"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/03/2017

Jurisprudência (585)


Título executivo; força probatória;
preenchimento do título



1. O sumário de STJ 24/11/2016 (2222/10.7TBGDM-C.P1.S1) é o seguinte:
 
I - Não enferma de excesso de pronúncia o acórdão da Relação que, em face da valoração da prova produzida e indicada pelo apelante, alterou a matéria de facto, no tocante à autoria da assinatura aposta na letra de câmbio dada à execução.

II - O título executivo é um documento escrito constitutivo ou certificativo de obrigações que, mercê da força probatória especial de que está munido, torna dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador e a que é conferida força executiva, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva (art. 703.º, n.º 1, do CPC).

III - O acordo ou pacto de preenchimento é uma “convenção extracartular, informal e não sujeita a forma, em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc.”.

IV - O subsequente preenchimento do título, a ocorrer antes sempre da sua apresentação a pagamento, deve ser feito, naturalmente, de harmonia com o convencionado, sob pena de violação ou desrespeito do pacto, gerador do que se designa por preenchimento abusivo.

V - A aposição da data de vencimento, tal como fora acordado no pacto de preenchimento, não constitui preenchimento abusivo.

VI - Na fixação dos factos, a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art. 662.º do CPC, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o STJ (art. 662.º, n.º 4, do CPC).

VII - A intervenção deste, nesse campo, é residual, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material.

VIII - Socorrendo-se a Relação, para dar como assente a autoria da assinatura na letra de câmbio, à perícia e ao depoimento testemunhal, cuja força probatória é apreciada e fixada livremente pelo tribunal (arts. 389.º e 396.º do CC), não é admissível a sindicância pelo STJ, nesse domínio, por não integrar as excepções previstas na parte final do n.º 3 do art. 674.º do CPC.
 
2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte:
 
"[...] o título executivo consiste, como se sabe, num documento que faz prova documental simples de um acto ou de um negócio jurídico constitutivo ou certificativo de uma relação jurídica de natureza real ou obrigacional e que, só por si, permite que o credor desencadeie a actividade jurisdicional visando a realização coactiva da prestação que lhe é devida. Pode dizer-se que «é o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente, ou que estabelece, de forma ilidível, a existência daquele direito, cujo lastro corpóreo ou material é um documento que a lei permite que sirva de base à execução» [ Cfr., a este propósito, J.P. Remédio Marques, in Curso de Processo Executivo Comum, à face do código revisto, 1ª edição, págs. 55/56, e José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª edição, pág. 33, com referência à anterior versão do Cód. Proc. Civil, mas ainda plenamente actualizados].

Trata-se, pois, de um documento escrito constitutivo ou certificativo de obrigações que, mercê da força probatória especial de que está munido, torna dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador [...] e a que é conferida força executiva, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva (art.º 703º, nº 1, do Cód. Proc. Civil).

No caso, o título em que se funda a execução é, como decorre dos factos apurados antes descritos, sob os n.ºs 1 e 2, uma letra de câmbio subscrita, entre outros, pelo Recorrente, na qualidade de avalista, situação muito corrente no tráfico comercial e que corresponde à denominada letra-caução que é entregue ao credor, pelo menos com uma assinatura nela aposta [...], e que fica em poder do mesmo, a quem é atribuída a faculdade de a preencher, em caso de qualquer incumprimento da obrigação caucionada, fixando-lhe a data do vencimento.

Esta modalidade de título cambiário, legalmente reconhecida (art.º 10º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças – LULL) reconduz-se à ideia genérica de garantia [...] de responsabilidades futuras, supondo, normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido, porque falta determinar, por exemplo, data de vencimento ou o respectivo montante, e aparece como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento de prestações pecuniárias.

Associado a este tipo de título cambiário (letra), de formação sucessiva, ou seja aquele a que falta algum dos requisitos indicados no art.º 1º da LULL, mas que contém, pelo menos, uma assinatura aposta, com o intuito de contrair uma obrigação cambiária, está o chamado acordo ou pacto de preenchimento, que permite distingui-lo do titulo cambiário incompleto, caracterizando-se este por não existir qualquer acordo ou pacto para o respectivo preenchimento [...].

O acordo ou pacto de preenchimento é uma «convenção extracartular, informal e não sujeita a forma [...], em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc." [
Cfr, neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Volume I, 2011, Almedina, pág. 329, Miguel JA Pupo Correia, Direito Comercial, 10ª edição, Ediforum, Lisboa, 2007, pág. 479, Abel Pereira Delgado, LULL, Anotada, 4ª edição, 1980, pág. 63, e acórdão do STJ, de 3 de Maio de 2005 – 05A1086, in www.dgsi.pt]. O subsequente preenchimento do título, a ocorrer antes sempre da sua apresentação a pagamento, deve ser feito, naturalmente, de harmonia com o convencionado, sob pena de violação ou desrespeito do pacto, gerador do que se designa por preenchimento abusivo [...].

