"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/03/2017

Jurisprudência (578)


Contrato-promessa; registo provisório;
penhora; oponibilidade



1. O sumário de STJ 29/11/2016 (7046/06.3TBVFX.L1.S1) é o seguinte: 

I - O registo provisório da aquisição de um imóvel que tem por título a declaração de celebração de um contrato-promessa de compra e venda com eficácia meramente obrigacional não lhe confere eficácia real e não o torna oponível a terceiros.

II - A aquisição da propriedade desse imóvel por contrato de compra e venda outorgado a 13-01-2005 não retroage, assim, à data da inscrição daquele registo provisório, ocorrida a 28-10-2004, não obstante a regra do art. 6.º do CRgP.

III - Por consequência, o registo da penhora desse imóvel ocorrido a 10-12-2004, é oponível ao adquirente posterior do imóvel – art. 819.º do CC.
 

2. Na fundamentação do acórdão é referido o seguinte:

"A questão posta nas conclusões do recurso e que esteve na base da decisão adoptada pela Relação tem que ver, essencialmente, com a norma do artº 6º do CRP, relativa à prioridade do registo, e à sua conjugação com a do artº 819º do CC.

Na parte que aqui interessa, o artº 6º do CRP dispõe – no nº 1 - que “o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes”, e no nº 3 que “o registo convertido em definitivo conserva a prioridade que tinha como provisório”.

O artº 819º do CPC, por seu turno, diz que “sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.

No caso dos autos, sendo o 1º réu o titular registral inscrito à data da penhora do imóvel ajuizado, há um conflito entre, de um lado, o credor que obteve essa penhora – a autora – e, do outro, o titular do registo provisório de aquisição a que aludem os factos 5) e 7), que é o recorrente (2º réu).

No entendimento do recorrente, o registo definitivo da sua aquisição prevalece sobre o registo da penhora precisamente porque este último é posterior (10/12/04) ao registo provisório daquela (28/10/04), sendo certo que nada obsta à plena aplicabilidade da regra do nº 3 do artº 6º, acima referida, que faz retroagir os efeitos do registo definitivo à data do provisório.

Diversamente, o acórdão recorrido considerou que, apesar da regra da prioridade enunciada no citado preceito do CRP, o registo provisório de aquisição é inoponível à autora, por esta ser titular de um direito incompatível sobre a mesma coisa inscrito nos livros da conservatória em data posterior à daquele registo provisório, mas anterior à da sua conversão em definitivo.

Tudo ponderado, consideramos que o julgamento proferido pela Relação está certo e deve ser mantido.

No essencial, o acórdão recorrido acolheu a posição que sobre o assunto em discussão neste processo é sustentada pela Drª Mónica Jardim no seu trabalho “O Registo Provisório de Aquisição” [Comunicação feita na F.D.U.C., no Congresso de Direitos Reais, em 29-11-2003 [...]], sendo certo que também nós estamos de acordo com o que esta Autora ali afirma e de modo muito claro e convincente demonstra.

Efectivamente, na hipótese analisada no presente processo há um registo provisório de aquisição a favor do recorrente promovido pelo 1º réu nos termos consignados no facto nº 5. Ora, como se explica no texto citado, “o registo provisório de aquisição, do ponto de vista registal, traduz-se...numa reserva de prioridade própria e causal. Reserva essa a que se tem de reconhecer, necessariamente, efeitos substantivos, pois admitir que o registo provisório de aquisição se limita a aspectos meramente registais, sem prejudicar a prioridade substantiva, implica torná-lo absolutamente ineficaz, para além de altamente enganador para quem o solicita e por ele paga. A afirmação é evidente quando se tem em conta que a reserva de prioridade só conduziria a um aparente regime de segurança provisória, já que, em caso de colisão de interesses, a questão da prioridade substantiva teria de ser, sempre, resolvida pelos tribunais, e estes, em caso de incompatibilidade entre um direito nascido e consumado perante as regras de direito civil e outro simplesmente projectado e anunciado, dariam preferência, indubitavelmente, ao primeiro, com desprestígio para a norma de direito registal.

E contra o acabado de afirmar, não colhe o argumento segundo o qual o registo provisório não pode ter consequências substantivas na medida em que nenhuma norma do Código Civil lhe reconhece tal eficácia. E isto porque, se é verdade que o direito registal é direito adjectivo ao serviço do direito substantivo, também é verdade que no nosso Código de Registo Predial existem normas com eficácia substantiva; para o comprovar, basta lembrar o n.º 1 do artº 5º”.

As consequências substantivas do registo provisório não podem, contudo, ser levadas tão longe quanto o defendido na presente revista (e, acrescentamos nós, em diversos pareceres do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e Notariado [Cfr, por último, o Parecer n.º RP 63/2013-STJ-CC [...]).

