"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/02/2016

Jurisprudência (289)




Livre apreciação da prova; poderes do STJ; 
forma ad substantiam; prova testemunhal


I. O sumário de STJ 3/12/2015 (1297/11.6TBPBL.C1.S1) é o seguinte:  

1. Atento o disposto no nº 4 do art. 662º do CPC, o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação apreciou a impugnação da decisão da matéria de facto sustentada em meios de prova sujeitos a livre apreciação.

2. A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de matéria de facto está limitada aos casos em que seja invocada a violação de lei adjectiva ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova (v.g. prova documental ou por confissão) ou que fixe o valor de determinado meio de prova (v.g. acordo das partes, confissão ou documento com força probatória plena).

3. Nos termos do art. 29º, nº 1, do Dec. Lei nº 12/04, de 9-1, na redacção introduzida pelo Dec. Lei nº 18/08, de 29-1, em conjugação com a Portaria nº 1371/08, de 2-12, o contrato de empreitada acima de € 16.600,00 deveria ser obrigatoriamente reduzido a escrito.

4. Na falta de redução a escrito por razões imputáveis ao empreiteiro, para além de o contrato de empreitada ser nulo, é insusceptível de demonstração através de prova testemunhal, nos termos do art. 393º, nº 1, do CC. 

II. Da fundamentação do acórdão retira-se a seguinte passagem:

"3. No capítulo da apreciação das provas, a regra contida no nº 3 do art. 674º, em conjugação com o nº 4 do art. 662º, conexas com as funções prioritárias atribuídas ao Supremo, é a de que este não pode interferir, em regra, na decisão da matéria de facto, por ser da exclusiva competência das instâncias. Tal regra está em consonância com a tramitação processual do recurso de revista, por comparação com o recurso de apelação que integra, como um dos pilares fundamentais, a intervenção da Relação na reapreciação da decisão da matéria de facto, nos termos dos arts. 640º e 662º.

Tal regra não é absoluta, sendo de admitir uma intervenção correctora do STJ quando o acórdão recorrido esteja eivado de erro determinado por uma ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Com efeito, o Supremo não deve ficar indiferente a erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, de modo que pode constituir fundamento de revista a violação de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova ou que fixe a respectiva força probatória. Afinal, em tais situações, defrontamo-nos com verdadeiros erros de direito que, nesta perspectiva, se integram também na esfera de competências do Supremo, inscrevendo-se a sua correcção nas atribuições do Supremo.

Assim, quando na enunciação da matéria de facto provada ou não provada se constate que as instâncias desrespeitaram norma expressade direito probatório material, o Supremo, por iniciativa própria ou do recorrente, deve modificar a decisão e ajustá-la ao preceito imperativo violado.

Tal acontece designadamente quando o confronto com os articulados revele que existe acordo das partes quanto a determinado facto, que o facto alegado por uma das partes foi objecto de declaração confessória com força probatória plena que não foi atendida ou que encontra demonstração plena em documento junto aos autos, naquilo que dele emerge com força probatória plena, incluindo a eventual confissão nele manifestada.

4. Na verdade, em tais circunstâncias, confrontamo-nos com verdadeiros erros de aplicação do direito, tornando justificada a “intromissão” do Supremo na delimitação da realidade que será objecto de qualificação jurídica, como questão de direito que realmente é, deve ser considerada (art. [67]4º, nº 3).

Trata-se de matéria que tem sido objecto de frequentes arestos do Supremo de que são exemplos os seguintes:

- Ac. de 15-4-15 (www.dgsi.pt): existindo um só grau de recurso em matéria de facto, é vedado ao STJ alterar a decisão que vem das instâncias, salvo na medida em que essa alteração se traduza, afinal, no controlo da aplicação de disposições legais que exijam “certa espécie de prova para a existência do facto” ou que fixem “a força de determinado meio de prova”; nesta medida, não cabe nos seus poderes, nem recorrer a presunções judiciais para alterar a decisão de facto, nem controlar as que as instâncias construíram;

