"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/01/2016

Caso julgado, exequibilidade e inconstitucionalidade: um apontamento comparativo (e um desafio)


1. Em Lippross, Zwangsvollstreckungsrecht, 11.ª ed. (2014), 269 (n.º 713) encontra-se a seguinte afirmação:

"Segundo os §§ 79 II 3, 95 III 3 BVerfGG [Lei do Tribunal Constitucional], a execução é inadmissível quando o título executivo se basear numa norma que posteriormente tenha sido declarada nula pelo BVerfG [Tribunal Constitucional]. A inadmissibilidade deve ser feita valer, por meio da aplicação analógica do § 767 [ZPO], através da oposição à execução (Vollstreckungsgegenklage). O mesmo vale quando a pretensão titulada se basear numa interpretação da lei que o BVerfG tenha considerado ser inconstitucional (cf. BVerfG WM 2006, 23; BGH FamzR 2006, 1024; Zöller/Herget § 767 n.º 12; Prütting/Gehrlein/Scheuch § 767 n.º 26 [=Prütting/Gehrlein/Scheuch (2015) § 767 n.º 27])."

Isto é: no direito alemão, é admissível fundamentar a oposição à execução na inconstitucionalidade da norma ou da interpretação da norma em que se baseou a sentença que constitui o título executivo (sobre a aplicação analógica do § 79 II 3 BVerfG a esta última situação, cf. BVerfGE 115, 51 e 61 ss.; em sentido idêntico, além dos referidos na transcrição, cf. MünchKommZPO/Schmidt/Brinkmann (2012), § 767 n.º 70). Note-se que o regime é aplicável mesmo que a decisão já se encontre transitada em julgado.

Para melhor compreensão do regime alemão, importa acrescentar que, segundo o disposto no § 79 II 2 BVerfGG, as decisões que já não são impugnáveis, mas que ainda não se encontram executadas, são abrangidas pela declaração de inconstitucionalidade da norma ou da interpretação da norma nelas aplicadas. Em concreto: a execução dessas decisões passa a ser inadmissível e esta inadmissibilidade deve ser apreciada ex officio (cf. Mauz/Schmidt-Bleibtreu/Klein/Bethge, BVerfGG (2015), § 79 n.º 6 e 57). A parte prejudicada não pode sequer fazer valer -- acrescenta o § 79 II 4 BVerfGG -- nenhuma pretensão baseada no enriquecimento sem causa.

2. A primeira reacção de um jurista português perante o descrito regime alemão é certamente a de que nada de semelhante vigora no ordenamento jurídico lusitano. Como bem se sabe, de acordo com o disposto no art. 282.º, n.º 3, CRP, a declaração de inconstitucionalidade com força geral de uma norma não abrange, com excepção da matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social, os casos julgados. Isto é: essa declaração de inconstitucionalidade não tem uma eficácia retroactiva que seja susceptível de destruir o caso julgado da decisão que aplicou a norma entretanto declarada inconstitucional (para maiores desenvolvimentos, cf. P. Otero, Ensaio sobre o Caso Julgado Inconstitucional (1993), 82 ss.). Logo -- concluir-se-á --, a execução da respectiva decisão também não pode ser afectada pela declaração de inconstitucionalidade. 

Realisticamente, há que aceitar que dificilmente se encontra um jurista português que esteja disposto a ir além da afirmação de que "é muito duvidoso, em face da legislação processual, que se possa admitir a oposição à execução de uma sentença transitada em julgado com fundamento na superveniência da declaração de inconstitucionalidade da norma aplicada pelo tribunal" (J. Miranda/R. Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada III (2007), 833). Eppur...

3. É bem conhecido que o caso julgado e a exequibilidade são dois efeitos distintos de uma decisão jurisdicional. Isto porque nem todo o caso julgado é acompanhado pela exequibilidade (basta pensar que apenas as sentenças condenatórias são título executivo (cf. art. 703.º, n.º 1, al. a), CPC)) e nem toda a exequibilidade é acompanhada pelo caso julgado (lembre-se que a sentença condenatória que é impugnada através de um recurso com efeito meramente devolutivo constitui título executivo (cf. art. 704.º, n.º 1, CPC)).

A partir desta verificação a questão que se coloca é a de saber se é mesmo inimaginável que uma declaração de inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória geral seja susceptível de atingir a exequibilidade da decisão que a tenha aplicado.  No fundo, o que se questiona é se o Estado, através da execução, deve colocar os seus poderes soberanos à disposição do credor vencedor quando a norma que lhe permitiu o ganho de causa já foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral.

Repare-se que, pela natureza das coisas, o problema só se coloca no âmbito dos direitos de carácter patrimonial, dado que as decisões sobre direitos não patrimoniais (e, em especial, sobre estados pessoais) não necessitam de qualquer execução e, por isso, em relação a elas não se põe o problema de a sua exequibilidade ser atingida por uma posterior declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

Deve ainda ter-se presente que, a ser admitida a invocação da declaração de inconstitucionalidade, isso só poderia acontecer em embargos de executado. Ora, a finalidade destes embargos não é afastar o caso julgado da decisão (isso só pode ser realizado através do recurso de revisão), mas antes negar a exequibilidade da decisão. Esta dualidade de regimes processuais (recurso de revisão e embargos de executado) torna patente, de novo, a diferença entre o caso julgado (objecto da revisão) e a exequibilidade (objecto dos embargos), o que permite discutir se, quando o art. 729.º, al. a) CPC se refere à inexequibilidade da decisão como fundamento dos embargos, está excluído que possa ser questionada a exequibilidade de uma decisão transitada em julgado.