Na verdade, como bem refere, mais à frente, a mesma Autora “.... da diversidade de exigências formuladas pelo legislador, ao longo dos tempos, consoante em causa esteja um registo provisório de aquisição ou um registo de um contrato-promessa dotado de eficácia real, têm de ser retiradas consequências. Pois, se é verdade que negar eficácia substantiva ao registo provisório de aquisição implica retirar qualquer utilidade a este registo, deixando, assim, sair pela janela aquilo que o legislador fez entrar pela porta em nome e no interesse da segurança do comércio jurídico, também é verdade que reconhecer ao registo provisório de aquisição os mesmos efeitos que ao registo do contrato-promessa dotado de “eficácia real” é deixar entrar pela janela aquilo que o legislador, no C.C., impediu que entrasse pela porta. Sobretudo quando se sabe que o legislador só foi tão exigente, no domínio do contrato-promessa dotado de eficácia em face de terceiros, porque pretendeu assegurar-se de que as partes ao celebrarem o dito contrato estariam perfeitamente esclarecidas do que é a «eficácia real», ideia que ainda hoje não faz parte do património cultural comum.... 

Consideramos que o registo provisório de aquisição se traduz numa reserva de prioridade própria e que o legislador, através dele, permite que o titular registal inscrito, que pretenda alienar o seu direito apenas no futuro, limite a eficácia substantiva de actos posteriores que se revelem incompatíveis com o direito que virá a nascer na esfera jurídica daquele a favor de quem é feita a inscrição provisória, ficando, por isso, desde logo, privado dos benefícios inerentes à sua posição registal, em proveito do futuro adquirente. Não obstante, deve entender-se que tal limitação apenas opera em face de posteriores direitos incompatíveis que assentem em título dispositivo proveniente do titular inscrito, não assegurando, portanto, o futuro adquirente em face de actos praticados por terceiros contra o titular do registo definitivo (v. g., arresto, penhora ou apreensão em processo de falência), já que não é razoável supor que o legislador tenha pretendido atribuir ao titular registal inscrito a possibilidade de limitar a eficácia substantiva de uma eventual e futura actuação legítima de um terceiro.

Entendemos que esta é a interpretação mais conforme ao preceituado no art. 9º do C.C. segundo o qual: “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

Valendo as precedentes considerações, sem qualquer dúvida, quando é inscrito provisoriamente um contrato promessa dotado de eficácia real, por identidade, senão mesmo por maioria de razão terão de valer quando está em causa, como aqui sucede, um contrato promessa com eficácia meramente obrigacional. Com efeito, o registo provisório de aquisição não tem por si só a virtualidade de transformar a eficácia meramente obrigacional dum contrato promessa de compra e venda em eficácia real, tornando-o logo oponível a terceiros. Importa insistir na ideia de que, em termos rigorosos, o registo provisório obtido pelo recorrente publicitou um direito real ainda não alojado na esfera jurídica daquele que passou a figurar como titular do registo; e isto porque o título que lhe serviu de base – a declaração certificada a fls 51, mencionada no ponto 5) da matéria de facto - não foi, como se torna evidente, um facto aquisitivo de um direito real. Por isso mesmo é que, a nosso ver, tal registo provisório não tem a aptidão de fazer retroagir à data em que ocorreu - 28/10/04 - a aquisição da propriedade que teve lugar em 13/1/05 e foi inscrita em 2/2/05 (factos 7 e 10).

Está certa, portanto, a ilação extraída pelo acórdão recorrido no sentido de que nas hipóteses em que o contrato-promessa de compra e venda não tem eficácia real o registo (provisório) de aquisição a favor do promitente-comprador vincula os contraentes, colocando o promitente-comprador a coberto de eventuais futuros actos de disposição ou oneração da coisa praticados pelo promitente-vendedor antes da outorga do contrato prometido; no entanto, e não obstante a regra de prioridade estabelecida no artº 6º do Cód. do Registo Predial, esse registo provisório de aquisição é inoponível a terceiro titular de direito incompatível incidindo sobre a mesma coisa que, como sucedeu com a ora recorrida, o adquiriu e registou posteriormente àquele registo e antes da sua conversão em definitivo por força da celebração do contrato prometido (por exemplo, penhora ou arresto).

A doutrina exposta tem sido a adoptada, sem discrepâncias, por este STJ, não se vislumbrando nenhuma razão atendível para modificar a orientação traçada [Cfr. os acórdãos de 14/10/10 – Procº 788/08.0TCSNT.L1; de 13/9/11 – Procº 326/08.5TCFUN-A-L1.S1; e de 11/2/15 – Procº 1392/05.0TBMCN.P1.S1 [...]], pois é a que de modo mais equilibrado e harmonioso ajusta entre si as normas e princípios de direito registral e de direito substantivo, a todas assegurando um raio de acção (rectius, campo de aplicação) em conformidade com os fins que lhes presidem; tal o caso da disposição contida no artº 819º do CC que, precisamente, fixa o alcance da penhora enquanto direito real de garantia, mas determinando expressamente o acatamento da regras do registo."

[MTS]