"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/03/2017

Jurisprudência (566)



Venda executiva;
venda por negociação particular

1. O sumário de RC 15/11/2016 (2112/12.9TBLRA-F.C1) é o seguinte:

I) Na venda por negociação particular e na ausência de uma regulamentação da mesma anteriormente publicitada pelo encarregado na venda nesse sentido, os proponentes de aquisição não estão sujeitos às obrigações de caucionamento ou de garantia consagradas no art. 824º/1 do NCPC.

II) Os arts. 820º e 824º do NCPC não são subsidiariamente aplicáveis à venda por negociação particular.

III) Se o exequente requer a adjudicação do bem penhorado mediante um valor superior aos propostos anteriormente por terceiros interessados na aquisição, após tomar conhecimento dos valores propostos pelos terceiros, estes devem ser notificados da proposta de adjudicação apresentada pelo exequente e deve ser-lhes conferido prazo para, querendo, reformularem as suas propostas de aquisição.
 

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"Primeira questão: se as propostas apresentadas por potenciais compradores no âmbito de uma venda por negociação particular promovida em processo executivo devem ser obrigatoriamente acompanhadas da caução ou garantia bancária exigidas pelo art. 824º/1 do NCPC.

A resposta a esta questão tem de ser negativa.

Comece por referir-se que dos termos em que foi anunciada a venda do bem penhorado não resulta qualquer regra antecipadamente fixada pela senhora agente de execução, enquanto pessoa encarregada da venda e nessa medida titular do poder disciplinador da venda a exercer com observância das disposições legais aplicáveis à situação, no sentido da obrigatoriedade dos proponentes de aquisição fazerem acompanhar as respectivas propostas de qualquer quantia ou de qualquer meio de pagamento de uma qualquer fracção/percentagem dos valores de aquisição propostos.

Em segundo lugar, não existe para o caso da venda por negociação particular norma equivalente à do art. 824º do NCPC integrada no regime adjectivo da venda por proposta em carta fechada, a exigir que os proponentes de aquisição façam acompanhar as respectivas propostas de cheques visados de valor correspondente a 5% do valor de venda anunciado ou garantia bancária do mesmo valor.

A única norma que rege a questão do depósito do preço em venda por negociação particular é a do art. 833º/4 do NCPC, a qual refere que o preço é depositado em instituição de crédito, à ordem do agente de execução ou da secretaria, sem qualquer referência a depósitos faseados do preço permitidos pelo art. 824º do NCPC em caso de venda por proposta em carta fechada e que estão relacionados com a obrigação de prestação de caução imposta pelo nº 1 desta disposição.

Em terceiro lugar, a venda por negociação particular deve ser feita de acordo com as regras que regem a venda particular (Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. II, p. 328/329, e Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª edição, pp. 546/547) e, portanto, fora dos casos expressamente regulamentados na lei em termos imperativos, de acordo com o regime que for convencionado entre o comprador e o vendedor ao abrigo da liberdade contratual conferida pelo art. 405º do CC.

Ora, o regime do art. 824º do NCPC que a senhora agente de execução pretendeu aplicar à venda aqui em causa rege para a venda por propostas em carta fechada, que não para a venda por negociação particular, não se aplicando igualmente ao comum das compras e vendas particulares cujas regras jurídicas disciplinadoras são igualmente aplicáveis à venda por negociação particular.

Acresce dizer que o art. 824º do NCPC não se conta entre as normas que regem a proposta em carta fechada e que o próprio legislador determinou (art. 811º/2 do NCPC) que se aplicassem subsidiariamente à venda por negociação particular, sinal de que o próprio legislador pretendeu excluir a aplicação daquela primeira norma a este tipo específico de venda.

Finalmente, como decidido: i) pelo Tribunal da Relação de Lisboa, fora dos casos em que essa aplicação subsidiária é legalmente determinada, “Não é aplicável, por analogia, o regime previsto na lei processual civil para a venda judicial por propostas em carta fechada à venda extra-judicial por negociação particular.” (acórdão de 17/3/1976, in CJ 1976, t. 2, p. 450); ii) pelo STJ, as eventuais lacunas que se divisem no regime jurídico da venda por negociação particular e que não devam preencher-se, por imposição legal, pelo regime da venda por propostas em carta fechada, deverão sê-lo com recurso ao regime das alienações entre particulares (acórdão de 6/7/1976, in BMJ 259º, p. 177).

