"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/01/2016

Jurisprudência (261)


Rectificação de acórdão; acórdão transitado em julgado; recurso de revista; 
recurso de legalidade


I. O sumário de STJ 26/11/2015 (706/05.6TBOER.L1.S1) é o seguinte: 

1. Por aplicação analógica do nº 4 do artigo 617º do Código de Processo Civil, adaptado à situação de ter sido deferido um pedido de rectificação de um acórdão da Relação do qual não foi interposto recurso, apesar de ser admissível, e que tinha transitado em julgado, cabe recurso de revista do acórdão rectificativo desse acórdão da Relação, desde logo para se averiguar se a alteração introduzida é ou não uma mera rectificação de um lapso material.

2. São diferentes os objectivos e os fundamentos da arguição de nulidade de uma decisão judicial, nomeadamente por oposição entre a fundamentação e a decisão (nº 1, c) do artigo 615º), do pedido de reforma, por exemplo, por constarem do processo documentos ou outros meios probatórios com força probatória plena que, por si sós, “impliquem necessariamente decisão diversa da proferida” (nº 2, b), do artigo 616º) e do requerimento de rectificação de erros materiais.

3. Deixando de lado a omissão de custas, ou da indicação da proporção a que se refere o nº 6 do artigo 607º do Código de Processo Civil, que nada têm a ver com o conteúdo da apreciação da pretensão deduzida, verifica-se que a lei inclui no perímetro possível de rectificações que a todo o tempo podem ser efectuadas o suprimento da omissão de indicação do nome das partes e a correcção de erros de escrita ou de cálculo ou de quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.

4. A admissibilidade de requerer rectificações mesmo depois do trânsito em julgado explica-se por se tratar de alterações materiais que não modificam o que ficou decidido.

5. Como uniformemente tem sido recordado por este Supremo Tribunal, só é admissível a correcção por mera rectificação de lapsos materiais consistentes em omissões e discrepâncias de escrita ou de cálculo que se revelam da mera leitura do texto da decisão, equivalentes aos erros de cálculo ou de escrita revelados no contexto das declarações negociais, a que se refere o artigo 249º do Código Civil.

6. Não pode ser qualificada como rectificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorrecção material se não detectava da leitura do respectivo texto.

7. Mantém-se, portanto, o texto do acórdão transitado em julgado, desconsiderando-se a alteração e revogando-se o acórdão que a aprovou.


II. Da fundamentação do acórdão consta a seguinte passagem.

«No artigo 617º do Código de Processo Civil prevê-se que, sendo deferida uma arguição de nulidade ou acolhido um pedido de reforma – casos nos quais o despacho que os decidiu passa a integrar a decisão recorrida (nº 2) –, o recurso passa a ter como objecto a nova decisão e, se o recorrente desistir, o recorrido pode obter a subida do recurso “para [se] decidir da admissibilidade da alteração introduzida (…), assumindo a partir desse momento a posição de recorrente” (nº 4).

Poder-se-á aplicar um regime semelhante, por analogia? Será impeditivo dessa aplicação a circunstância de o acórdão de 27 de Novembro de 2014 se encontrar transitado em julgado, quando a rectificação foi aprovada?

Antes de mais, cumpre dizer que é irrelevante que o artigo 671º do Código de Processo Civil, ao desenhar o âmbito possível do recurso de revista, não refira acórdãos rectificativos de acórdãos anteriores. Não se duvidará de que o acórdão de 27 de Novembro de 2014 foi “proferido sobre decisão da 1ª Instância” e conheceu “do mérito da causa”; e, no limite, poder-se-á sustentar que é este o ponto de referência que releva para aferir da recorribilidade do acórdão de 9 de Julho deste ano, raciocinando como se de um suprimento de nulidade ou de um deferimento de pedido de reforma se tratasse, e considerando a rectificação deferida como integrativa do anterior acórdão. Na verdade, uma verdadeira e própria rectificação destina-se, por natureza, a integrar a decisão rectificada, não tendo qualquer interesse autónomo.

Releva sim saber se, da conjugação entre:

– a possibilidade de se proceder a rectificações após o trânsito em julgado, caso não tenha havido recurso da decisão a rectificar (nº 3 do artigo 614º),

– com as regras de que o poder jurisdicional se extingue com a decisão, apenas sendo possível ao tribunal que a proferiu “rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença” (nºs 1 e 2 do artigo 615º) e de que

– “havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar” (nº 1 do artigo 62[5]º do Código de Processo Civil),

– com o princípio que se extrai do citado nº 4 do artigo 617º, adaptado à eventualidade de rectificação,

não resultará necessariamente a admissibilidade do presente recurso, apenas para, num primeiro momento, se averiguar se a alteração introduzida é ou não uma mera rectificação de um lapso material do acórdão de 27 de Novembro de 2014, nos termos admitidos pelo artigo 614º do Código de Processo Civil e, se vier a concluir-se que sim, para, num segundo momento, se apreciar a impugnação do acórdão corrigido. 

E a resposta não pode deixar de ser afirmativa, por aplicação analógica do nº 4 do artigo 617º, naturalmente adaptado à situação de ter sido deferido um pedido de rectificação de um acórdão de que não foi interposto recurso de revista e que tinha transitado em julgado. Solução contrária poderia conduzir à violação da regra da prevalência da decisão que primeiro transitou um julgado, em caso de rectificações inadmissíveis.»

