Execução; pagamento parcial;
abuso de direito
1. O sumário de RL 10/11/2016 (2064/09.2 T2SNT.L1-6) é o seguinte:
- Numa execução titulada por um contrato de mútuo não cumprido, depois de ter sido vendido o imóvel hipotecado e penhorado e de ter sido deferida pelo tribunal a penhora do único bem penhorável conhecido, constituído pelo vencimento da executada, não há abuso de direito da exequente ao pretender o prosseguimento da execução para cobrança da totalidade da dívida que entretanto foi aumentando com a insuficiência dessa penhora para a satisfação do crédito.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte;
"A presente execução, intentada em 1995, tem como título executivo um contrato de mútuo da quantia de 5 000 000$00, celebrado em 1989, pelo prazo de 25 anos e que, como nele expressamente se menciona, é regulado pelo DL 328-B/86 de 30/9.
Este mútuo que tem como mutuante uma entidade bancária – a ora exequente apelada – é um mútuo oneroso, remunerado, nos termos do artigo 1145º do CC.
Sendo remunerado o mútuo, o mutuário terá sempre de pagar ao mutuante uma quantia total superior ao valor mutuado, que inclui os juros remuneratórios, devidos nos termos acordados.
Não poderá assim concluir-se, do facto de a venda do imóvel hipotecado ser superior ao valor da quantia mutuada e ao valor da quantia exequenda à data da propositura da acção, que a dívida está saldada, sem se ter em conta os juros que se foram vencendo entretanto, quer os remuneratórios que sempre seriam devidos, quer os moratórios que se tornaram devidos com o incumprimento dos mutuários, bem como a capitalização operada ao abrigo do DL 328-B/86 e a imputação do cumprimento na dívida de juros ao abrigo do artigo 785º do CC.
Entendeu, porém, o tribunal recorrido que a pretensão da exequente em prosseguir a execução para cobrança da totalidade da dívida constitui um abuso de direito.
Com é sabido, o abuso de direito está previsto no artigo 334º do CC, o qual estabelece que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A apreciação do abuso de direito depende da avaliação das várias circunstâncias de cada caso concreto, havendo então que ponderar as que se verificam nos presentes autos.
Desde logo não pode deixar de se atentar que, quando a exequente em Maio de 1999 requereu a remessa dos autos à conta por na altura desconhecer a existência de bens à executada, foi o próprio tribunal que não o permitiu, ordenando que os autos aguardassem a deserção da instância.
Deferiu depois o tribunal o pedido de penhora do vencimento da executada num valor mensal que fazia prever a continuação do aumento da dívida e o consequente prolongamento da respectiva cobrança, pelo que o despacho recorrido, ao impedir agora o prosseguimento da execução, frustra as expectativas da exequente em contradição com a posição anterior assumida pelo tribunal, com violação do caso julgado formal, nos termos do artigo 672º do CPC (a que corresponde o actual artigo 620º) e do princípio da confiança tutelado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, constatando-se, ao longo do período em que foi sendo penhorado o vencimento da executada, que o único bem penhorável era manifestamente insuficiente para satisfazer o crédito da exequente e para possibilitar o cumprimento pela executada da obrigação correspondente e que esta penhora, embora pagasse parte da dívida, não impedia o gradual aumento da mesma, poderia ter sido tomada a iniciativa, quer por parte da exequente, quer por parte da executada, de reconhecer a situação de insolvência desta ultima, intentando-se a adequada acção de insolvência.
Não tendo a executada recorrido ao instituto da insolvência e às eventuais vantagens que este processo lhe poderia ter acarretado, conclui-se forçosamente que, para além do seu incumprimento, também lhe é imputável o arrastamento da situação.
Não pode, igualmente deixar de se ter em consideração que a situação se agravou nos últimos anos sem que tivesse havido qualquer pagamento, uma vez que foi sustada a execução antes da quantia em dívida estar satisfeita, tendo o tribunal, perante o pedido de prosseguimento da execução, demorado cerca de seis anos para se pronunciar (entre 2009 e 2015), período durante o qual a dívida foi aumentando sem qualquer amortização.
Não poderá também atender-se ao argumento de que a exequente se deveria ter certificado da capacidade dos mutuários para cumprir o mútuo, na medida em que, no presente caso, se ignora qual era a situação económica da executada e do executado (entretanto declarado insolvente) e se à data do contrato não tinham capacidade económica para o cumprir ou se, pelo contrário, estavam em condições de cumprir, mas viram essas condições ser alteradas ou por actuações suas, ou por factores a que foram alheios.
Ora, da análise de todas estas circunstâncias não pode deixar de se concluir que não estão verificados os pressupostos previstos no artigo 334º para o abuso de direito, não tendo a exequente, no exercício do seu direito, excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito."
3. Não de discorda do decidido no acórdão, mas, fora da matéria apreciada pelo acórdão, cabe perguntar se, tendo o tribunal demorado seis anos para se pronunciar sobre o prosseguimento da execução e tendo a dívida aumentado, sem qualquer amortização durante esse período, o Estado não pode ser responsabilizado pelo executado pelo exercício da função jurisdicional (ou, talvez melhor, pela falta desse exercício durante um prazo não razoável) (cf. art. 12.º RRCE).
MTS