

-- Segundo o disposto no art. 857.º, n.º 2, CPC, o requerido (agora executado) pode invocar, sem qualquer preclusão, qualquer fundamento de oposição à execução se demonstrar que o não fez no procedimento de injunção devido a justo impedimento; este regime é mais garantístico que o regime da injunção de pagamento europeia, dado que, enquanto neste, o requerido só pode pedir a reapreciação da injunção se a citação não assegurar a prova da sua recepção, no regime interno o requerido pode invocar o justo impedimento qualquer que tenha sido a modalidade da sua citação.

Perante isto, supõe-se que a conclusão se impõe: se o disposto no art. 857.º, n.º 1, CPC é inconstitucional, então também a preclusão das excepções na execução que decorre do Reg. 1896/2006 é incompatível com a CRP. Pode sempre alegar-se que, dos 27 Estados da União Europeia que são membros do Reg. 1896/2006 (a Dinamarca não participou na aprovação no Reg. 1896/2006), Portugal é o único que avalia correctamente o regime da injunção de pagamento europeia e que descobre nele incompatibilidades com valores constitucionais. Mas talvez seja mais avisado não pensar que somos os únicos a vislumbrar o que outros até agora não foram capazes de descobrir.

MTS