Como assim, ao não considerar as propostas de aquisição do bem a vender que lhe foram oportunamente apresentadas, porque desacompanhadas do cheque ou garantia do art. 824º/1 do NCPC, a senhora agente de execução incorreu em nulidade que influiu no exame e decisão da causa (art. 195º/1 do NCPC), nulidade essa que tendo sido tempestivamente arguida pela apelada foi, e bem, declarada pelo tribunal recorrido na decisão sob apreciação que, quanto a este aspecto, não é credora de qualquer censura.

Segunda questão: se a agente de execução deve notificar os proponentes da aquisição e as partes da proposta de adjudicação por parte da exequente a fim de que aqueles possam, querendo, melhorar as suas propostas.

Comece por dizer-se que o fundamento pelo qual se adjudicou à exequente o bem penhorado radicou, em termos de antecedente lógico-jurídico, na decisão da senhora agente de execução que desconsiderou absolutamente as propostas de aquisição tempestivamente apresentadas pela apelada e por outra interessada, decisão essa que, como visto, não pode subsistir.

Como assim, anulada tal decisão, devem anular-se todos os actos subsequentes que dela dependem, entre os quais se conta a adjudicação que teve aquela decisão por pressuposto lógico-jurídico.

Por outro lado, mantida a anulação da adjudicação do bem penhorado à exequente, parece não haver fundada divergência da apelante em relação à tramitação subsequente que foi determinada pela decisão recorrida, pois que o que efectivamente é pretendido pela apelante é a manutenção intocada da adjudicação e não propriamente que anulada esta a tramitação a observar seja diversa daquela.

Ex abundati cautela admite-se que se possa sustentar que requerida a adjudicação pela exequente do bem penhorado por um valor superior a cada uma das duas propostas antes apresentadas e devendo o requerimento de adjudicação ser tratado como outra proposta de aquisição, a mesma surgia assim como a melhor proposta de aquisição que, por isso e na ausência de outras razões atendíveis que levassem a desqualificá-la no confronto das demais apresentadas, deveria ser a escolhida pela senhora agente de execução, de tudo resultando que a adjudicação decidida pela senhora agente de execução sempre deveria subsistir.

Não acompanhamos tal argumentação.

Em primeiro lugar porque a mesma parte de uma sustentada aplicação à venda por negociação particular do regime do art. 820º do NCPC, a qual não sufragamos, dando-se aqui por reproduzida, de forma adaptada, a argumentação desenvolvida no âmbito da primeira questão para afastar a aplicação subsidiária ao caso dos autos do estatuído no art. 824º do NCPC.

Por outro lado, em execução do mandato conferido em sede de venda por negociação particular o encarregado da venda deve diligenciar pela obtenção do melhor preço possível, mas sempre dispensando a todos os interessados, mesmo em relação aos simples interessados na aquisição dos bens penhorados, um tratamento igual no que concerne às possibilidades de aquisição dos bens a vender e respeitando em relação a todos eles o devido contraditório – o respeito por essas exigências de igualdade e do contraditório é imposto, desde logo, pelo direito a um processo equitativo consagrado no art. 20º/4 da CRP (cfr. a este respeito, entre outros, o acórdão do Tribunal Constitucional 259/2000, publicado no Diário da República, 2ª série, de 7/11/ 2000, bem como Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, 2005, p. 192, e Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Anotada, 2010, pp. 166 e segs.

Assim sendo, da mesma forma que à exequente foi conferida a possibilidade de conhecer as propostas de aquisição anteriormente efectuadas por terceiros e de na base desse conhecimento requerer a adjudicação do bem a vender por um valor superior ao constante das aulidas propostas, afigura-se-nos que um tratamento igual e com respeito pelo devido contraditório de todos os interessados na venda, bem assim como o desiderato que deve ser prosseguido pelo agente de execução da busca do melhor preço possível, obrigam a que todos eles tenham conhecimento de todas as propostas e que possam eventualmente melhorar as anteriormente apresentadas, em prazo a fixar pelo encarregado da venda.

Tudo a significar que bem andou o tribunal recorrido ao impor à senhora agente de execução que se notificassem todas as partes e demais proponentes das propostas obtidas e do requerimento de adjudicação, encarado este como nova proposta de aquisição, e lhes concedesse prazo para, querendo, reformularem as propostas anteriormente apresentadas, tudo com a finalidade de ser alcançado o melhor preço possível. "

[MTS]