Diret. 93/13/CEE – Cláusulas abusivas –
Procedimento de injunção de pagamento – Procedimento de execução
coerciva – Competência do juiz nacional de execução para suscitar
oficiosamente a nulidade da cláusula abusiva – Princípio da autoridade
do caso julgado – Princípio da efetividade – Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia – Proteção jurisdicional
I. TJ 18/2/2016 (C‑49/14, Finanmadrid E.F.C./Albán Zambrano et al.) decidiu:
A Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que não permite ao tribunal que conhece do pedido de execução de uma injunção de pagamento apreciar oficiosamente o caráter abusivo de uma cláusula contida num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, quando a autoridade que aprecia o pedido de injunção de pagamento não é competente para proceder a tal apreciação.
II. Importa conhecer esta significativa parte da fundamentação do acórdão:
"34 Com a sua primeira e segunda questões [prejudiciais colocadas pelo tribunal nacional], que há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 93/13 se opõe a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que não permite ao juiz que conhece do pedido de execução de uma injunção de pagamento apreciar oficiosamente o caráter abusivo de uma cláusula contida num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, quando a autoridade que aprecia o requerimento de injunção de pagamento não é competente para proceder a tal apreciação.
35 A fim de dar ao tribunal de reenvio uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido, recorde-se, a título preliminar, que o Tribunal de Justiça já se pronunciou, no acórdão Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349), sobre a natureza das responsabilidades que incumbem ao tribunal nacional, ao abrigo do disposto na Diretiva 93/13, no quadro de um procedimento de injunção de pagamento, quando o consumidor não deduziu oposição contra a injunção de que foi notificado.
36 No referido acórdão, o Tribunal de Justiça declarou, designadamente, que a Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que não permite ao tribunal ao qual é submetido um requerimento de injunção de pagamento, e na falta de oposição do consumidor, apreciar oficiosamente, in limine litis ou em qualquer outra fase do procedimento, o caráter abusivo de uma cláusula constante de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, mesmo quando disponha dos elementos de direito e de facto necessários para esse efeito (acórdão Banco Español de Crédito, C‑618/10, EU:C:2012:349, n.° 1 do dispositivo).
37 Há que salientar que a legislação nacional, na sua versão aplicável ao litígio em cujo âmbito foi submetido o pedido de decisão prejudicial que deu lugar ao acórdão Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349), atribuía ao juiz, e não ao «Secretario judicial», a competência para conhecer de uma injunção de pagamento.
38 Ora, desde a reforma introduzida pela Lei 13/2009 (BOE n.° 266, de 4 de novembro de 2009, p. 92103), que entrou em vigor em 4 de maio de 2010, compete ao «Secretario judicial», no caso de o devedor não cumprir a injunção de pagamento ou não comparecer perante o tribunal, tomar uma decisão fundamentada que encerra o procedimento de injunção e é revestida de autoridade de caso julgado.
39 Esta alteração legislativa, feita com a intenção de acelerar a tramitação do procedimento de injunção de pagamento, não é, enquanto tal, o objeto das dúvidas expressas pelo Juzgado de Primera Instancia nº 5 de Cartagena no quadro do presente reenvio prejudicial.
40 A este respeito, importa observar que, na falta de harmonização dos mecanismos nacionais de execução coerciva, as modalidades da sua aplicação fazem parte da ordem jurídica interna dos Estados‑Membros por força do princípio da autonomia processual destes últimos. Todavia, o Tribunal de Justiça sublinhou que as referidas modalidades devem satisfazer a dupla condição de não serem menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e de não tornarem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos aos consumidores pelo direito da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, acórdão Sánchez Morcillo e Abril García, C‑169/14, EU:C:2014:2099, n.° 31 e jurisprudência referida).
41 No que diz respeito, por um lado, ao princípio da equivalência, há que salientar que o Tribunal de Justiça não dispõe de nenhum elemento que permita suscitar dúvidas quanto à conformidade da legislação nacional em causa no processo principal com o referido princípio.
42 Com efeito, resulta designadamente das disposições conjugadas dos artigos 551.°, 552.° e 816.°, n.° 2, da LEC que, no quadro do sistema processual espanhol, o tribunal ao qual foi submetido um processo de execução de uma injunção de pagamento não pode apreciar oficiosamente o caráter abusivo, à luz do artigo 6.° da Diretiva 93/13, de uma cláusula constante de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, nem verificar oficiosamente a contradição entre tal cláusula e as disposições nacionais de ordem pública, o que compete, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar (v., neste sentido, acórdão Aziz, C‑415/11, EU:C:2013:164, n.° 52).
43 Por outro lado, no que diz respeito ao princípio da efetividade, o Tribunal de Justiça recordou por diversas vezes que cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, na tramitação deste e nas suas particularidades perante as várias instâncias nacionais (acórdão Banco Español de Crédito, C‑618/10, EU:C:2012:349, n.° 49 e jurisprudência referida).
44 Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, se necessário, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a correta tramitação do processo (acórdãos Asociación de Consumidores Independientes de Castilla y León, C‑413/12, EU:C:2013:800, n.° 34, e Pohotovosť, C‑470/12, EU:C:2014:101, n.° 51 e jurisprudência referida).
45 No caso vertente, há que constatar que a tramitação e as particularidades do procedimento de injunção de pagamento espanhol implicam que, na falta das circunstâncias que levam à intervenção do juiz, recordadas no n.° 24 do presente acórdão, este procedimento seja encerrado sem que haja possibilidade de exercer uma fiscalização da existência de cláusulas abusivas num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor. Assim, se o tribunal ao qual é submetida a execução da injunção de pagamento não for competente para apreciar oficiosamente a existência de tais cláusulas, o consumidor pode ver‑se confrontado com um título executivo sem beneficiar, em nenhum momento do processo, da garantia de que tal apreciação é realizada.
