"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/02/2016

Jurisprudência (283)


Competência material; contrato de trabalho; Kompetenz-Kompetenz


I. O sumário de STJ 26/11/2015 (2826/10.8TTLSB.L1.S1) é o seguinte:

1- Tendo o tribunal de 1ª instância decidido que o Tribunal do Trabalho é competente para a acção em que se discute se existe um contrato de trabalho entre as partes, tem o mesmo competência para apurar a matéria de facto alegada pelo A como suporte do mesmo, e face ao que resultar da mesma, também é o mesmo Tribunal o competente para apreciar se se confirma a existência desse contrato, e para apreciar os demais pedidos deste resultantes.

2- Não se tendo provado a existência do contrato de trabalho que fora alegado como suporte da pretensão do A, fica prejudicada a apreciação da questão reportada às comissões não pagas, pois tem como pressuposto a existência de uma relação de trabalho subordinado.
 


II. Um autor,  alegando a celebração de um contrato de trabalho com as rés, intentou uma acção nos tribunais de trabalho para obter o pagamento de algumas quantias em dívida relativas a créditos salariais, assim como a comissões relativas a contratos por si negociados em nome e benefício daquelas com diversos clientes. Na 1.ª instância foi discutida a competência dos tribunais de trabalho, tendo este tribunal considerado-se materialmente competente para apreciar a acção. No entanto, a 1.ª instância acabou por concluir que não havia nenhum contrato de trabalho celebrado entre as partes, pelo que condenou as rés apenas no pagamento de uma pequena parte das quantias pretendidas pelo autor.

Em recurso interposto pelo autor, a RL entendeu que o contrato não podia ser qualificado como contrato de trabalho e confirmou a decisão da 1.ª instância, com o argumento de que, não havendo um contrato de trabalho entre as partes, os tribunais de trabalho não têm competência para apreciarem o pedido relativo às comissões.

O autor interpôs recurso para o STJ, que confirmou a decisão da RL. O STJ argumentou da seguinte forma: 

"[...] concordamos com este [recorrente] no ponto em que sustenta que a questão da competência material ficou definitivamente arrumada com a decisão do despacho saneador que expressamente a apreciou, considerando o Tribunal do Trabalho competente, em razão da matéria, para conhecer da acção tal como fora delineada pelo A.

No entanto, desta decisão o que resulta é que o Tribunal do Trabalho é competente para apurar a matéria de facto alegada pelo A como suporte do invocado contrato de trabalho com as Rés, e face ao que resultar da mesma, também é o mesmo Tribunal o competente para apreciar se se confirma ou não a existência desse contrato.

Por isso, a questão não é de competência, mas de mérito.

Na verdade, o que se pode questionar é se o A, não tendo provado a existência do contrato de trabalho que alegara como fonte dos direitos reclamados, se ainda assim o Tribunal da Relação devia apreciar a pretensão que havia deduzido quanto ao pagamento de comissões, face à matéria que foi apurada, ao invés de considerar prejudicado o seu julgamento.

No entanto, e conforme se entendeu no acórdão desta Secção Social de 09-06-2014, recurso n.º 2127/07.9TTLSB.L1.S1, não se tendo provado a existência do contrato de trabalho que fora alegado como suporte das pretensões do A, tem que se julgar improcedente a revista, ficando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso e que pressupõem a existência de uma relação de trabalho subordinado [...].

Por isso, só podia a Relação julgar prejudicado o pedido respeitante às comissões, porque não provada a existência do contrato de trabalho que o suportava, tal como foram considerados prejudicados os demais pedidos do A, nomeadamente os respeitantes ao pagamento de férias, subsídio de férias e de Natal, respectivos proporcionais, e indemnização de antiguidade pela resolução do contrato com justa causa."

III. Os tribunais de trabalho têm competência para apreciar se o contrato apresentado pelo autor é um contrato de trabalho e para considerar que são incompetentes no caso de virem a concluir que esse contrato não pode ser qualificado como um contrato laboral. O que é mais discutível é que, como aconteceu no caso concreto, o tribunal de 1.ª instância possa considerar que o contrato é de trabalho para efeitos de aferição (e de reconhecimento) da sua competência material e que o mesmo contrato não é de trabalho para efeitos de apreciação do mérito da causa. Se não estavam apurados todos os factos relevantes para qualificar o contrato alegado pelo autor e aferir a competência do tribunal, o que a 1.ª instância devia ter feito era remeter a apreciação da questão da sua competência para a sentença final. O que não pode deixar de se considerar anómalo é que o mesmo contrato seja qualificado de forma diferente em dois momentos distintos do processo.

Atendendo ao trânsito em julgado da decisão sobre a competência dos tribunais de trabalho, os tribunais superiores tiveram que se mover dentro desta anomalia. As decisões que tomaram no contexto em que decidiram estão correctas: a Relação decidiu bem ao confirmar que o contrato invocado pelo autor não podia ser qualificado como um contrato de trabalho e o STJ decidiu bem ao considerar que a questão relativa às comissões não podia ser apreciada pelos tribunais de trabalho. O único reparo que se pode fazer ao STJ é o de, aparentemente, ter considerado normal o que não pode deixar de ser visto como uma situação anómala.

 MTS