No caso, como já se disse, foi dada à execução uma letra subscrita, entre outros, pelo Recorrente, na qualidade de avalista, que interveio igualmente no pacto de preenchimento, como se alcança dos pontos 2 a 5, do elenco factual provado, nada obstando a que aquele invoque a sua desconformidade, discrepância ou contrariedade relativamente ao acordo de preenchimento, também designadas por preenchimento abusivo e abuso de preenchimento [...]. É que, como ensina Ferrer Correia [
In Lições de Direito Comercial, 1966, Volume III, págs. 68/69] «nas relações imediatas…nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extracartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Fica sujeito às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem».

Aliás, este entendimento é também acolhido prevalentemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [...], como o ilustra, por exemplo, o acórdão de 23.9.2010 – Proc. 4688-B/2000.L1.S1 – também acessível na referida base de dados, com o seguinte sumário: “1. Em execução fundada em título de crédito…. é, porém, lícito ao executado/embargante opor ao exequente/embargado excepções fundadas na relação causal, desde que nos situemos no plano das relações imediatas;2. Sendo a execução instaurada pelo beneficiário de letra subscrita e avalizada em branco, e tendo a avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento, tal como o sacador, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título, cabendo-lhe, porém, o ónus da prova dos factos constitutivos dessa excepção”.

Definido que ao Recorrente assiste o direito de invocar tal excepção, não valendo, por isso, as regras da abstracção, literalidade e autonomia, vejamos se, como sustenta, ocorreu o suposto preenchimento abusivo da letra. A tal propósito, importa ter presente o teor do pacto de preenchimento (que assumiu forma escrita, como se vê das várias cláusulas do contrato aludido em 2 do elenco factual provado) e que se encontra associado à emissão e à entrega da letra à exequente (e ao posterior preenchimento desta, no tocante à data de vencimento). Referimo-nos, como é óbvio, à “cláusula 05” inserida nesse contrato, na qual é definido o montante do empréstimo adiantado à sociedade executada e de que o Recorrente era representante, e “à cláusula 12” a estabelecer que «prevenindo-se a hipótese de virem a ser devidas – por efeito de resolução/anulação do contrato, a restituição das quantias ora adiantada e emprestada – nos termos descritos no número seguinte – entregam nesta data, à exequente, a letra n.º tal, no valor de 32.500€, aceite pela representada dos segundos outorgantes e avalizada pelos segundos outorgantes, autorizando desde já, que esta venha a completar o seu preenchimento e a apor-lhe, para tanto, data de emissão posterior à da resolução/anulação do contrato».

Perante a clareza do pacto de preenchimento, em conjugação com a restante matéria de facto provada, em especial com o contrato que lhe está associado e o não pagamento da letra de câmbio que lhe subjaz, é difícil descortinar que mais poderá ser dito nesta matéria, para além do que consta do acórdão recorrido, sobre a evidência de o preenchimento ter respeitado o acordo efectivamente realizado entre a exequente e os executados.

Para se eximir à responsabilidade assumida através do aval, o Recorrente traz à liça também o ónus da prova sobre a autoria da assinatura que lhe é atribuída na letra de câmbio que serve de título à execução. Nesse ponto, não há dúvidas que o ónus recai sobre a exequente, pois foi ela que apresentou o documento (art.º 374º, n.º 2, do Cód. Civil). No entanto, esse ónus probatório mostra-se cumprido com total êxito, na medida em que na sequência da impugnação factual feita, no âmbito da apelação, logrou que fosse dado como provado o ponto 5. do elenco factual, cujo teor confirma que foi o Recorrente quem «apôs a sua assinatura no verso da letra, na vertical, debaixo da frase manuscrita: “Por aval à firma subscritora».

O problema suscitado pelo Recorrente não respeita verdadeiramente ao ónus da prova, incidindo antes sobre a valoração probatória conferida pela Relação à perícia realizada, para concluir que a questionada assinatura é do seu punho. Sucede, porém, que esse domínio situa-se fora da órbita de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, pois, como se sabe, a competência para apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio radica nas instâncias, cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça, salvo situações de excepção legalmente previstas, conhecer apenas da matéria de direito, aplicando o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados (cfr. art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e art.ºs 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil).

Na fixação dos factos, a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil). A intervenção deste, nesse campo, é residual, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

Aliás, o art.º 674º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, é bem claro, quando a tal respeito, estabelece que «o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

No caso, os meios probatórios utilizados pela Relação, para dar como assente a autoria da assinatura, confinaram-se à perícia e ao depoimento testemunhal, cuja força probatória é apreciada e fixada livremente pelo tribunal (art.ºs 389º e 396º do Cód. Civil), não integrando, assim, as excepções previstas na parte final n.º 3 do art.º 674º do Cód. Proc. Civil, relativamente às quais é admissível a sindicância do Supremo Tribunal de Justiça.

Acentue-se que o Recorrente não invocou qualquer inobservância dessas regras probatórias e, focando-nos na alteração da matéria de facto realizada pela Relação, não vemos que tal tenha sucedido. Pelo contrário, como se alcança do teor do acórdão recorrido, mais propriamente de folhas 282 a 286 verso, as provas foram examinadas pela Relação, que motivou a sua decisão de forma coerente e transparente, de acordo com o princípio da convicção racional, consagrado pelo art.º 607º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, que combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva, sendo certo que nesse domínio (da livre convicção do julgador) está vedado ao Supremo exercer censura e sindicar a respectiva substância (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil)."
 
[MTS]