- Ac. de 13-1-15 (www.dgsi.pt): o STJ é, organicamente, um tribunal de revista, pelo que a sua competência está confinada a questões de direito, cabendo-lhe o papel residual de sindicar a forma e o modo como as instâncias procederam à aplicação das normas de direito probatório de que se serviram para obtenção dos juízos e veredictos que alcançaram por efeito da mesma; o STJ pode, assim, sindicar a decisão da matéria de facto, provinda das instâncias, em duas hipóteses: (i) quando o tribunal recorrido tiver dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência; ou (ii) quando tenham sido desrespeitadas as normas que regulam a força probatória de algum dos meios de prova admitidos no sistema jurídico português;

- Ac. de 26-2-15 (www.dgsi.pt): não cabe no âmbito do recurso de revista apreciar se a prova produzida por uma das partes foi ou não suficiente para criar dúvida no espírito do julgador, nos termos da chamada contraprova (art. 346º do CC);

- Ac. de 19-02-15 (www.dgsi.pt): tendo a Relação fundado a sua decisão na alteração da resposta que deu à matéria factual na prova testemunhal indicada relativamente a esta facticidade, o STJ está impedido de sindicar o julgamento que a Relação fez sobre este ponto da matéria de facto considerada provada na demanda;

- Ac. de 24-3-13 (www.dgsi.pt): está vedada ao Supremo a apreciação de depoimentos testemunhais, sujeitos à livre apreciação da prova;

- Ac. de 22-5-12, CJSTJ, tomo II, pág. 90: o Supremo poderá censurar a decisão da Relação quando o uso de presunções tiver conduzido à violação de normas legais, isto é, decidir se, no caso concreto, era ou não era permitido o uso de tais presunções;

- Ac. de 1-10-02, CJSTJ, tomo III, pág. 65: o erro na apreciação das provas e fixação dos factos materiais da causa não pode, em princípio, ser sindicado pelo STJ; apenas o poderá ser se houver ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força a determinado meio de prova (neste sentido cfr. ainda o Ac. do STJ, de 11-4-13 (www.dgsi.pt);

- Acs. de 25-6-02, CJSTJ, tomo II, pág. 128, e de 17-6-03, CJSTJ, tomo II, pág. 121: o STJ tem intervenção residual limitada a averiguar da observância das regras de direito probatório material e determinar a ampliação da matéria de facto;

- Ac. de 12-1-99, BMJ 483º/160: o STJ só conhece da matéria de facto em dois casos: o primeiro, para a hipótese de o tribunal recorrido ter dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência; o segundo, quando tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos vários meios de prova admitidos no nosso sistema jurídico. É exemplo o caso em que o tribunal decidiu a causa dando como provados (ou como não provados) factos em contrário do que consta de uma confissão judicial escrita. Aqui o Supremo terá então competência para alterar os factos dados como provados com base no desrespeito pela força probatória plena reconhecida à confissão judicial pelo nº 1 do art. 358º do CC."

III. A orientação defendida no acórdão é indiscutível: o STJ só pode controlar a apreciação da prova realizada pela Relação, se esta tiver violado nessa apreciação uma regra legal, ou seja, se tiver usado os seus poderes de livre apreciação da prova numa situação em que tal não é permitido. Portanto, o STJ pode controlar se a Relação julgou dentro dos limites legais da livre apreciação, mas não pode controlar a livre apreciação realizada pela Relação. 

A latere importa referir que, ao contrário do que é defendido em alguma jurisprudência citada na fundamentação do acórdão, nada impede que o STJ possa recorrer a presunções judiciais ou naturais. São duas as razões que o impõem:

-- As presunções judiciais não implicam o conhecimento pelo STJ de matéria de facto nova, mas antes a inferência de factos a partir de factos apurados nas instâncias; os factos inferidos já deviam ter sido adquiridos pelas instâncias, se estas tivessem utilizado adequadamente essas presunções;

-- As presunções naturais são um "acto de pensamento": o tribunal infere, muitas vezes com base no acervo de experiência comum, um facto de outro facto; esta operação -- que é realizada muito frequentemente no quotidiano de qualquer pessoa -- não pode estar excluída dos poderes do STJ.

MTS