"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/03/2017

Jurisprudência (567)


Decisão arbitral; acção de anulação;
revista; admissibilidade


1. O sumário de STJ 10/11/2016 (1052/14.1TBBCL.P1.S1) é o seguinte:

I. A norma constante do nº 1 do art. 671º do CPC não deve interpretar-se no sentido de pretender excluir cabalmente o exercício do duplo grau de jurisdição nas causas em que a Relação haja excepcionalmente actuado, não como tribunal de recurso, mas como órgão jurisdicional que, em 1ª instância, apreciou o objecto do litígio – como ocorre com as acções de anulação de sentença arbitral, necessariamente iniciadas perante esse Tribunal.


II. Na verdade, numa interpretação funcionalmente adequada do sistema de recursos que nos rege, não se vê razão bastante para excluir o normal exercício pelo STJ do duplo grau de jurisdição sobre decisões finais proferidas pela Relação, em acções ou procedimentos que, nos termos da lei, se devam obrigatoriamente iniciar perante elas - podendo convocar-se relevantes lugares paralelos, em que o acesso ao STJ está assegurado, relativamente a decisões finais proferidas em causas apreciadas em 1ª instância pelas Relações, como ocorre com as acções especiais de indemnização contra magistrados ou com a revisão de sentença estrangeira.

III. É, assim, admissível a revista interposta do acórdão da Relação que apreciou a referida acção anulatória - não incluindo, porém, o seu objecto qualquer reapreciação do mérito da causa, vedado aos Tribunais estaduais pelo art. 46º, nº 9, da LAV, destinando-se o recurso, apenas e estritamente, a apurar da verificação ou inverificação dos específicos fundamentos de anulação da sentença arbitral, invocados pelo autor.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:


"Como é sabido, a LAV actualmente vigente apenas permite a impugnação da sentença arbitral pela via do pedido de anulação dirigido ao competente tribunal estadual – só prevendo, como forma de reacção à dita sentença, a via do recurso nos casos em que as partes tiverem acordado na recorribilidade da decisão dos árbitros para os tribunais estaduais; o pedido de anulação – que origina uma forma procedimental autónoma, moldada pelas regras da apelação no que se não mostre especialmente previsto no nº2 do art. 46º da LAV – pressupõe a verificação de algum ou alguns dos fundamentos taxativamente previstos na lei, cumprindo, em regra, à parte que faz o pedido o ónus de demonstrar a respectiva verificação; e tal pretensão não envolve um amplo conhecimento do mérito da decisão que se pretende anular, estando a competência do tribunal estadual circunscrita à matéria da verificação do específico fundamento da pretendida anulação, cabendo, mesmo nos casos em que proceda a pretensão anulatória, a reapreciação do mérito a outro tribunal arbitral, nos termos do nº9 do citado art. 46º.

Por outro lado, resulta claramente do disposto no art. 59º da LAV que as funções cometidas nesta sede aos tribunais judiciais são exercidas pela Relação em cujo distrito se situe o lugar da arbitragem – no caso, o Tribunal da Relação do Porto, onde correu termos a acção anulatória – cabendo do acórdão proferido pela Relação recurso para os tribunais hierarquicamente superiores, sempre que tal recurso seja admissível segundo as normas aplicáveis à recorribilidade das decisões em causa ( nº8 do referido art. 59º) : e é precisamente nesta norma que poderá encontrar suporte a presente revista, já que – tendo a Relação proferido a primeira decisão acerca da pretensão anulatória - não se verificam obviamente as limitações à recorribilidade para o STJ , nos casos de dupla conforme, decorrentes do disposto no art. 671º, nº3 , do CPC: ou seja, no caso dos autos, a presente revista representa o exercício do duplo grau de jurisdição sobre a decisão que conheceu, a final, do mérito da acção anulatória .

No caso dos autos, a ratio determinante da não admissibilidade do recurso radicou na invocação da norma constante do nº1 do art. 671º do CPC, interpretada em termos de a mesma condicionar irremediavelmente o acesso ao STJ ao facto de o acórdão da Relação – que se pretende impugnar – ter incidido sobre decisão proferida por tribunal de 1ª instância, reapreciando-a nos seus termos e fundamentos.

E, assim sendo, na lógica do despacho reclamado, sendo o acórdão da Relação a decisão que, pela primeira vez, em 1ª instância, se pronunciou sobre a pretensão anulatória do acórdão arbitral – não existindo nenhuma precedente decisão que pudesse ser objecto de reapreciação pelo Tribunal da Relação - estaria irremediavelmente excluído o acesso ao STJ.

Será assim?

Ou seja, poderá entender-se que a referida norma pretende excluir cabalmente o duplo grau de jurisdição nas causas em que a Relação haja excepcionalmente actuado, não como tribunal de recurso, mas como órgão jurisdicional que, em 1ª instância, apreciou o objecto do litígio?

Saliente-se que é precisamente este o caso que nos ocupa, já que a acção de anulação de acórdão arbitral é, nos termos da LAV ( art. 59º, nº 1, al. g), da exclusiva competência da Relação em cujo distrito se situe o lugar da arbitragem: tal acção é, assim, directamente interposta no Tribunal da Relação, que se pronuncia, pela primeira vez, sobre as questões que fundamentam o efeito anulatório peticionado.