O que, mais em concreto, se pretende saber é se, quando o art. 729.º, al. a), CPC, se refere à falta de exequibilidade da decisão judicial, realmente se refere à falta de qualquer exequibilidade ou apenas à inexequibilidade de uma decisão ainda não transitada em julgado. Até agora, com base, muito possivelmente, numa implícita ligação entre a exequibilidade e o caso julgado, a situação de inexequibilidade que costuma ser referida a propósito do art. 729.º, al. a), CPC é a da decisão que foi objecto de um recurso com efeito suspensivo. É claro que o exemplo está correcto, mas também é notório que, "cirurgicamente", o mesmo se refere a uma situação de inexequibilidade de uma decisão sem o valor de caso julgado. Ora, o que importa averiguar é precisamente se a falta de exequibilidade a que se refere aquele preceito é apenas a inexequibilidade da decisão não transitada ou a inexequibilidade da decisão tout court, independentemente de esta se encontrar transitada ou não transitada em julgado. 

Cabe perguntar, aliás, se a oposição à execução de uma decisão arbitral não fornece um exemplo elucidativo da possibilidade da impugnação da exequibilidade de uma decisão que já se encontra transitada em julgado. Recorde-se que, segundo o disposto no art. 730.º CPC, constituem fundamentos de oposição a essa execução quaisquer causas de anulação da decisão arbitral. Assim, por exemplo, é possível impugnar a exequibilidade de uma decisão arbitral com o fundamento de que a questão não podia ser resolvida por árbitros (cf. art. 48.º, n.º 1, e 46.º, n.º 3, al. b) (i), LAV). Portanto, não parece que, no ordenamento jurídico português, seja impossível questionar a exequibilidade de uma decisão já transitada em julgado.  

A opção que há a fazer, em termos interpretativos do disposto no art. 729.º, al. a), CPC, é entre uma interpretação restritiva da inexequibilidade (limitada às decisões não transitadas) e uma interpretação declarativa daquela inexequibilidade (não limitada às decisões não transitadas). As consequências da opção por esta última interpretação ficam bem patentes através da sua aplicação ao caso que se tem vindo a analisar: a opção por uma interpretação "irrestrita" permite aceitar a oposição à execução com base na declaração superveniente da inconstitucionalidade da norma que fundamentou a decisão exequenda.

Do que sumariamente se afirmou já terá resultado com clareza que o que está em causa é, no fundo, a relação entre o caso julgado e a exequibilidade. Estabelecer a distinção entre ambos é um lugar comum; o que talvez falte seja explorar as consequências teóricas e práticas, possivelmente nada comuns, da referida distinção. 

4. O que acima se referiu respeita à exequibilidade da decisão e, portanto, à exequibilidade do título executivo. O panorama não se altera quando se passa para a exequibilidade da pretensão que constitui o objecto da execução: também neste âmbito é possível distinguir entre o plano da exequibilidade e o do caso julgado.

Quanto a este aspecto importa ainda acentuar o seguinte: como se sabe, o executado só pode invocar, como fundamento dos embargos, um facto modificativo ou extintivo posterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância (art. 729.°, al. g), CPC), ou seja, um facto que, segundo o regime processual civil português, nunca poderia ter sido alegado no anterior processo declarativo. Também isto demonstra que os embargos de executado não visam impugnar o caso julgado, dado que a invocação de um facto que não poderia ter sido considerado na precedente processo declarativo nunca é susceptível de colocar em causa a correcção da decisão proferida e nunca pode justificar uma impugnação do seu caso julgado. É assim possível concluir que a também a inexequibilidade da obrigação exequenda nada tem a ver com a impugnação do caso julgado.

5. O problema em análise respeita somente aos títulos executivos judiciais, ou seja, às sentenças condenatórias. Assim, se o título executivo for extrajudicial, nunca se coloca o problema da tutela do caso julgado, pelo que se, entretanto a norma que com base no qual esse título tiver sido constituído, for declarada inconstitucional, não há dúvida de que a sua exequibilidade pode ser questionada através dos embargos de executado (cf. art. 731.º CPC).

6. O regime alemão acima referido demonstra que, aquilo que se poderia julgar ser um regime indiscutível e universal, afinal não o é. Há ordens jurídicas que preferem privilegiar os princípios da igualdade e da justiça em detrimento da segurança jurídica e que retiram a exequibilidade a uma decisão -- mesmo que transitada em julgado -- com fundamento numa posterior declaração de inconstitucionalidade da norma que a fundamentou.

O desafio que se deixa é o de reflectir sobre a questão, sem quaisquer pré-juízos, na ordem jurídica portuguesa. Seria certamente muito enriquecedor do ordenamento jurídico (porque introduziria um distinguo até agora ignorado) se se pudesse chegar à conclusão de que, num plano geral, a exequibilidade de uma sentença pode ser questionada ainda que a mesma se encontre transitada em julgado e de que, num plano mais específico, é possível questionar a exequibilidade de uma decisão transitada em julgado pela inconstitucionalidade superveniente da norma que a fundamentou.

MTS