III. 1. O art. 617.º, n.º 4, CPC estabelece, no âmbito do processamento posterior à arguição da nulidade da sentença ou ao pedido da sua reforma, o seguinte: 

"Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade da alteração introduzida na sentença, assumindo, a partir desse momento, a posição de recorrente."

O acórdão realizou uma aplicação analógica deste preceito para justificar a admissibilidade da interposição de um recurso de revista de uma rectificação introduzida num acórdão da Relação que era recorrível nos termos gerais, mas que, no caso concreto, já não era recorrível pelo decurso do prazo para a sua interposição. Fê-lo com o argumento de que, mesmo nesse caso, há que garantir a possibilidade de controlo sobre se a rectificação introduzida é realmente uma rectificação ou é antes uma modificação do acórdão. 

Para melhor se perceber esta orientação do STJ, há que ter presente que, segundo o disposto no art. 614.º, n.º 3, CPC, se nenhuma das partes recorrer da sentença, a rectificação de erros materiais pode ser requerida a todo o tempo. Portanto, a circunstância de a parte não ter recorrido do acórdão e ter permitido o seu trânsito em julgado não obsta a que essa mesma parte requeira a rectificação do acórdão. Assim, o que o STJ teve de decidir foi se, nessa circunstância, era admissível a interposição do recurso de revista.

A orientação defendida no acórdão foi no sentido de que é passível de controlo pelo STJ o uso que a Relação fez dos seus poderes de rectificação do acórdão por ela proferido. Designadamente, há que permitir que seja controlado se o que a Relação efectuou foi apenas uma rectificação ou se a Relação usou os seus poderes de rectificação para realizar algo mais do que isso.

Admitido o recurso pelo STJ, só pode estar em causa no recurso de revista o controlo do uso desses poderes pela Relação. Por isso mesmo, o controlo a realizar pelo STJ na revista interposta é apenas um controlo da legalidade. O STJ deve controlar se se trata de uma mera rectificação ou de uma alteração substancial do acórdão impugnado, mas, no caso de concluir que se está realmente perante uma modificação substancial, só pode "cassar" este acórdão, sem poder substituir-se à Relação na sua rectificação.

2. O problema resolvido no acórdão do STJ pode levantar a questão de saber se também há que admitir o recurso quando, por não ser admissível recurso ordinário da sentença, a sua nulidade ou reforma é feita valer perante o próprio tribunal que proferiu a decisão (cf. art. 615.º, n.º 4, e 616.º CPC). Suponha-se, por exemplo, que o tribunal ao qual é solicitada a reforma da sentença por ter ocorrido um erro na qualificação jurídica dos factos (cf. art. 616.º, n.º 2, al. al. a), CPC) altera essa qualificação (o que pode fazer), mas também altera os factos que antes tinha considerado provados (o que não pode fazer).

Novamente, o que pode estar em causa é apenas o controlo da legalidade da decisão do tribunal que supriu a nulidade ou que reformou a sentença. Num eventual recurso, o tribunal ad quem só pode anular a decisão recorrida, não podendo substituir-se ao tribunal recorrido no proferimento de uma nova decisão.

Apesar desta restrição, há que entender que a doutrina defendida no acórdão não implica a admissibilidade da interposição irrestrita de recurso contra a decisão do próprio tribunal que conheceu da nulidade da sentença ou que a reformou. Note-se que, no caso concreto apreciado no acórdão, a acção admitia a interposição do recurso de revista; o que se discutiu no acórdão foi se, já não sendo esse recurso admissível pelo decurso do prazo para a sua interposição, ainda assim o recurso devia ser admitido após a rectificação realizada pela Relação.

3. A orientação defendida no acórdão não implica que seja sempre admissível a interposição de um recurso com fundamento no uso ilegal de poderes processuais pelo tribunal. Aliás, um diferente entendimento faria "desmoronar" o sistema recursal português, mas é claro que não é nada disso que decorre da posição adoptada pelo STJ no acórdão em análise.

O que o STJ fez no acórdão em análise foi integrar uma lacuna: perante a admissibilidade do recurso prevista no art. 617.º, n.º 4, CPC, o STJ considerou que a unidade do sistema jurídico exige que o recurso também seja admissível quando a rectificação da sentença venha a ocorrer depois do seu trânsito em julgado. 

Quanto ao controlo da legalidade do uso dos poderes processuais pelo juiz não é detectável, em função do disposto no art. 629.º CPC, qualquer lacuna no processo civil português. É claro que se pode discutir a bondade dos critérios que asseguram a recorribilidade da decisão (conjugação do valor da causa com o valor da sucumbência), mas isso nada tem a ver -- e é até incompatível -- com a constatação de uma lacuna no ordenamento processual civil quando se trate de impugnar uma decisão com fundamento no uso ilegal dos poderes processuais do juiz. Sendo assim, a doutrina defendida pelo STJ no acórdão em análise não é aplicável a outras situações que não aquelas que se referem ao controlo da legalidade do uso dos poderes do juiz relativos à rectificação da sentença num processo em que os recursos ordinários são admissíveis nos termos gerais.


MTS