Considera-se que a resposta à questão atrás enunciada deve ser negativa, não se vendo – numa interpretação funcionalmente adequada do sistema de recursos que nos rege – razão bastante para excluir o normal exercício pelo STJ do duplo grau de jurisdição sobre decisões finais proferidas pela Relação, em acções ou procedimentos que, nos termos da lei, se devam obrigatoriamente iniciar perante elas.

Neste sentido, podem logo convocar-se relevantes lugares paralelos, em que o acesso ao STJ está assegurado, relativamente a decisões finais proferidas em causas apreciadas em 1ª instância pelas Relações.

Assim, na acção de indemnização contra magistrados o art. 794º do CPC prescreve que do acórdão da Relação que conheça, em 1ª instância, do objecto da acção cabe recurso de apelação para o STJ – sujeito, porém, às particularidades enunciadas no nº2, no que respeita ao regime de interposição e julgamento e ao exercício de poderes sobre a matéria de facto.

Por outro lado, num outro procedimento especial que igualmente se inicia perante a Relação – a revisão de sentença estrangeira – o art. 985º do CPC estatui que da decisão da Relação sobre o mérito da causa cabe recurso de revista.

Note-se que, no anterior CPC, na versão emergente da reforma de 1995/96, o art. 721º estabelecia que cabia revista do acórdão da Relação que decidisse do mérito da causa – sem distinguir os casos em que esse acórdão tivesse sido proferido em via recursória , no termo de acção iniciada perante tribunal de 1ª instância, e aqueles em que se estivesse perante decisão proferida em procedimento excepcionalmente iniciado perante a Relação.

A unificação dos recursos de revista e agravo em 2ª instância, operada em 2007, determinou que o legislador tivesse sentido a necessidade de ampliar o âmbito da revista, estendendo-a, não apenas às decisões que contivessem um julgamento de mérito, mas também a determinadas decisões de natureza adjectiva ou instrumental, nomeadamente as decisões finais: e a referência, inserida no corpo do artigo 671º, nº1, do CPC, a que o acórdão da Relação, objecto de revista, fosse proferido sobre decisão de 1ª instância teve como objectivo esclarecer que o ponto de referência sobre a admissibilidade da revista deixou de ser a decisão de 1ª instância ( como parecia apontar o art. 721º, nº1, do velho CPC, na redacção de 2007), relevando agora inequivocamente o conteúdo do acórdão da Relação que sobre aquela incidiu , independentemente de a sentença ou saneador , proferidos na 1ª instância, terem incidido ou não sobre o mérito ou terem posto termo ao processo (A. Geraldes, Recursos no Novo CPC, pag. 278).

Ou seja: a referência a que o acórdão da Relação, objecto do recurso de revista, haja incidido, em via recursória, sobre decisão anteriormente proferida em 1ª instância não visa estabelecer que são irrecorríveis para o STJ os arestos que a Relação excepcionalmente profira no âmbito de causas perante tal Tribunal iniciadas – pretendendo antes esclarecer que a admissibilidade da revista se afere face ao conteúdo do acórdão da Relação, e não perante o teor da decisão de 1ª instância por ela reapreciada.

De qualquer modo – e ainda que, interpretando literalmente tal segmento normativo, se entendesse que actualmente, no novo CPC, o recurso de revista só é possível referentemente a acórdãos da Relação que representem já o exercício de um duplo grau de jurisdição sobre a matéria litigiosa, a conclusão que se impunha não seria nunca a da pura e simples irrecorribilidade para o STJ das decisões em que a Relação tivesse conhecido em 1ª instância do objecto da acção – assim excluindo cabalmente, nessas áreas, a regra do duplo grau de jurisdição – mas antes a de que, nesses casos excepcionais, o recurso admissível seria antes o de apelação ( em termos análogos aos que estão previstos no art. 974º do CPC), eventualmente mitigado pela aplicabilidade de um regime misto, que se articulasse designadamente com a natureza do Supremo como Tribunal de revista, cuja competência se circunscreve à apreciação de questões de direito .

Ora, no caso dos autos, estando manifestamente em causa apenas matéria de direito, atinente à verificação ou inverificação da específica causa de anulação invocada, não se torna sequer pertinente abordar esta questão do âmbito dos poderes cognitivos do STJ num recurso em que, impugnando-se decisão proferida pela Relação em 1ª instância, apenas se controvertem estritas questões de direito.

Considera-se, pois, que nada obsta à apreciação da presente revista ; porém, desde já se realça que – como é típico da acção de anulação da decisão arbitral – o seu objecto não traduz qualquer reapreciação do mérito da causa, vedado aos Tribunais estaduais pelo art. 46º, nº9, da LAV, consistindo, apenas e estritamente, em apurar da verificação ou inverificação dos específicos fundamentos de anulação da sentença arbitral, invocados pela A. na acção que propôs e naturalmente incluídos no âmbito das conclusões que formulou na revista que interpôs do acórdão da Relação que julgou a acção totalmente improcedente."

[MTS]