46 Ora, neste contexto, é forçoso constatar que tal regime processual é suscetível de lesar a efetividade da proteção pretendida pela Diretiva 93/13. Com efeito, a proteção efetiva dos direitos que decorrem da referida diretiva só pode ser garantida se o sistema processual nacional permitir, no contexto do procedimento de injunção de pagamento ou do processo de execução da mesma, uma fiscalização oficiosa da natureza potencialmente abusiva das cláusulas contidas no contrato em causa.
47 Esta consideração não pode ser posta em causa quando o direito processual nacional, como o que está em causa no processo principal, confere à decisão proferida pelo «Secretario judicial» autoridade de caso julgado e lhe reconhece efeitos análogos aos de uma decisão judicial.
48 Com efeito, há que salientar que, embora as modalidades de aplicação do princípio da autoridade do caso julgado façam parte da ordem jurídica interna dos Estados‑Membros, em virtude do princípio da autonomia processual destes últimos, essas modalidades não devem deixar de respeitar os princípios da equivalência e da efetividade (v., neste sentido, acórdão Asturcom Telecomunicaciones, C‑40/08, EU:C:2009:615, n.° 38 e jurisprudência referida).
49 Ora, relativamente ao princípio da equivalência, como salientou o advogado‑geral no n.° 70 das suas conclusões, nenhum elemento do processo principal permite concluir que as modalidades de aplicação do princípio da autoridade do caso julgado previstas pelo direito processual espanhol sejam menos favoráveis quando se trata de processos abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 93/13 do que quando tal não é o caso.
50 No que diz respeito ao princípio da efetividade, cujo respeito pelos Estados‑Membros deve ser apreciado, designadamente, à luz dos critérios enunciados nos n.os 43 e 44 do presente acórdão, recorde-se que, segundo a redação dos artigos 815.° e 816.° da LEC, a fiscalização de um requerimento de injunção de pagamento pelo «Secretario judicial» se limita à verificação do respeito das formalidades a que tal requerimento está sujeito, em particular a correção do montante do crédito reclamado, tendo em conta os documentos juntos ao referido requerimento. Assim, nos termos do direito processual espanhol, o «Secretario judicial» não é competente para apreciar o caráter eventualmente abusivo de uma cláusula contida num contrato que constitui a base do crédito.
51 Além disso, cumpre recordar que a decisão do «Secretario judicial» que encerra o processo de injunção de pagamento adquire autoridade de caso julgado, o que torna impossível a fiscalização das cláusulas abusivas na fase de execução de uma injunção, pelo simples facto de os consumidores não terem deduzido oposição à injunção no prazo previsto para o efeito e de o «Secretario judicial» não ter remetido o processo ao juiz.
52 A este respeito, cumpre, no entanto, que salientar, em primeiro lugar, que existe um risco não negligenciável de que os consumidores em causa não deduzam a oposição exigida quer devido ao prazo particularmente curto previsto para o efeito, quer porque podem ser dissuadidos de se defenderem tendo em conta os custos que uma ação judicial implica relativamente ao montante da dívida contestada, quer porque ignoram ou não se apercebem do alcance dos seus direitos, ou ainda devido ao conteúdo limitado do requerimento de injunção apresentado pelos profissionais e, portanto, ao caráter incompleto das informações ao seu dispor (v., neste sentido, acórdão Banco Español de Crédito, C‑618/10, EU:C:2012:349, n.° 54).
53 Em segundo lugar, resulta do despacho de reenvio que o «Secretario judicial» apenas está obrigado a remeter o processo ao juiz quando decorre dos documentos juntos ao requerimento que o montante reclamado não está correto.
54 Nestas condições, como salientou em substância o advogado‑geral no n.° 75 das suas conclusões, há que constatar que a legislação espanhola em causa no processo principal, relativa às modalidades de aplicação do princípio da autoridade do caso julgado no quadro do procedimento de injunção de pagamento, não se afigura conforme com o princípio da efetividade, na medida em que torna impossível ou excessivamente difícil, nas ações intentadas pelos profissionais e nas quais os consumidores são réus, a aplicação da proteção que a Diretiva 93/13 pretende conferir a estes últimos.
55 Tendo em conta o conjunto das considerações precedentes, há que responder à primeira e segunda questões submetidas que a Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que não permite ao juiz que que conhece do pedido de execução de uma injunção de pagamento apreciar oficiosamente o caráter abusivo de uma cláusula contida num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, quando a autoridade que aprecia o pedido de injunção de pagamento não é competente para proceder a tal apreciação."
III. A incompatibilidade com o direito europeu que foi detectada pelo TJ quanto ao direito espanhol também parece verificar-se quanto ao direito português, dado que não parece que a apreciação oficiosa de uma cláusula contratual abusiva, depois da aposição da fórmula executória ao requerimento de injunção, caiba no disposto nos art. 726.º, n.º 1, e 734.º, n.º 1, CPC, desde logo porque, no requerimento de injunção, nada tem de ser referido de específico quanto aos fundamentos contratuais do crédito exequendo, especialmente quando o título executivo for um requerimento de injunção.
Assim, pese embora alguma prática judiciária conforme ao sentido do acórdão do TJ (o que se salienta e aplaude), há que, no mínimo, ponderar a forma de levar ao conhecimento do juiz de execução as cláusulas contratuais gerais que tenham constituído a fonte do crédito exequendo e que impor expressamente a este juiz o dever de controlar o eventual carácter abusivo destas cláusulas.
MTS